domingo, 5 de novembro de 2023

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

O Bebê que virou serpente

Sebastião era um alto comerciante da Princesa da década de 40 do século passado. Dono de padaria e também de uma Casa de Estivas que supria de mercadorias as bodegas da cidade e região. Era um homem de instrução primária, mas que gostava de ler os jornais que mandava vir do Recife. Tinha duas filhas: Estela e Luísa e as criou com o mais acurado esmero. Tratadas como princesas, tinham tudo o que necessitavam e mais algumas coisas. Seus brinquedos e suas roupas vinham do Recife, até velocípedes as duas possuíam - um luxo para poucas crianças daquele tempo. Estudaram no Colégio das freiras e frequentavam a alta roda da sociedade princesense. Em face desse privilegiado status eram tidas como um bom partido para qualquer rapaz interesseiro. Ambas belas, sendo, Luísa, mais bonita. Eram bem apessoadas, branquinhas, de corpo escultural, cabelos longos e encaracolados, de boa estatura e muito educadas.

Se Sebastião dava tudo o que as filhas pediam, esqueceu de dar-lhes os conselhos e a disciplina necessários para que aprendessem a se conduzir na vida com suas próprias pernas. As meninas, mimadas ao extremo, eram dondocas, criadas sem compreender sobre as coisas da vida. Achavam que tudo caía do céu. Jamais se preocuparam com a vida futura e, em seu alheamento à realidade, viviam numa redoma onde tudo girava no seu entorno proporcionando-lhes conforto, bem-estar e, obrigação nenhuma. Feitas moças, começou o problema. Ainda estudante da Escola Normal “Monte Carmelo”, Luisinha – como era chamada pelos íntimos, a mais nova, passou a gazear aulas para viver de namoricos com os rapazinhos bonitos da cidade. Estela, mais contida, ao tempo em que admoestava Luisinha, se imiscuía de dar ciência ao pai sobre o comportamento da irmã. Temia uma reação violenta de Sebastião. Compartilhar com a mãe, Carminha, era perdido, pois esta, depois do parto do último filho, que nasceu morto, teve depressão pós-parto e ficou alienada.

Já aos 15 anos, Luisinha - que era mais nova do que Estela dois anos -, soltou a corda e deu asas ao hedonismo em busca do que acreditava ser a felicidade. Com o corpo latejando de desejo e desorientada quanto às coisas do sexo, a moça, sedutora de rapazes também inexperientes, perdeu a virgindade. Não disse a ninguém, nem à irmã. Todavia, em busca do prazer pura e simplesmente, enamorou-se de um jovem rapaz do baixo clero da sociedade princesense, filho de um pobre pescador de traíras no Açude Novo e com ele passou a transar sem controle algum. Trepavam de dia e de noite. Os encontros, no mais das vezes, aconteciam num quartinho existente nos fundos da padaria do pai ou, por outra, a moça deixava escorada a janela de seu quarto, que dava para um beco no centro da cidade e era por onde o rapaz entrava, na calada da noite, para fazer amor com ela. Noites insones de prazer intenso. Dessa intensidade hedonista, veio a tragédia. Sem entender o que se passava, Luisinha começou a sentir alguns sintomas de uma doença esquisita: tontura, enjoos, calafrios e muito sono, chegando a desmaiar quando estava à mesa na hora do café da manhã na frente de toda a família.

Preocupado com quadro de saúde apresentado pela filha, Sebastião, acompanhado de Estela, levou a moça, quase uma menina ainda, para se receitar com o doutor Severiano Diniz. Após exames superficiais e algumas perguntas, tudo isso na presença do pai, este perguntou ao amigo Severiano: “Será que foi comida, doutor?”. O médico, vislumbrando o terremoto que estava por vir, recomendou que as duas moças saíssem de seu consultório e ficou a sós com Sebastião. “Então, doutor, o que é que a minha filha tem? É grave”, perguntou o homem. “Gravíssimo, Sebastião, gravíssimo!”, respondeu o doutor com ar muito sério. “Mas... do que se trata?” Inquiriu o pai. “Sebastião, sua filha está grávida!”. Assustado com essa terrível notícia o comerciante ficou paralisado e, retornando a si, inquiriu ao médico, quase gritando: “Grávida? Como assim? Luisinha é ainda uma menina! Ademais, recatada e bem criada como é, como pode ser isso verdade? Não, doutor, eu exijo que sejam feitos exames mais acurados! Isso não é possível, não é possível!” E assim dizendo, o rico comerciante se retirou do consultório do médico e, junto com as filhas, sem dizer nada, partiu para casa. No caminho de casa, em face do mutismo do pai, Estela perguntou: “E aí, papai, o que é que Luisinha tem?” “Nada, minha filha, nada; apenas uma indisposição passageira”. Chegado em sua residência, Sebastião determinou que Luisinha não deveria sair de casa por hipótese alguma salvo com sua expressa autorização. No dia seguinte, o pai comunicou à filha que arrumasse sua mala que, dentro de oito dias, viajariam ao Recife em busca de tratamento para sua saúde.

Amália, que exercia o papel de governanta da casa de Sebastião, era uma mulher experiente, curiosa e, sem fugir à tradicional regra, dava conta de tudo o que se passava na casa dos patrões granfinos, era toda ouvidos, mesmo porque, diante da invalidez mental da patroa, Carminha, era ela [Amália] quem resolvia tudo na casa. Desconfiada da esquisita doença da filha mais nova do patrão, Amália, bisbilhoteira que era, chamou Luisinha e fez-lhe algumas perguntas ao que, a moça, se abriu com a governanta e contou-lhe toda a história do namoro com o filho do pescador. Mesmo espantada com o relato, Amália disse à menina: “Você está grávida!” “Grávida, eu? Como assim?” Assustou-se Luisinha. “Grávida, minha filha e, já, já, sua barriga vai crescer e você não vai ter como esconder de seu pai. Temos de tomar uma providência urgente; deixa comigo”, disse a mulher. No mesmo dia, à tardinha, depois de conversar com Estela sobre a tragédia da irmã, Amália preparou uma poção à base de carqueja, cabacinho e arruda e deu para Luisinha beber. A moça tomou o chá e, poucas horas depois, caiu de cama à morrer. Chamaram o pai que, chegado da padaria, viu que o estado da menina era preocupante, vomitando muito e a se contorcer com dores abdominais. Levou novamente, a moça, para o doutor Severiano. Lá chegando, o médico fez uma lavagem estomacal que provocou a expulsão da meizinha abortiva. Logo a menina se sentiu melhor e voltou para casa.

Nesse ínterim, Estela contou ao pai sobre os movimentos promovidos por Amália. Surpreso com o conhecimento da situação, pela fofoqueira Amália e agora também pela outra filha, Sebastião ficou com a pulga atrás da orelha, pois, tudo o que a governanta sabia, virava notícia na rua. Dito e feito. Em poucos dias, os cochichos começaram a se fazer pelas esquinas da cidade: “A filha de ‘seu’ Sebastião tá buchuda!” “Não me diga... E, quem é o pai?” Em face desse disse-me-disse, o severo comerciante, num misto de vergonha, indignação e raiva, resolveu tomar a medida extrema: Dizendo-se um homem íntegro, religioso e que não compactuava com coisas erradas, em nome da honra da família, com estardalhaço e sem atender aos hipócritas conselhos dos amigos e nem ao rogo da filha Estela, expulsou Luisinha de casa. Além de espancar a filha com violência, o pai jogou, o que chamou de seus panos de bunda, no meio da rua. Foi um dos maiores escândalos já vistos na Princesa da primeira metade do século passado. Uma cidade conservadora, preconceituosa e hipócrita, assistia a mais um episódio emblemático daquele tempo. Só que, desta feita, envolvendo uma das famílias mais chiques do lugar. Mesmo depois do escândalo, os cochichos continuaram em busca da informação de quem seria o pai da criança e mais detalhes do babado. Não sossegavam, os bisbilhoteiros, enquanto não desvendassem a tragédia por completo.

Expulsa de casa e proibida de ser acolhida por parentes ou amigos, restou a Luisinha o caminho do prostíbulo. Naquele tempo, o Cabaré de Princesa funcionava numa viela, chamada “Rua da Lapa”, localizada no chamado Bairro do Cruzeiro e era administrado por uma velha meretriz – de quem nunca se soube o verdadeiro nome -, mas que era conhecida “Madame Juvita”. Ali chegada, Luisinha foi bem acolhida pela chefe do bordel. Afinal, malgrado ser uma puta nova, representava algo de inusitado por ser oriunda da classe alta e assim, servir de enxuga língua contra aqueles que enxergavam as chamadas “mulheres da vida” como seres de quinta categoria. Um alento para a classe inferior. Com a chegada da “novata”, o lupanar de Madame Juvita ganhou novos ares e ávida freguesia em busca do desfrute da nova quenga. Mas, Luisinha, ali chegando, já com a barriga protuberante, reservou-se aos serviços domésticos da casa da cafetina, o que fazia sempre a chorar em sua angústia eterna. Nos meses seguintes, sem sair da casa da Madame para nada, a jovem restringiu-se a curtir sua angústia e aguardar o nascimento da criança. Qual não foi sua surpresa quando, a proxeneta, pressionada pelo poderoso pai comunicou-a que, ao nascer, a criança deveria ser-lhe entregue para adoção.

No dia 2 de julho de 1948 – coincidentemente no Dia Internacional da Prostituta –, num dos quartos daquela Casa de Recursos, Luisinha deu à luz um menino. Logo que pariu, atendendo determinação do pai da desventurada moça, Juvita retirou a criança sem dar chance à mãe de sequer de ver o bebê. O menino nasceu laçado pelo cordão umbilical e, por isso, demorou a respirar. Mesmo ainda se bulindo, a criança foi considerada um natimorto. Cumprindo o desiderato do rico comerciante, a dona do prostíbulo enrolou o rebento num pano e jogou-o no meio do Açude Novo - manancial que existia próximo ao arruado que abrigava o Cabaré. Tava resolvido esse trágico problema? Não. Uma das quengas que vivia no entorno de Luisinha e que lhe auxiliou durante a gravidez, confidenciou à desditosa mãe sobre o destino de seu filho. Na verdade, não havia paz para aquela moça. Lusinha exasperou-se com a macabra notícia; amaldiçoou a proxeneta e evadiu-se do Cabaré em busca de abrigo longe dali. Foi exercer o seu “livre arbítrio”. Sabedora disso, Amália a abrigou na casa de uma de suas filhas que era casada e morava num sítio próximo. Madame Juvita, em que pese haver auferido vantagem financeira pelo cumprimento da recomendação de Sebastião, ficou com a consciência pesada e resolveu confessar esse grave pecado ao vigário da cidade.

Terrivelmente arrependida pelo cometimento do hediondo crime, a velha meretriz pôs um véu na cabeça e partiu para a Igreja com o fim de confessar seu pecado ao padre frei Clemente, um alemão que lutara na II Guerra Mundial ao lado dos nazistas e era conhecido por ter um temperamento que era a antítese de seu nome. Ajoelhada contritamente ao confessionário, a mulher fez seu tenebroso relato. O padre, ao invés da imposição de uma rigorosa penitência à velha rapariga, aos gritos e de forma ininteligível em seu português mal falado e de sotaque esquisito, disparou sua sentença: “Maldita! Hás de queimar na foga da inferna por essa grande pecada! E essa menino pagã se transformará num serpente!” Após essa sentença, proferida num português mais do que atrapalhado, estabeleceu-se a lenda da “Serpente do Açude Novo”, o que persiste até os dias de hoje, através da oralidade reproduzida de relatos passados. Poucos anos depois de tudo isso, Sebastião, falido, adentrou no alcoolismo e morreu pobre vendendo jogo do bicho pelas ruas de Princesa. Antes disso, quando o alto comerciante ainda tinha posses, o filho do pescador, desapareceu misteriosamente. Dias depois de sair do Cabaré de Madame Juvita, Luisinha foi encontrada dependurada numa corda amarrada no pé do brabo sustentado pela linha da sala da frente da casa da filha de Amália. Madame Juvita enlouqueceu e, o bebê que virou serpente alimenta até hoje o folclore princesense quando muitos ainda acreditam nesse “leviatã”: O bebê que virou serpente.



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