quarta-feira, 11 de maio de 2022

Ler para conhecer a nossa História

Meninos, eu vi... e agora posso contar

DRAULT ERNANNY

O livro em tela, de autoria do paraibano Drault Ernanny de Mello e Silva, contém 329 páginas e foi lançado pela Editora RECORD em 1988, no Rio de Janeiro. É um livro de memórias de um paraibano ilustre que, pobre, partiu daqui para o Rio de Janeiro, então Capital Federal e lá, fez fortuna e transformou-se numa referência da mais alta roda, na “Cidade Maravilhosa”. Dono da famosa “Casa de Pedras” – uma construção inspirada na mansão de Scarlett O’Hara do filme “...E o Vento Levou”, situada na Gávea Pequena, região nobre do Rio de Janeiro. Naquela antológica casa, Drault Ernanny recebia as mais altas autoridades do Brasil e também personalidades internacionais.

Drault Ernanny relata quase tudo de sua longa existência e, nessa obra, como não poderia deixar de ser, no capítulo V – Façanha dos Companheiros, o autor dedica algumas páginas a fatos ocorridos, em 1930, relacionados a Princesa. Na página 124, Ernanny relata sobre o rompimento do coronel José Pereira Lima com o presidente da Paraíba, João Pessoa. De sua lavra:

Na cidade de Princesa, o coronel José Pereira arregimentou forças, mobilizou a população e outros companheiros de luta e criou o Estado Livre de Princesa (sic), um bravo núcleo separatista de sertanejos rebelados contra o autoritarismo do poder central representado por João Pessoa. O Brasil daquele tempo, sem estradas, sem meios de comunicação, sem transportes rápidos, permitia que núcleos mais afoitos, como esse, de José Pereira, se encastelassem numa cidade do interior, por algum tempo, e declarassem sua independência por motivos políticos. Essa espécie de Canudos de Princesa durou pouco, mas deu trabalho ao governo.

No livro, Ernanny, além de discorrer sobre o episódio da Guerra de Princesa, trata também de suas causas e de suas consequências. Dá uma ênfase especial ao assassinato do presidente João Pessoa pelo advogado, João Duarte Dantas, e também sobre o calvário do ex-presidente da Paraíba, João Suassuna, quando relata sua morte por assassinato no Rio de Janeiro e transcreve, na íntegra, a carta que este enviou à sua esposa, dona Ritinha, na Paraíba, prevendo sua própria morte. Na página 128 relata sobre a ocupação de Princesa pela polícia paraibana quando da vitória da Revolução de 1930.

Mais adiante, na página 132, o autor fala sobre o coronel José Pereira, quando de suas estadas no Rio de Janeiro após ser anistiado em 1936. Num relato interessante, que vale a pena reproduzir aqui, uma vez se tratar de uma história engraçada e pouco conhecida sobre o caudilho princesense, escreve Drault Ernanny:

Devo dizer que conheci Zé Pereira e tornei-me, mais tarde, seu amigo. Passada a borrasca, ele já vinha ao Rio e frequentava minha casa. Tenho até seu autógrafo no livro de visitantes da Casa de Pedras. Fui amigo dele e de seu afilhado, o querido e saudoso Alcides Carneiro, que chegou a ser ministro do Superior Tribunal Militar. Sou, até hoje, amigo do filho de Zé Pereira, Aloísio Pereira, hoje deputado estadual. Aqui no Rio, convidei, inúmeras vezes, amigos, banqueiros, industriais e políticos para almoçar comigo no Bife de Ouro, na pérgula do Copa, levando comigo, incógnito, o famoso Zé Pereira – e seu grande advogado, prof. Nehemias Gueiros. Propositadamente, no meio da conversa, eu puxava o tema da famosa luta travada na Paraíba, em Princesa. Por esse tempo, já estávamos em pleno regime getuliano, e quase todos esses amigos eram ligados à situação. Consideravam Zé Pereira um terrível cangaceiro, um bandido que levantou seu município, e parte da Paraíba, contra o Governo do Estado. Eu discordava, afiançando que Zé Pereira não fora nada daquilo, mas, ao contrário, um chefe político prestigioso em sua região, uma figura carismática. De fato, o líder de Princesa era homem educado, ex-aluno da Faculdade de Direito do Recife (cujo curso seguiu até o terceiro ano), deputado estadual várias vezes e um causeur interessantíssimo, cheio daquela verve sertaneja tão apreciada pelos cariocas de bom gosto.

É claro que ninguém acreditava no que eu dizia, mas sempre ganhei a parada de modo definitivo. Zé Pereira, na mesa conosco, ainda não identificado, já conquistava toda a turma com suas histórias pitorescas e seu charme. E eu dava, então, o xeque-mate:

- Eis aí o homem com quem vocês estão conversando. É o próprio Zé Pereira!

O sucesso era total. Fiz essa brincadeira muitas vezes, para alegria de tantos dos meus amigos e de Zé Pereira, que se divertia muito com esse jogo. Tinha um grande senso de humor e, comentando a revolta de Princesa, costumava dizer:

- Vocês dão valor exagerado ao que houve. Aquilo lá foi só uma má-criação do meu pessoal...

Nessa “má-criação” morreu muita gente boa, mas Zé Pereira lamentava o desperdício de vidas e a comoção política em seu Estado. Nunca se conformou com o assassinato de João Pessoa, pois, apesar de adversário, em determinada época, tinha sido seu grande amigo.

Esse interessante relato dá conta da importância do coronel Zé Pereira no meio intelectual, político e social da época, principalmente na então Capital Federal, o Rio de Janeiro, o que, por extensão, denota a importância da Guerra de Princesa no contexto da historiografia nacional. No livro, completando sua iconografia, Drault Ernanny reproduz a foto do “Estado-Maior” do Território Livre de Princesa em 1930, num registro que considera necessário por retratar fato relevante da nossa história. Esse trabalho memorialista é leitura necessária para o entendimento de quase um século da história do Brasil, da Paraíba e de Princesa, sob o olhar de quem viveu tudo de forma presente e intensa.

Drault Ernanny nasceu em 5 de julho de 1905, no minúsculo povoado de São José dos Cordeiros (hoje município paraibano), era filho de João Olyntho de Mello e Silva e de dona Francisca Olinto de Hollanda. Teve 23 irmãos. Deixou sua terra ainda menino, estudou no Recife e na Bahia, formou-se em Medicina no Rio de Janeiro, foi mata-mosquito, fiscal do leite, dietista, dono de curtume, banqueiro, senador, deputado federal, ajudou a elaborar a lei que criou a Petrobras e construiu a Refinaria de Manguinhos. Amigo íntimo do presidente Juscelino Kubitschek e do papa das comunicações, o também paraibano, Assis Chateaubriand. Influente, monopolizou a vida social do Rio de Janeiro entre os anos 40 e 60. Amante das artes, ajudou a formar o acervo do Museu de Artes de São Paulo, do Museu da Paraíba e de tantas outras casas de cultura. Faleceu no Rio de Janeiro aos 96 anos de idade, em 20 de março de 2002.







 

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