domingo, 31 de março de 2024

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

A Vaca Encaretada

Lagoa da Cruz é hoje o maior Povoado pertencente à Princesa. Carrega uma peculiaridade que lhe dá um certo chame, quando pertence a dois Estados da Federação: Paraíba e Pernambuco. Tem outra particularidade distinta do normal. A padroeira daquele arruado é Nossa Senhora do Carmo, denominação da Virgem que tem seu dia celebrado em 16 de julho, porém a cerimônia festiva, que louva a Santa, ocorre em outubro (mode o frio que ali é intenso em meados do ano). Essa tradição religiosa nunca deixou de ser comemorada e, em tempos idos, quando Tomé Francisco era dali o Intendente, a festa se fazia mais organizada e muito mais animada.

Para termos ideia do quanto se valorizava a festa da Padroeira, tanto o culto religioso quanto a festa profana eram bem organizados e, para lá, acorria toda a região. Durante a festa religiosa, eram celebradas novenas que tinham como patrocinadores os chamados “noiteiros”. Quanto ao furdunço profano, eram realizados leilões, jogos, gincanas e o indispensável “Bolo Doce” (um forró animado por sanfoneiro, zabumba e triângulo). Para o sucesso de ambos os eventos, o gauleiter, de Lagoa da Cruz, Tomé, tomava todas as providências. Enquanto mandava enfeitar a igreja e fazia banquetes para os frades carmelitas que iam de Princesa oficiar as celebrações religiosas, e depois se refestelavam em lautos jantares, Tomé não se esquecia também dos divertimentos populares, inclusive dos da luxúria.

Eram nove dias de festas culminando com a coroação da Santa, missa solene e procissão. Nesses dias, toda noite era rezada uma novena. Enquanto as famílias de bem e as beatas, na pequena capela, se conciliavam com Deus e com a Virgem, os jovens se divertiam “passeando” nas canoas e no juju de Manezim Cristóvão e tomando o capilé de João Costa. Diligente, “seu” Tomé não esquecia dos marmanjos e, numa providência inusitada para a época, o chefe do lugar designava um local, perto do Cemitério, para que fosse ali instalada uma franquia do Cabaré de Princesa.

Com a autorização do chefe e sob o comando da proxeneta e matriarca da luxúria - Estrela de Pedro Caboclo -, era instalado um barracão, onde funcionava um bar repleto de mesas e cadeiras, com chão batido para a realização de danças, que eram animadas por um sanfoneiro chamado Cordeiro de Mané Lopes e, num reservado, algumas camas destinadas ao libidinoso ofício da lascívia. Estrela escolhia as quengas mais jovens para esse desiderato e, enquanto os decentes rezavam na igrejinha, o amor, livre de qualquer censura, corria solto no Barracão.

Certa noite, idas de Princesa para a festa e já hospedadas na casa da irmã Donana (esposa de “seu” Tomé), Francisquinha e Domitila, duas solteironas juramentadas, na faixa dos 35 anos de idade, se aprifilaram e foram para a novena noturna naquele Povoado. Donzelas respeitadas – naquele tempo, preservar a virgindade era mérito - e da altíssima sociedade princesense, haja vista serem primas do coronel Zé Pereira, partiram as duas, da casa do influente cunhado, a pés e de braços dados – como era o costume à época -, rumo à igrejinha. A certa altura do percurso, viram um pequeno tumulto provocado por uma correria animada pelo tilintar de um chocalho.

Para não perder a postura, as duas donzelas se fizeram impassíveis e continuaram sua caminhada em busca da casa de Deus. Quando menos esperavam, se depararam com uma vaca encaretada correndo em sua direção. Desesperadas, sem soltarem as mãos, meteram os pés a correr. Naqueles meios, sem saber aonde ir, Francisquinha e Domitila enveredaram por um beco (e a vaca atrás delas) e viram um grande barracão iluminado. Pensaram: “é ali que vamos nos proteger”. Em disparada, sem saber onde estavam, entraram no Cabaré de Estrela. A vaca passou direto. Assim que botaram os pés no Barracão, um bêbado foi logo dizendo: “Opa, chegaram duas novatas!”. Nessa noite, acontecia um baile à fantasia. O sanfoneiro tocando, as quengas todas de máscaras, dançando e, as duas, atônitas, sem entenderem onde estavam, se viram completamente desamparadas.

Nesse momento, Domitila pediu, intimamente, socorro a Nossa Senhora do Carmo. E ele veio. No fundo do Barracão, sentados a uma mesa, estavam Zé Baião, que era casado com Telinha, prima legítima das duas desesperadas irmãs e, Antônio Fon-fon, sobrinho delas. Imediatamente Zé Baião as reconheceu, porém, aflito para não ser visto pelas moças naquele ambiente de luxúria, aconselhado por Antônio, saiu pela porta dos fundos, rodeou o Barracão, fez-se que ia passando em frente àquele lugar de prazer e adentrou ao ambiente. Fazendo-se surpreso com a presença das moças, foi logo gritando: “Parem essa sanfona, vocês num tão vendo que se encontram aqui duas moças direitas da sociedade!?” Estrela, também mascarada e irritada com a ordem, foi logo dizendo: “E que diabo essas infeliz tão fazendo aqui?”.

Zé Baião, na qualidade de irmão de Tomé Francisco, portanto contraparente das “meninas”, perguntou: “O que houve que vocês vieram esbarrar aqui?” Antes de Francisquinha, que era mais afoita, responder, Domitila, em choro convulsivo respondeu entre soluços: “A va-ca en-ca-re-ta-da, a va-ca en-ca-re-ta-da!” Diante dessa resposta, o tempo fechou. Estrela pensou que era com ela e foi logo disparando: “O que é que essas quenguinhas tão pensando? Vaca encaretada é a puta que pariu!” Do lado das tias, Antônio Fon-fon quis partir pra cima da cafetina, mas Zé Baião, exercendo sua autoridade, falou sério acalmando os ânimos, pediu respeito às donzelas, pegou as “meninas” pelo braço e as conduziu - ambas aos prantos -, de volta para a casa da irmã Donana. Novena, já era.

Ao chegar à residência de Tomé e Donana, Domitila ainda chorava. Francisquinha, no entanto, já recomposta, a sorrir, passou a contar a história. Encartada e despachada que era, Telinha, despeitada porque sabia que seu esposo, Zé Baião, frequentava aquele lupanar esporádico, disparou: “E que diabo vocês foram buscar naquela porra!?” Rindo, Francisquinha tentou explicar: “Mulher... Nós íamos para a novena, mas uma vaca encaretada botou em nós e desviou nosso percurso”. E continuou, dizendo haver sido aquilo a maior aventura de sua vida. A solteirona dizia sempre que tinha muito medo de morrer, mas que agora morreria feliz, pois mesmo sem nunca ter conhecido um homem, estava alentada porque conheceu um cabaré: “Nunca pensei que fosse um lugar tão animado; pena que Zé Baião e Antônio apareceram para atrapalhar”, ironizou Francisquinha.



 

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