Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
As marionetes sem juízo
Zé de Bezeca, um pernambucano do Recife, homem íntegro e
muito religioso que, por conta das núpcias contraídas com a princesense,
Marinês, filha de Bezeca e de Maria, transferiu-se para Princesa e aqui fez
morada. Além de ganhar a filha, ganhou também o apelido do sogro como
sobrenome. Artista de fina habilidade, fazia de tudo, desde o conserto e a
fabricação de sapatos até a confecção de roupas. Mas não era só isso. Zé de
Bezeca era um artista plástico de raríssima habilidade. Nesse ramo, pintava e
bordava. Não bastasse isso, o homem era também músico e executava o saxofone
com maestria. Religioso, logo que chegou à cidade passou a fazer parte da
Conferência de São Vicente de Paulo e foi consagrado professo da Ordem Franciscana
Secular. Na verdade, um ativo participante dos serviços religiosos e
indispensável nas atividades culturais.
Naquele tempo - que remonta à segunda metade da década de
1960 -, estava toda a cidade de Princesa mobilizada para angariar fundos para
auxiliar ao vigário, frei Anastácio Palmeira, que havia demolido a velha Igreja
Matriz e começava a construir um novo templo no centro da cidade. Todos os
católicos do lugar se organizavam, de uma forma ou de outra, em campanhas, para
conseguir dinheiro para a construção do novo edifício dedicado ao culto
religioso. Na qualidade de católico praticante, Zé de Bezeca, engajou-se também
nessa empreitada para dar sua contribuição. Para tanto, resolveu construir alguns
bonecos de fantoche para apresentar, em espetáculos beneficentes, por todo o
município, o seu teatro de marionetes e assim, angariar recursos para ajudar o
padre naquela empreitada.
Pensando fazer algo diferente, original, o artista
pernambucano resolveu estudar os comportamentos dos doidos de Princesa e
fabricar seus bonecos inspirado nos muitos malucos que povoavam as ruas da
cidade. Nessa época, em que não havia remédio para os doentes mentais, tampouco
amparo algum em benefício dos alienados, doido era doido e pronto. Viviam a
perambular pelas ruas servindo de chacota a todos e sob uma total falta de
respeito ou de caridade em suas situações de vulneráveis. Eram muitos, os
doidos de Princesa, e existiam de todos os tipos e naturezas: violentos,
pacatos, lerdos, engraçados, enfim, malucos para todos os gostos. Zé de Bezeca
passou a observá-los, reunir suas manias e “qualidades” e, assim, começou a
elaborar, em sua cabeça, a construção de bonecos que retratassem, física e
comportamental, as várias nuances apresentadas por essas criaturas diferentes.
Zé Marcelino, que tinha o apelido de “Cágado Jabuti”, era um
dos doidos mais violentos. Gostava de varrer o adro da Igreja Matriz com uma
vassoura tirada no mato e ficava exasperado quando lhe chamavam pelo apelido.
Chateado, corria a atrás dos meninos e jogava-lhes pedras ao tempo em que
proferia os mais cabeludos palavrões. Chico Raposa era um doido menos
agressivo. Este era alegre, simpático e vivia a dançar pelas ruas da cidade. Punha
os dedos no nariz e ficava rodopiando ao som de nada, a dançar, numa alegria
inexplicável. Foi Chico Raposa quem inspirou Zé de Bezeca a criar seu principal
boneco: o “Benedito”, um preto alegre e presepeiro que dançava, cantava e, de forma
irreverente, tirava trela com todos os outros personagens desse teatro de
mamulengos. As bonecas, inspiradas em “Arlinda” e “Fia Côca” eram, ambas,
libidinosas ao extremo quando só falavam em namorar. A primeira [Arlinda] vivia
a dizer que havia tirado fulano e sicrano do “prego”. A outra [Fia Côca], vivia
das lembranças quando furunfava com seu falecido marido, a dizer,
incessantemente, em gesto obsceno: “Ai Luís, ai Luís...”
Todas essas performances eram observadas com muita atenção
pelo artista. E não só eram os loucos do sexo masculino os que chamavam sua
atenção. Zé adorava a reação de “Ana Pé de Banha” quando assim era chamada e debulhava
os mais feios palavrões: “Pé-de-banha é o priquito da tua mãe!”, gritava a
doida, no meio da rua. Já “Dió”, era uma maluca mais calada, porém, quando
provocada se fazia por demais violenta sacudindo tudo o que tivesse às mãos
contra os que lhes chateassem. “Rasga-mortalha”, uma velha magra e seca, que
falava muito rápido e alto, quando chamada pela alcunha que detestava,
esbravejava com sua voz estridente mandando todo mundo tomar no c..., dentre
outras palavras de baixo calão. Já “Cocó”, um galegão forte, de pés descalços,
que andava devagar pelas ruas, era tão pacato e passivo que mal falava. Pedia
esmolas e, quando lhe perguntavam porque não trabalhava, ele respondia, bem
baixinho e pausadamente: “Não posso, sou doente”. Questionado sobre qual o mal
que o acometia, respondia, no mesmo tom: “Preguiça recolhida...”
Tudo isso era anotado por Zé de Bezeca para subsidiar, tanto na
confecção dos bonecos quanto para elaborar as histórias que seriam apresentadas
no seu teatro mambembe. Havia uma doida que podia ser considerada a decana dos
insanos que povoavam Princesa. Era “Maria bate-birro”. Uma velha esmolambada
que vivia nas pontas de ruas, onde fazia sua comida aquecida pelo fogo gerado
por pneus velhos queimados e, para completar, comia tudo o que encontrava pelo
chão. “Mané Pitita”, com sua sanfona velha, tocava de dia e, à noite, ia dormir
nos caixões da caridade do Cemitério local. Engraçadíssima era “Maria Catabi”.
Esta, corria pelas ruas a balançar seus fartos seios, o que provocava o
comentário de outro doido: “Vigozinho”, que dizia: “Essa aí, não canta porque
não quer, mas peito tem!” “Tozinho” era um ex-professor de línguas que foi
torturado pela ditadura militar, no Rio de Janeiro, e voltou para Princesa onde
vivia a vagar pelas ruas com um pedaço de papel e uma caneta, às mãos, a anotar
sabe-se lá o quê. Não conversava com ninguém, mas em casa, às vezes tinha
surtos de violência.
Construídos os bonecos, Zé de Bezeca montou o espetáculo com
roteiro e tudo e partiu, acompanhado de um ajudante, em busca da Zona Rural do
município de Princesa carregados de malas cheias de bonecos. Faziam paradas nos
sítios maiores, escolhiam a casa do mais abastado do lugar, estendiam uma lona
amarrada em dois armadores de rede da sala de estar da casa escolhida e
organizavam tudo para o espetáculo noturno, apresentado à luz de candeeiros.
Enquanto o mestre armava a empanada, o ajudante percorria as casas mais
próximas, em propaganda, avisando sobre o que ocorreria à noite. A notícia se
espalhava e, já ao entardecer, a matutada estava toda presente para ver a
apresentação dos bonecos de Zé de Bezeca. Os ingressos para assistir ao
espetáculo podiam ser adquiridos através do pagamento em dinheiro, mas também
pela troca em ovos, galinhas, jerimuns ou o que quer que fosse e tudo seria
vendido depois e revertido em fundos para financiar a construção da Igreja. No
espetáculo, além das histórias que contava, Zé, em sua ventriloquia perfeita
quando, sozinho, fazia várias vozes, cantava a “mazurca do trapiaba”, para o
fantoche caracterizado de “Zé Miranda” dançar com a marionete inspirada em “Ana
Pé-de-banha”; fazia números de mágica e, o espetáculo, chegava a seu ápice quando
ele apresentava, em ato, final: “As Presepadas do Benedito”.
Esse número, protagonizado pelo negro Benedito (o principal
fantoche da trupe), era o mais engraçado. Benedito roubava a filha do coronel e
era perseguido pelos cabras desse potentado, mas, sozinho, matava a todos os
que lhes perseguiam e, pela valentia apresentada, conquistava o coronel que
terminava aceitando-o como seu genro. Algo inusitado e improvável na vida real
daquele tempo. Com esse desfecho, o espetáculo terminava com Benedito sendo ovacionado
por todos. Todavia, nem sempre o espetáculo tinha um final feliz. Certa noite,
num dos sítios mais distantes da sede do município [Princesa], sem avisar ao
chefe político da região, Zé de Bezeca ocupou o Grupo Escolar para apresentar
seu espetáculo. Já com a casa cheia e, pouco antes do início da apresentação,
adentrou ao recinto, acompanhado de vários capangas, o chefe do lugar. Era um
fazendeiro, violento e arrogante chamado João Barreiro, ligado ao partido dos
Nominando e que se dizia chefe de tudo ali.
Sem mais nem menos, mandou que os seus cabras desarmassem a
lona e, aos gritos, proibiu que o espetáculo acontecesse. Zé de Bezeca, aflito,
acorreu ao potentado, pedindo desculpas e rogando para que deixasse o evento
acontecer, alegando que era em benefício da Igreja, etc. etc. Não fora a
intercessão de um compadre de João Barreiro, a merda teria virado boné. Depois
de muitas gestões junto ao trabuqueiro, este permitiu o espetáculo, mas
admoestou ao chefe da trupe e a todos: “Aqui, só acontecem as coisas com a
minha ordem e seja esta a última vez que me desobedecem”. Dito isso,
retirou-se, pisando duro, no que foi acompanhado por seus capatazes. Zé de
Bezeca apresentou o espetáculo, mas, nessa noite, imiscuiu-se de levar à cena
as presepadas do Benedito, preferindo exibir uma cena mais amena com o boneco
que retratava o louco “Cocó” fazendo o que seria uma contradança com uma boneca
que representava a doida “Rosa Muvara”, a valsarem sob o canto, acappella, da Ave Maria de Gounod
executada pelo artista que, louco seria se, botando fogo na fogueira, tivesse,
nesse dia, promovido o espetáculo corriqueiro. Desta feita, o Benedito, não
saiu da mala.
Ahh que deleite Dominguinhos 😃! ao ler sua crônica, intrínseca na minha origem, significa uma viagem, uma revisitação a um cenário real,recheado de muita saudade!!! Parabéns e obrigada!!!
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