domingo, 15 de outubro de 2023

Domingo eu conto

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

O inquilino do Cemitério

Era o filho caçula de Benedita, o preferido dela. Desde criança, muito mimado e coberto de dengos. Talvez, porque já em tenra idade, demonstrou-se apoucado das faculdades mentais e farto de manias esquisitas. Quando menino, corria pelas ruas de Princesa a balançar, de forma intermitente, um chocalho do qual jamais se apartava. Manoel - chamado carinhosamente pela mãe, Benedita, de “Mané” - era um garoto graúdo, branco e muito bonito. Já aos 14 anos, deu um estirão que mais parecia um rapaz de 18. Grandão, Mané, ao invés de ser orgulho da mãe, esta dizia: “Esse menino cresceu demais! Dizem que esse povo que cresce muito fica ‘mei abestaiado!’” Era nessa conta que Benedita tinha o filho, o que o fazia mais dependente dela, um mofino.

Ela, a mãe, era uma pobre coitada que vivia às voltas para criar os quatro filhos, cujos pais, os quais, mal sabiam quem eram. Cada cá era filho de um homem diferente. Puta velha, Benedita fornicava sem muito cuidado ou escolha. Seu hedonismo sexual somado à presteza de sua fertilidade a punha exposta à facilidade de barrigas consecutivas e só parou de parir quando doutor Zezito fez-lhe a caridade de cortar-lhes as trompas. Benedita servia como empregada doméstica nas casas dos ricos da cidade e fazia um bico fornecendo areia fina para arear as panelas de alumínio das madames. Apanhava essa areia num córrego seco na periferia da cidade, amarrava em pequenas trouxas de pano e distribuía pelas casas em busca de alguns trocados. Comentavam, a boca pequena, que nesse mesmo córrego era onde Benedita fazia suas necessidades fisiológicas.

Pela versatilidade de suas atividades, a mãe de Mané recebeu o apelido de “Benedita Pratudo”. Além de cozinhar bem, fazia faxinas, carregava água na cabeça, vasculhava casas, espanava, fazia todo e qualquer serviço doméstico. Todavia, sua dedicação principal era voltada para os cuidados com o filho, Mané. Este, para ela, não pecava e, para ele, nada faltava. Andava lorde o menino, nem parecia filho de quem era. Tão bonito e limpinho, o “fidalgo” chamava a atenção de todos. Certa feita, Benedita foi passar uns dias ajudando na casa do major Floro, em Patos de Irerê. Logo, a esposa do major, engraçou-se de Mané e o cobria de mimos. Descendente de franceses, dona Leonor Douettes, só o chamava de mon petit. Daí o apelido – em corruptela a essa expressão francesa - que na idade adulta fez conhecido, o filho de Benedita, como “Mané Pitita”.   

Feito homem, Mané, sem vocação para o trabalho, tampouco para os estudos, largou o chocalho, mas continuou perambulando pelas ruas da cidade sem ocupação alguma. Fazia jus ao ditado que diz: “Mente vazia é oficina do Diabo”. Ainda rapaz afez-se ao hábito da ingestão de bebidas alcoólicas e tornou-se um viciado. Sua bodega preferida era a de Valdecí na “Rua do Cancão”. Ali Mané vivia a pedir lapadas de cana, quando dizia – fazendo, com a mão direita, o gesto dos roqueiros: “Bota só um dedinho pra mim”. Bebia até não poder mais e, como consequência desse vício, passou a demonstrar comportamento por demais esquisito. Quando se empanturrava de cachaça, ao invés de ir para casa, dirigia-se ao Cemitério da cidade e por lá, passava as noites. Ali, dormia no pequeno Necrotério que servia de depósito para a guarda dos “caixões da caridade” – aqueles ataúdes bacanas deixados pelos defuntos ricos para servir aos que não tinham onde cair mortos.

Essa hospedagem macabra obedecia a um verdadeiro ritual. Chegado ao Cemitério, bêbado, Mané Pitita, despia-se por completo, acendia uma vela apregada no balcão do Necrotério, forrava com folhas o lastro do ataúde escolhido, deitava-se e fechava, sobre si, a tampa do caixão. Como um féretro, dormia o sono dos justos como se estivera em sua rede, onde dormia antes de adotar esse comportamento doentio. No início dessa prática esquisita, quando ainda viva, Benedita Pratudo, foi várias vezes ao Cemitério. Corria atrás do filho para que ele fosse para casa. Depois, vendo sem jeito, largou-o para lá em sua tétrica mania.

Mané Pitita nunca namorou, nunca casou, tampouco produziu filhos. Era um solteirão juramentado voltado apenas para o vício da cachaça e para sua predileção por defuntos. Morta, Benedita, talvez por desgosto, intensificou-se, no filho, seu comportamento psicótico quando passou a morar no Cemitério, fez dali sua casa. Saía, durante o dia, enchia a cara, mas, à noite, ao invés de ir para a casa onde morou com a mãe, ia para o Cemitério. Quantos não foram, os desavisados, que ao chegarem à necrópole, para pegar um caixão para enterrar um indigente, se assustavam quando se deparavam com Mané Pitita se levantando de um deles? Uma verdadeira assombração!

Com o passar do tempo, Pitita, corroído pelo vício, passou a vagar pelas ruas conversando sozinho e sempre repetindo: “Quem tem mãe tem tudo, quem não tem mãe, não tem nada”. Era o menino de Benedita divagando com as lembranças do passado e sofrendo pela ausência da mãe protetora. Porém, restava ainda uma dúvida sobre essa figura de comportamento tão estranho. O que fazia aquele homem no cemitério? Qual o motivo dessa atração mórbida pela Cidade dos Mortos? Marçal Bocão, coveiro oficial e curioso por natureza, resolveu descobrir o mistério. Certa noite, em tocaia, Bocão esperou Mané chegar à necrópole para dormir, postou-se em lugar estratégico e ficou a observar.

Qual não foi a surpresa de Marçal Bocão quando viu Mané Pitita, completamente nu, se dirigindo para uma das catacumbas mais bonitas do Cemitério, onde repousavam os restos mortais de uma das famílias mais importantes da cidade, incluindo aí uma bela jovem que morrera por suicídio e, diante da fotografia dessa linda moça, Mané começou a se masturbar e, gemendo de prazer, a falar o nome da jovem. Tava desvendado o mistério. O filho de Benedita Pratudo, em sua prática de necrofilia platônica, era um maníaco sexual! Correu a história na rua, e Mané, tido até ali como um ser inofensivo, passou a ser hostilizado como se fora um tarado perigoso. Em face disso, parou de circular pela cidade, recolheu-se, definitivamente, à Cidade dos Mortos e foi definhando até encontrar o descanso eterno já previamente envelopado num dos esquifes em que sempre dormiu.



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