Uma querela histórica que não quer calar. Essa é uma história
que pode ser denominada de trilateral, uma vez envolver três nuances de
diferentes opiniões. Gerada pela polêmica entrevista concedida por Lampião ao
médico do Crato/CE, doutor Octacílio Macêdo, em Juazeiro do Norte, em março de 1926,
quando o Rei do Cangaço afirmou o seguinte sobre José Pereira Lima*: “De
todos meus protetores, só um traiu-me miseravelmente. Foi o coronel José
Pereira Lima, chefe político de Princesa. É um homem perverso, falso e
desonesto, a quem durante anos servi, prestando os mais vantajosos favores de
nossa profissão”. Essa afirmação de Lampião (já então nomeado capitão
da Guarda Nacional), causa, até hoje, muito desconforto à família do ilustre
Coronel – segundo vários historiadores, reputado como o maior e mais importante
coronel do Nordeste -, quando, muitas vezes é usada por adversários históricos,
para macular a imagem daquele vulto sertanejo. A despeito da peremptória afirmação do cangaceiro, a família
de Zé Pereira, nega que tenha havido qualquer convivência, tampouco amizade
entre o Coronel e Lampião. Por outro lado, alguns historiadores afirmam que Zé
Pereira teve sim, encontros com o maior cangaceiro do Nordeste, sendo até por
alguns, considerado coiteiro (termo regional que designava aqueles que
acolitavam cangaceiros em suas terras ou fazendas). No entanto, a família
do Coronel nega até que os dois se conhecessem. Por outro lado, historiadores
afirmam que o coronel Zé Pereira conhecia e amparava - ou permitia que o
fizessem -, Lampião em suas terras. Ora, nada se pode afirmar, definitivamente,
com relação a isso. Analisemos o caso sob o pano das hipóteses: Lampião pode ter
concedido a tal entrevista com o intuito de se promover ou de se vingar do
coronel por algo menor que possa ter acontecido. Na verdade, por ocasião da
entrevista (1926), Zé Pereira ainda não era famoso nem conhecido no âmbito do
Nordeste ou do Brasil. A repercussão das acusações do facínora se amplificou
depois de 1930, quando Zé Pereira se tornou conhecido nacionalmente. Será que
promovidas para deleite de seus adversários? Mesmo assim - além de a palavra do
cangaceiro não ser digna de crédito sob qualquer suspeita -, não se pode
descartar completamente a veracidade de suas afirmações.
Acontece que a história não é paraplégica: suas pernas andam
e, caminhando ao longo do tempo, muitas opiniões foram formadas além dos fatos.
Senão vejamos: Zé Pereira, depois da “Guerra de Princesa”, ficou famoso e
conhecido em todo o Brasil, quiçá no mundo. Talvez, por conta disso, a
entrevista de Lampião, sacudida da poeira do tempo, adquiriu notoriedade e
passou a ter mais importância através da pena dos historiadores. Daí, a
polêmica. Os que defendem as assertivas do cangaceiro, dizem que Zé Pereira acolitava
o “Rei do Cangaço” e seu bando em uma de suas fazendas no Povoado de “Patos de
Irerê”, no município de Princesa. Afirmam até que numa luta contra as volantes
da polícia de Pernambuco, ocorrida próximo ao Povoado de Patos de Irerê,
ocasião em que Lampião sofreu grave ferimento no pé, foi tratado na casa de um
sobrinho do Coronel de nome Marcolino Pereira Diniz, naquele Povoado, pelo
médico doutor Severiano dos Santos Diniz.
Ora, nessa época – antes da “Guerra de Princesa” –, o médico
Severiano, que viria a ser adversário político do coronel depois de 30, era
ainda correligionário de Zé Pereira e, portanto, seguidor de suas orientações
políticas. Para os que defendem as afirmações de Lampião - que são ofensivas ao
Coronel -, jamais Severiano se prestaria a atender um inimigo de seu chefe
político. Mas, espere aí! Como seria Zé Pereira inimigo do cangaceiro mor, se
este se arranchava na casa de um seu sobrinho? Familiares do Coronel, afirmam
hoje, que se isso ocorreu, foi à revelia do chefe sertanejo, pois, segundo
eles, os dois sequer se conheciam pessoalmente e que, numa ocasião, o coronel
admoestara o sobrinho para que não permitisse a permanência de Lampião em suas
terras.
Começo a sentir o forte cheiro da hipocrisia. Como disse
antes, a história tem pernas que andam e hoje, essa história específica, anda
através das pernas do “Cariri Cangaço” (entidade que divulga as atividades do
cangaço no Nordeste brasileiro e seus desdobramentos, influências, etc.),
quando afirma e divulga que Lampião e Zé Pereira se conheciam sim e que
conviveram, se não através de estreita amizade, mas se encontraram por várias
ocasiões. Os familiares continuam afirmando o contrário. Esqueçamos as opiniões
sanguíneas. Passemos às conjecturas plausíveis para ambas as opiniões: Em que
estaria o coronel Zé Pereira, desmerecido em haver conhecido e/ou convivido com
Lampião? Em nada, pois, o maior cangaceiro do Nordeste foi recebido e nomeado
por sua ordem, Capitão da Guarda Nacional, pelo padre Cícero Romão Batista, no
Juazeiro, em 1926, para combater os revoltosos da Coluna Prestes e, por conta
disso, nada se acrescentou aos defeitos apontados pelos críticos daquele
antológico mito eclesiástico cearense.
A plausibilidade da convivência de Zé Pereira com Lampião vem
à luz quando se constata que Princesa, mesmo antes de 30, quando Zé Pereira não
detinha ainda o seu “exército” composto de mais de 1.000 homens em armas
guardando a cidade, Lampião sequer cogitou invadir a cidade. Seria da parte do
cangaceiro, medo, ou acordo tácito? Na verdade, nada vem a desmerecer Zé
Pereira pelo fato de haver convivido com Lampião, pois, naqueles idos isso era
uma praxe que envolvia os poderosos do Sertão: se não amigos, coiteiros.
Ademais, não se registra nenhum episódio em que o coronel de Princesa encetou
alguma perseguição a Lampião.
O problema foi a entrevista. Se o cangaceiro mentiu, eu
pergunto: com que propósito? Se estivera dizendo a verdade, perguntamos todos:
qual o interesse de Zé Pereira - homem bem conceituado, de boas relações, além
de possuidor de bens consideráveis –em se apropriar, ilicitamente, de bens ou
haveres de um cangaceiro que afirma nunca ter visto? Ou será que Lampião,
sabedor da proibição de Zé Pereira ao seu sobrinho Marcolino de “acoitá-lo”
provocou nele um sentimento de vingança materializado na difamatória
entrevista? E lampião? Tão valente e destemido, porque não foi a Princesa
reaver o que lhe havia sido “surrupiado” quando o coronel, fragilizado (de
forças armadas), retornou a Princesa em 1936? Para essa questão da “desonestidade”
do Coronel, há outra versão. Segundo alguns remanescentes de 30, há que diga
que a parte do dinheiro, fruto do saque de Sousa, que tocou a Lampião, foi dado
ao caboclo Marcolino** para ser guardado em segurança e que, mais tarde, em
tentativa de resgate por Lampião, Marcolino informou que o dinheiro estava na
mão de Zé Pereira e que este não o devolveria ao cangaceiro. Fica no ar a
pergunta: quem roubou quem?
Finalizando, quem pode ou deve ser obrigado a acreditar na
palavra de um cangaceiro - que soa de forma isolada -, uma vez ser esse o único
depoimento desabonador com relação à pessoa do coronel Zé Pereira de Princesa,
uma vez que todas as demais declarações sobre aquele valente sertanejo -
contidas em vários livros, revistas, reportagens, etc. -, tratam do coronel
como homem íntegro e honesto? A não ser que o assalto à cidade de Sousa/PB em
27 de julho de 1924 somado à assunção de João Suassuna (amigo e compadre de Zé
Pereira) ao cargo de presidente do estado da Paraíba, em 22 de outubro de 1924,
por ordem deste, o Coronel tenha-se tronado inimigo de Lampião, pois, após a
posse de Suassuna, foi criado, pelo Governo do Estado, o 2º Batalhão da Polícia
Militar na cidade de Patos das Espinharas, sob a liderança do coronel Zé
Pereira com a responsabilidade de efetivar campanha contra o Cangaço liderado
por Lampião. Mesmo porque, até o ano de 1924, as volantes da Polícia paraibana
eram extremamente tolerantes com relação ao bando de Lampião.
Corroborando a indisfarçada hipocrisia do “Rei do Cangaço”
quando, na mesma entrevista afirmara ser “católico” (contrariando o quinto
mandamento da tábua de leis da religião Católica que diz: “não matarás”) e
“amigo dos juízes”, mesmo tolerando seus irmãos haverem feito de montaria o
juiz Archimedes Souto Maior, quando neste montou como se fora um animal, por
ocasião da invasão da cidade de Sousa na Paraíba. Merecia aquele facínora,
credibilidade? Aliás, Lampião tratava do cangaço, como se fora um negócio.
Naquela entrevista, disse o cangaceiro: “Estou me dando bem no cangaço e não
pretendo abandoná-lo. Não sei se vou passar a vida toda nele. Preciso trabalhar
ainda uns três anos. Tenho de visitar alguns amigos, o que não fiz por falta de
oportunidade. Depois, talvez me torne comerciante”.
Ora, o cangaceiro considerava sua lide de bandoleiro
criminoso como um negócio lícito e normal e, com relação à pretensa visita a
“alguns amigos”, depreende-se que Lampião tinha em mente atacar e saquear
alguns potentados do Nordeste – a quem não havia “visitado” ainda -, para engordar
os seus alforjes. A hipocrisia do maior cangaceiro do Nordeste se comprova
quando constatamos que sua estada no cangaço nada tinha a ver com os crimes
ocorridos contra seus familiares, pois, nunca os tinha vingado, usava sua
carabina para assaltar, saquear e defender-se das volantes policiais dos vários
Estados nordestinos que legalmente o perseguiam, e o mais, era só negócio. Por
fim, com relação à querela do Rei do Cangaço com o coronel Zé Pereira, difícil
será saber quem está com a razão: Lampião, os familiares de Zé Pereira ou os
itinerantes do “Cariri Cangaço”? As interpretações ficam ao sabor dos debates.
*Coronel Zé
Pereira de Princesa que, por questões políticas rompeu com o então presidente
(governador) da Paraíba, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, em 1930,
transformando o município de Princesa/PB, em “Território Livre”, portanto,
separado do Estado da Paraíba.
**Marcolino Pereira Diniz é o antológico “Caboclo Marcolino”
imortalizado na canção “Xanduzinha”, composição de Humberto Teixeira e cantada
por Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião” e por vários outros artistas brasileiros, a
exemplo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros.