Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
O inquilino do
Cemitério
Era o filho caçula de Benedita, o preferido dela. Desde
criança, muito mimado e coberto de dengos. Talvez, porque já em tenra idade,
demonstrou-se apoucado das faculdades mentais e farto de manias esquisitas.
Quando menino, corria pelas ruas de Princesa a balançar, de forma intermitente,
um chocalho do qual jamais se apartava. Manoel - chamado carinhosamente pela mãe,
Benedita, de “Mané” - era um garoto graúdo, branco e muito bonito. Já aos 14
anos, deu um estirão que mais parecia um rapaz de 18. Grandão, Mané, ao invés
de ser orgulho da mãe, esta dizia: “Esse menino cresceu demais! Dizem que esse
povo que cresce muito fica ‘mei abestaiado!’” Era nessa conta que Benedita
tinha o filho, o que o fazia mais dependente dela, um mofino.
Ela, a mãe, era uma pobre coitada que vivia às voltas para
criar os quatro filhos, cujos pais, os quais, mal sabiam quem eram. Cada cá era
filho de um homem diferente. Puta velha, Benedita fornicava sem muito cuidado
ou escolha. Seu hedonismo sexual somado à presteza de sua fertilidade a punha
exposta à facilidade de barrigas consecutivas e só parou de parir quando doutor
Zezito fez-lhe a caridade de cortar-lhes as trompas. Benedita servia como
empregada doméstica nas casas dos ricos da cidade e fazia um bico fornecendo
areia fina para arear as panelas de alumínio das madames. Apanhava essa areia
num córrego seco na periferia da cidade, amarrava em pequenas trouxas de pano e
distribuía pelas casas em busca de alguns trocados. Comentavam, a boca pequena,
que nesse mesmo córrego era onde Benedita fazia suas necessidades fisiológicas.
Pela versatilidade de suas atividades, a mãe de Mané recebeu
o apelido de “Benedita Pratudo”. Além de cozinhar bem, fazia faxinas, carregava
água na cabeça, vasculhava casas, espanava, fazia todo e qualquer serviço
doméstico. Todavia, sua dedicação principal era voltada para os cuidados com o
filho, Mané. Este, para ela, não pecava e, para ele, nada faltava. Andava lorde
o menino, nem parecia filho de quem era. Tão bonito e limpinho, o “fidalgo”
chamava a atenção de todos. Certa feita, Benedita foi passar uns dias ajudando
na casa do major Floro, em Patos de Irerê. Logo, a esposa do major, engraçou-se
de Mané e o cobria de mimos. Descendente de franceses, dona Leonor Douettes, só
o chamava de mon petit. Daí o apelido
– em corruptela a essa expressão francesa - que na idade adulta fez conhecido,
o filho de Benedita, como “Mané Pitita”.
Feito homem, Mané, sem vocação para o trabalho, tampouco para
os estudos, largou o chocalho, mas continuou perambulando pelas ruas da cidade
sem ocupação alguma. Fazia jus ao ditado que diz: “Mente vazia é oficina do
Diabo”. Ainda rapaz afez-se ao hábito da ingestão de bebidas alcoólicas e
tornou-se um viciado. Sua bodega preferida era a de Valdecí na “Rua do Cancão”.
Ali Mané vivia a pedir lapadas de cana, quando dizia – fazendo, com a mão
direita, o gesto dos roqueiros: “Bota só um dedinho pra mim”. Bebia até não
poder mais e, como consequência desse vício, passou a demonstrar comportamento
por demais esquisito. Quando se empanturrava de cachaça, ao invés de ir para
casa, dirigia-se ao Cemitério da cidade e por lá, passava as noites. Ali,
dormia no pequeno Necrotério que servia de depósito para a guarda dos “caixões
da caridade” – aqueles ataúdes bacanas deixados pelos defuntos ricos para
servir aos que não tinham onde cair mortos.
Essa hospedagem macabra obedecia a um verdadeiro ritual.
Chegado ao Cemitério, bêbado, Mané Pitita, despia-se por completo, acendia uma
vela apregada no balcão do Necrotério, forrava com folhas o lastro do ataúde
escolhido, deitava-se e fechava, sobre si, a tampa do caixão. Como um féretro,
dormia o sono dos justos como se estivera em sua rede, onde dormia antes de
adotar esse comportamento doentio. No início dessa prática esquisita, quando
ainda viva, Benedita Pratudo, foi várias vezes ao Cemitério. Corria atrás do
filho para que ele fosse para casa. Depois, vendo sem jeito, largou-o para lá
em sua tétrica mania.
Mané Pitita nunca namorou, nunca casou, tampouco produziu
filhos. Era um solteirão juramentado voltado apenas para o vício da cachaça e
para sua predileção por defuntos. Morta, Benedita, talvez por desgosto,
intensificou-se, no filho, seu comportamento psicótico quando passou a morar no
Cemitério, fez dali sua casa. Saía, durante o dia, enchia a cara, mas, à noite,
ao invés de ir para a casa onde morou com a mãe, ia para o Cemitério. Quantos
não foram, os desavisados, que ao chegarem à necrópole, para pegar um caixão
para enterrar um indigente, se assustavam quando se deparavam com Mané Pitita
se levantando de um deles? Uma verdadeira assombração!
Com o passar do tempo, Pitita, corroído pelo vício, passou a
vagar pelas ruas conversando sozinho e sempre repetindo: “Quem tem mãe tem
tudo, quem não tem mãe, não tem nada”. Era o menino de Benedita divagando com
as lembranças do passado e sofrendo pela ausência da mãe protetora. Porém,
restava ainda uma dúvida sobre essa figura de comportamento tão estranho. O que
fazia aquele homem no cemitério? Qual o motivo dessa atração mórbida pela
Cidade dos Mortos? Marçal Bocão, coveiro oficial e curioso por natureza,
resolveu descobrir o mistério. Certa noite, em tocaia, Bocão esperou Mané
chegar à necrópole para dormir, postou-se em lugar estratégico e ficou a
observar.
Qual não foi a surpresa de Marçal Bocão quando viu Mané
Pitita, completamente nu, se dirigindo para uma das catacumbas mais bonitas do Cemitério,
onde repousavam os restos mortais de uma das famílias mais importantes da
cidade, incluindo aí uma bela jovem que morrera por suicídio e, diante da
fotografia dessa linda moça, Mané começou a se masturbar e, gemendo de prazer,
a falar o nome da jovem. Tava desvendado o mistério. O filho de Benedita
Pratudo, em sua prática de necrofilia platônica, era um maníaco sexual! Correu
a história na rua, e Mané, tido até ali como um ser inofensivo, passou a ser
hostilizado como se fora um tarado perigoso. Em face disso, parou de circular
pela cidade, recolheu-se, definitivamente, à Cidade dos Mortos e foi definhando
até encontrar o descanso eterno já previamente envelopado num dos esquifes em
que sempre dormiu.
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