segunda-feira, 13 de abril de 2020

HISTÓRIAS E ESTÓRIAS ENGRAÇADAS DE PRINCESA




O VOLTAIRE SERTANEJO

Essa história foi extraída do livro da escritora princesense, Ada Florêncio Barros da Nóbrega: “Feliciano Rodrigues Florêncio – O moço, o major, o velho”, às páginas 411. Foi pulicada na década de 1950, na Revista Nacional (Nº 417, pp. 10 e 11) por José Alberto Gueiros

O Coronel Feliciano, de Princesa Isabel, cidade sertaneja dos confins da Paraíba, morreu há dez anos, mas suas histórias ainda estão vivas na boca dos que habitam aquelas bandas. Era um tipo agnóstico, anticlerical, desconfiado e ladino. Jamais deixou seu vilarejo para aventurar-se em viagens até as cidades mais importantes do litoral. Mantinha seu feudo ali mesmo, em Princesa,onde ninguém contrastava sua autoridade de homem forte, acostumado às lutas contra cangaceiros e políticos que lhe haviam tentado roubar o poder, no passado, quase todos, por isso mesmo, devidamente enterrados no cemitério local. Não acredito em história contada por padre! – dizia ele do alto do seu terraço da Casa Grande – Aquela potoca da Arca de Noé, da Bíblia, é pior do que o cordel que a gente compra ali na feira! – E completava – Imagine só, um casal de cada bicho dentro da tal Arca! Só pode ser mentira! Essa não me pega! Onde danado Noé ia arranjar comida pra dar de comer àquela bicharada toda durante quarenta dias e quarenta noites dentro da Arca? Olhe, um dia eu vi passar por aqui um circo, e o elefante, só o elefante, comia meio caminhão de cana. Onde danado Noé ia arranjar meio caminhão de cana, durante quarenta dias, para dar de comer ao elefante? Um casal de cada bicho? Que besteira! Mês passado, eu quis pegar um casal de rolinha fogo-pagô e só arranjei o macho. Onde danado Noé ia arranjar um casal de cada bicho pra botar dentro da Arca? Só de piolho eu conheço mais de dez qualidades!Era assim o velho coronel Feliciano. De uma lógica terrível, de uma irreverência cartesiana. No ano em que aseca braba ameaçou levar-lhe quase toda a boiada, sua mulher, dona Maroquinha, pegou-se com os santos. Rezas e mais rezas, diariamente, na capela da fazenda. Feliciano não se continha e resmungava – Esses teus santos lá têm milagre, Maroca? A seca ia devastando tudo. A mulher não parava de rezar. Certa manhã, irado, Feliciano passa no oratório, pega um São Judas Tadeu pela cabeça, amarra-o à vara de um foguete e mete fogo no chumaço. Diante de uma assistência horrorizada, o pobre santo de madeira subiu que nem um astronauta do sertão nordestino, para explodir no ar com o petardo, a muitos metros de altura. A mulher chorou, recriminou-o pela heresia, foi um escândalo. Por coincidência – ou sabe-se lá porque cargas d’água – no dia seguinte choveu na fazenda. Todos foram até o terraço da Casa Grande do Coronel Feliciano, gritando – Milagre! Milagre! O velho senhor feudal apareceu sorrindo diante da turba ouriçada e explicou – Também queria ver aquele santo da peste não fazer chover! Com um pipoco no pé do ouvido, a cem metros de altura, qualquer um faz chover! O velho Feliciano era o Voltaire do sertão.

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