domingo, 29 de outubro de 2023

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

A botija de dona Chiquinha

A velha era igual “Bombril”, tinha mil uma utilidades. Era rezadeira para achados e perdidos; para curar doenças, afastar o mal ou prever o futuro; fazia renda numa almofada de bilros; mestre na confecção de colchas de retalhos; exímia no tricô e crochê, costurava roupas e ainda achava tempo para falar da vida alheia e para dar pitacos em tudo o que acontecia em seu entorno. Ranzinza e mal-humorada, Francisca de Esperidião era uma viúva na faixa dos 70 anos, sempre vestida de preto numa indumentária composta de blusa de mangas compridas e saia longa até os mocotós, realçava também um grande cocó grisalho enroscado para trás da cabeça. Branca, magérrima e de estatura mediana, a velha, andava corcunda quase ao ponto de arrastar seu longo nariz pelo chão. O protótipo de uma bruxa. Chamava-se Francisca, mas, desde cedo foi alcunhada de Chiquinha. Morava sozinha numa casa de poucos cômodos. Nada cozinhava, pois, dois sobrinhos seus, menores de idade, levavam-lhe a comida todos os dias. Passava o dia todo em seus afazeres entre bilros, linhas e carretéis, mas sempre encontrava tempo para dar conta de tudo o que acontecia na rua em que morava.

O mobiliário de sua casa era simples e despojado. Na sala de estar, quatro velhas cadeiras de gerdau e uma preguiçosa. No cômodo contíguo, que servia de copa e cozinha, além da máquina de costura – uma Mercswiss americana -, constava uma pequena mesa rodeada por quatro cadeiras com tampos de couro; um pote de barro contendo água para beber, encimado por um porta-canecos em madeira; um fogão de lenha; algumas panelas de barro, uma gamela de madeira e uma bateria repleta de velhas e amassadas peças de alumínio e estanho dependuradas. No seu quarto de dormir, uma rede e um grande baú aonde guardava suas roupas e demais panos de bunda, além de uma mesinha ocupada por alguns livros. Debaixo da rede, um penico. Nas paredes, nenhum quadro de santos, somente o retrato do falecido esposo, Esperidião. Na casa, que não tinha banheiro, a velha, que não usava calçola, fazia suas necessidades fisiológicas no quintal. Para mijar, bastava levantar a longa saia, abrir as pernas e pronto.

Pelos vizinhos era chamada de dona Chiquinha. Pelos que dela não gostavam recebia a alcunha de “Sá Chica”. Sabia ler e escrever, pois, filha de homem de posses, estudou até o quarto ano primário no Grupo Escolar “Gama e Melo”. Gostava de ler romances e falava bem, mas sua leitura preferida era o livro “São Cipriano, o Bruxo” e outros grimórios. Muito jovem, casou-se com um viúvo que dilapidou toda sua herança recebida do pai e ainda a deixou pobre quando morreu. Casada somente na Igreja, não teve direito à herança de Esperidião que lhe foi surrupiada pelos filhos do primeiro casamento do velho. Naquele tempo em que não havia aposentadoria para idosos desocupados, dona Chiquinha vivia dos bicos que fazia em sua máquina de costura, das rendas que fabricava em sua almofada e das gorjetas que recebia pelas rezas que fazia. Quando não cuidava de sua rotineira labuta achava-se debruçada numa das janelas da casa a observar o que se passava. Gostava de espiar as crianças brincando na rua e, quando uma delas sofria uma queda, ela corria, de dentro de casa, com um caneco d’água para “espaiar” o sangue da criança ao que as mães acorriam aflitas para impedir que o menino ou a menina bebessem o sobejo da velha. Sá Chica, sempre que saciava sua sede, entornava o que sobrava dentro do mesmo pote.

Anticlerical, dona Chiquinha, abominava padres, rezas convencionais e os ritos da Igreja – lugar aonde nunca ia. Mesmo assim, a velha era supersticiosa e cheia de crendices. Seus desafetos diziam que “Sá Chica” cuidava mesmo era de ganhar dinheiro explorando a fé alheia, uma hipócrita e oportunista. Além de rezadeira, ela fazia experiências com elementos das crendices populares. No dia 8 de dezembro – Dia de Nossa Senhora da Conceição – a velha fazia a experiência com as pedras de sal quando dispunha 7 torrões de sal, expostos ao sereno da madrugada, cada um representando um mês, para saber se o inverno seria bom. Os meses eram de dezembro a junho do ano seguinte, e os torrões que mais molhassem o chão seriam os meses de chuvas mais intensas. No dia 19 de março, dizia a velha: “Se hoje o sol nascer atrás de uma densa barra de nuvens, o ano será bom de inverno”. Aos consulentes que nela acreditavam, dona Chiquinha distribuía garrafas de vidro contendo o que ela dizia ser cinzas da última fogueira de São João para serem aspergidas ao redor das casas o que, segundo a velha, protegia dos fortes ventos e das tempestades do inverno. Além dessa simpatia, recomendava a aposição de uma cruz, na porta da frente da casa, confeccionada com as palhas da folha de um coqueiro de primeira safra para proteger de maus olhados. Em suas previsões, ela dizia também que se a Lua Nova do mês de dezembro pendesse para o norte, o inverno seria ruim.

Bem de vida que foi um dia, dona Chiquinha só pensava em dinheiro. Era ávida em auferir vantagens financeiras em tudo o que fazia. Diziam, no cochicho, que a velha tinha um pacto com o diabo, que havia dado um pingo de sangue ao satanás. Quando falavam em religião na sua frente, ela dizia, de forma irritada: “Esse Deus ao qual vocês se referem e adoram é um ser criado pela imaginação dos oportunistas!” E acrescentava: “Se esse tal Jesus voltasse à Terra, tenho certeza de que ele não passaria sequer na calçada da igreja Católica nem adentraria ao templo dos ‘bodes’. Ou melhor, se entrasse em algum, seria munido do mesmo chicote com que surrou os fariseus e vendilhões do templo de Jerusalém”. Dona Chiquinha detestava padres e freiras, a quem chamava de “sepulcros caiados”. “Já viu um padre magro? São todos gordos porque se empanturram das mais finas iguarias proporcionadas pelas generosas esmolas doadas pelos pobres crentes”, dizia. Sá Chica era assim. Não tinha papas na língua. Em seus comentários deletérios ela primava em ferir os que criam nas coisas da Igreja. Seu ódio incontido talvez se explicasse pelas injustiças sofridas na vida, principalmente pelo fato de haver sido deserdada do marido por ter contraído núpcias somente no religioso e, também, pelo fato de que, entre seus muitos enteados, constar um que era um próspero comerciante e cuidador das coisas da Igreja. Isso alimentava seu desejo de vingança.

Mística que era, dona Chiquinha agia em todas as frentes. Contumaz apostadora no “Jogo do Bicho”, aqui acolá dormia nua e amarrada para sonhar com o bicho que daria na roleta do dia seguinte. Certa noite, preparada nesse ritual ridículo, não sonhou com o bicho, mas teve uma quase visão – parecida com um sonho – que, pelo visto, a faria tirar o pé da lama. Nesse dia, acordou tarde, já eram quase 8 horas da manhã quando desceu da rede. Foi desperta por uma réstia que entrava por uma brecha de uma goteira na telha de seu quarto. A velha acordou atarantada e logo pôs as ideias em ordem lembrando-se do sonho que teve. Ainda sentada na rede começou a rememorar o que se passara durante o sono naquela noite. Enquanto roncava, num sono profundo, Sá Chica ouviu uma voz que lhe dizia: “Chiquinha, queres melhorar de vida? Tenho um presente para ti”. E continuou a voz: “debaixo do pé de Pereiro grande, lá na lagoa das freiras tem uma pedra e, sob essa pedra, tem uma moeda. Cave embaixo da pedra e o que tiver lá é teu!” Lembrando dessas palavras, dona Chiquinha se arrepiava toda e lembrou ainda da recomendação final da misteriosa voz: “Não vás sozinha nem te acompanhes de pessoas ambiciosas e, quando retirares o que lá está, mandes rezar três missas pela alma do Major Feliciano e does 10% de tudo à Santa Madre Igreja”.

Dona Chiquinha animou-se e pensou: “Bati as paradas, vou ficar rica de novo e me vingarei daqueles que me prejudicaram!” A partir daí, passou a matutar o plano de como faria para arrancar a bendita botija. Com quem iria? Resolveu chamar um dos poucos a quem chamava de amigo: um velho mais ou menos de sua idade, a quem chamavam de “Pade Maia”. Para ajudar na necessária escavação, convidou um negro que trabalhava de cabeceiro para o comerciante Miguel Rodrigues, chamado Cosmo que era mais conhecido por “Musa”. Era um crioulo, à época ainda jovem, forte, espadaúdo e meio abestalhado. Feitas as diligências necessárias, a velha preparou-se para colher os frutos do sonho, mas antes pensou: “Vou enrolar esses dois bestas e não darei um tostão sequer à Igreja”. Numa sexta-feira de manhã, Sá Chica, reunida com Pade Maia e Musa, partiu para a lagoa das freiras. Lá chegando, avistou logo o pé de Pereiro. Junto ao caule da árvore havia uma pedra. Logo a velha, acocorada, levantou a pedra e, de fato, estava lá uma pataca. Nesse momento, começou uma grande ventania e, dona Chiquinha, ao invés de invocar o nome de Deus e pedir proteção, mandou o negro Musa cavar e Pade Maia tirar a terra. Logo encontraram uma caixa de madeira, retiraram-na e, quando abriram a caixa, qual não foi a surpresa; estava repleta de pedras de carvão! Do estado de ansiedade em que se achava, provocado pela perspectiva de enriquecer, de súbito, Sá Chica foi acometida de uma crise de apoplexia e, ali mesmo, acocorada como estava, esticou a canela.



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