Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
Diálogos no Além
O presidente João Pessoa não conhecia o coronel José Pereira
Lima de Princesa. Nunca haviam se encontrado pessoalmente, mas de ouvir dizer,
ambos se conheciam muito bem e, mesmo sem haverem tido contato algum, eram
desafetos inconciliáveis. Alguns fatos os haviam afastado mesmo antes de se
conhecerem. Primeiro, o assassinato do médico Bandeira Filho, casado com uma
prima do futuro presidente, perpetrado em Recife, em 1923, por Epitácio Pessoa
Sobrinho – que era também primo de João Pessoa -, por motivos passionais. Após
o crime, na qualidade de amigo do empresário Francisco Pessoa de Queiroz, o
coronel Zé Pereira homiziou o assassino, Epitacinho – irmão do empresário –, em
sua casa em Princesa.
Depois disso, um entrevero ocorrido numa mesa de jogos de
azar, na cidade de Alagoa do Monteiro, entre o pai de João Pessoa, Cândido
Clementino, com Inocêncio Justino da Nóbrega que era casado com uma das irmãs
de Zé Pereira, quadra em que o cunhado do coronel esmurrou o pai do futuro
presidente. Para completar, quando da escolha de João Pessoa - a quem os
familiares chamavam de “Joca” – pelo tio e ex-presidente, Epitácio Pessoa – a
quem os sobrinhos chamavam, carinhosamente, de “Tio Pita” -, para ser o
presidente da Paraíba, os primos do Recife (Pessoa de Queiroz), que almejavam
também essa nomeação, e que foram preteridos nesse interesse, tinham o apoio
explícito e incondicional do coronel de Princesa.
Essas dissensões fizeram de João Pessoa e Zé Pereira,
desafetos platônicos e intransigentes quanto a uma convivência pacífica, ao
ponto de Joca, quando escolhido pelo tio “Pita”, dizer, ainda no Rio de Janeiro,
que, “feito presidente e chegando à Paraíba, darei uma vassourada em regra,
pondo em seus devidos lugares: os Dantas de Teixeira, os Santa Cruz de Monteiro
e os Pereira de Princesa”. Sabedor disso, o coronel Zé Pereira já ficou com a
mosca atrás da orelha. Eleito presidente da Paraíba, João Pessoa tomou posse no
dia 28 de outubro de 1930. Na solenidade de investidura no cargo de presidente
(governador) da Paraíba, onde estiveram presentes quase todas as autoridades
políticas do Estado, estava lá também o coronel Zé Pereira.
Na hora dos cumprimentos, João Pessoa inquiriu o coronel: “É
verdade que tens, em Princesa, cangaceiros em armas?” Ao que Zé Pereira
respondeu: “Os homens que tenho em Princesa são os eleitores de seu tio
Epitácio Pessoa”. Foi esse o primeiro encontro numa situação em que, ao invés
da promoção de uma distensão quanto à antipatia mútua, acendeu-se ainda mais a
fogueira da discórdia. Jamais se dariam bem.
Como se sabe, João Pessoa, assassinado por João Dantas - na
esteira da Guerra de Princesa, fruto de uma querela política que descambou para
o campo pessoal -, morreu em 26 de julho de 1930. Morto João Pessoa, depois do
longo périplo que seu corpo teve de cumprir desde Recife – onde foi assassinado
– até a então capital federal, Rio de Janeiro; depois de ser ovacionado como um
mártir e usado, o féretro, em prol dos interesses políticos que culminariam na
eclosão da Revolução de 1930, após seu sepultamento em grande estilo e sob
grande comoção, foi direto para o Céu. Não careceu sequer das recomendações
religiosas aqui na Terra, o próprio povo o transformou, imediatamente, em santo.
Até um altar foi erigido em sua honra na Praça principal da capital paraibana
que logo mudou o nome de Cidade de Parahyba para “João Pessoa”.
Já Zé Pereira viveu ainda por 19 anos após a morte de seu
desafeto. Falecido, vítima de apendicite aguda em 1949, o coronel foi direto
para o Purgatório em busca da remissão de seus pecados. Sortudo, Zé Pereira, aquando
da abolição do Purgatório pelo papa Bento XVI, em janeiro de 2011, foi um dos
agraciados com o prêmio do repouso eterno no Reino da Glória, onde encontrou
vários amigos e alguns inimigos. Nominando Diniz foi um deles, ocasião em que
lavaram algumas roupas sujas de suas vidas na Terra. Ali também, o coronel teve
tempo e oportunidade para botar os pontos nos “iis” com muitos dos que com ele
conviveram em sua turbulenta vida terrena.
No Paraíso, Zé Pereira, antes de instalar-se de forma
confortável, procurou saber sobre o presidente João Pessoa. Tinha um certo
receio em encontrá-lo. Afinal, nunca se deram bem na Terra e estavam agora,
ambos, sob o benefício da mesma regalia: em gozo de repouso eterno, na Casa do
Pai. Qual seria a reação de Pessoa quanto à realidade de compartilharem uma
convivência eterna? Se perguntava Pereira. No dia 20 de janeiro de 2011,
dedicado à honra de São Sebastião de Narbona, sob a égide do rei mito
português, dom Sebastião I, desaparecido durante a batalha de Alcácer Quibir,
no norte da África em 1578, aconteceu grande festa no Céu, em homenagem ao
Santo mártir.
Para tanto, foram convidadas várias almas de personalidades
representativas de todos os cantos do Planeta, dentre as quais, o presidente
João Pessoa. E, a convite da alma do rei Alberto I da Bélgica - na qualidade de
amigo pessoal de Zé Pereira, quando se encontraram no Rio de Janeiro, em 1920 –
o coronel também participou das comemorações sebastiânicas. Foi nessa ocasião
em que Zé Pereira se encontrou com João Pessoa. Para espanto do coronel, o presidente,
logo que o viu, partiu de onde estava e foi cumprimentá-lo de forma por demais
educada, porém com uma admoestação: “Bem-vindo ao Paraíso, mas espero que
tenhas deixado na Terra e no Purgatório tuas restrições à minha alma”. De forma
civilizada, Zé Pereira coçou o nariz e respondeu, altivo: “Nada tenho contra
ti, até porque, pagaste com a vida pelos erros que cometeste”.
A partir desse primeiro contato, João Pessoa viu que Zé
Pereira não o havia perdoado de todo e, mesmo no Céu, ainda guardava algumas
mágoas. “Ainda bem que compreendes quanto ao meu martírio”. E continuou: “A
viagem que empreendi ao Recife, fá-la-ia de qualquer jeito. Sabia eu das tuas
conspirações com o Catete para me arrebatar o poder. Eu sabia também que a
guerra contra Princesa estava perdida e, jamais, eu sucumbiria, além da
derrota, à humilhação de ser degradado do cargo de presidente, preso e exposto
à execração pública. Fui pra lá pra morrer mesmo”. “Então dizes que foi minha a
culpa de tua desventura?” Inquiriu Zé Pereira; ao que João Pessoa respondeu:
“Não somente tua, mas também daqueles que te usaram para me degradar. Bem o
sabes que foste um instrumento, tanto dos perrepistas reacionários quanto dos
liberais revolucionários que conspiravam em busca da ruptura institucional, com
a qual nunca concordei”. Quase que a concordar com o presidente, o coronel disparou
em tom angustiado: “Na verdade, João Pessoa, eu não esperava que a guerra de
Princesa se estendesse por tão longo tempo. Sempre achei que a intervenção
federal viria logo e que tu serias deposto. Ledo engano! Fomos mesmo usados
para fomentar um caldo de cultura que propiciasse a eclosão do movimento
revolucionário. Tu, pagaste com a vida, e eu, com um banimento que me custou
seis longos anos de perambulação pelos sertões nordestinos”.
Depois dessa primeira conversação, os dois se reencontraram e
continuaram o papo. Interessado em saber coisas que foram fruto de
especulações, o presidente perguntou ao coronel: “Mas, Zé Pereira, é verdade
que mandaste fechar, por fora, a porta do quarto em que eu dormi na noite em
que estive em Princesa?” “Não! Nunca! Isso foi Zé Américo que inventou, com a
intenção de me incriminar!” respondeu o coronel. E continuou: “Como é mentira
também que borraste de merda os lençóis de dona Xandu. Tudo inventado. Nisso eu
te faço justiça!” Asseverou Zé Pereira, inquirindo: “Mas, eu te pergunto, João
Pessoa: Por que não me informaste da chapa que excluía Suassuna? Faltou-te
coragem?” João Pessoa empertigou-se e disse: “A viagem que fiz a Princesa foi
com o intuito de mostrar-me destemido de ti e dos teus. Eu já sabia que tu
tinhas conhecimento da chapa e que estavas já em pé de guerra, respaldado por
meus primos de Pernambuco. Tudo o que fiz foi premeditado, desde a ida a Princesa
até a fatídica viagem ao Recife”.
No meio dessa conversa, chega Nominando Diniz, com quem Zé
Pereira já havia convivido no Purgatório. Cumprimentou o coronel, mas,
postou-se, todo solícito, ao lado de João Pessoa. Dando continuidade à
conversa, Zé Pereira, com ar de deboche e sabendo que, ali, o temperamento
explosivo de Joca não poderia ser encenado, aproveitou para adentrar no campo
pessoal e invectivou: “Presidente, falando na viagem ao Recife, é verdade que
foste também com o intuito de encontrar-te com tua amante, a cantora lírica
portuguesa Cristina Maristany?” João Pessoa demorou-se um pouco a responder e
disse: “Fui ao Recife em busca do meu martírio. A joia que comprei na joalheria
Krause foi para presentear minha filha adolescente que se formava no curso
primário”, e empertigou-se altivo com o dedo apontado para o coronel: “Agora,
tu, Zé Pereira, saíste do Recife, em 1905, fugido de uma briga que protagonizaste
no cabaré da proxeneta Laura Passos, ocasião em que houve até um assassinato no
qual, possivelmente estarias envolvido! Não apontes teu dedo sujo contra mim
porque, lá embaixo, todos sabem da tua história!”
Nesse momento, como que em regozijo pela exposição das
fraquezas de seu adversário político, Nominando abriu um largo sorriso, quase
gargalhou. Pálido de raiva, Zé Pereira, antes de responder a João Pessoa,
virou-se para o conterrâneo e disse: “Por que ris, Nominando? Não és um santo!
Lembras de “Chica do Portão?” Recomposto, o coronel dirigiu-se novamente para o
presidente, riu com ar de troça, e defendeu-se bem ao seu estilo: “Intrigas da
oposição, tu bem sabes que sempre fui um homem de bem e que, para desgraça tua,
assumi na marra o comando de Princesa. Não fora isso, não teria acontecido tua
morte, tampouco revolução alguma”. Surpreendentemente, João Pessoa abriu um
sorriso e encerrou: “Ah! Bem sabia que um dia tu admitirias tua culpa por toda
a desgraça que se abateu sobre mim e a Paraíba!”.
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