domingo, 23 de junho de 2024

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

A feiticeira, o defunto e o bêbado

Ela andava com um terço na mão direita em contínuo balbuciar sem que emitisse som algum e só interrompia esse pseudo movimento de ventriloquia quando precisava falar de algo ou de alguém. Sidônia era uma figura esquisita. Morena clara, estatura mediana, magérrima, longos e parcos cabelos negros a lhes caírem pelas costas, face escavada, olhos grandes arregalados, nenhum sinal de seios e tudo isso realçado pela esquisita indumentária composta por um estojo de saia blusa, esta lisa e, a saia, com estampas extravagantes pela profusão do colorido. Era um misto de índia e cigana. Figura por demais esquisita, principalmente pela irritação que causava quando abria a boca, a falar pelos cotovelos, num tom estridente e raivoso.

Sidônia dava conta de tudo o que acontecia no povoado do Caroço, um arruado com pouco mais de trinta casas esparsas, na beira do rio do Ouro na extrema do Piauí com a Bahia, pertencente ao município de Corrente. Solteirona, abominava o sexo e se vangloriava da façanha de nunca haver tido um homem em sua cama. Para ela, a conjunção carnal - não fora com o intuito de procriar - era uma pouca vergonha. Sempre que alguma das mocinhas do lugar se preparava para se casar, Sidônia perguntava logo: “Já providenciou o lençol?” Ao que as noivas, surpresas, inquiriam: “Que lençol?” “O lençol com o buraco no meio, minha filha! Não vá me dizer que você vai se apresentar nua despida na frente de seu marido...!” Essa pergunta, nunca respondida, servia de chacota.

Em tudo Sidônia se metia, dava conta da vida de todo mundo e se comprazia com as desgraças alheias. De garra de um galho de pinhão roxo, a mulher fazia as vezes de rezadeira e se dizia curandeira de quase tudo: mordida de cobra, espinhela caída, manicunia, mau olhado, achados e perdidos, até corpo, ela fechava. Além dessas atribuições, a mulher fazia as vezes de parteira, rezava novenas, encomendava corpos ao além; uma verdadeira panaceia espiritual. Sua figura dava medo porque, além de diferente, quando falava parecia ser dona de verdades incontestáveis. Diziam, aos cochichos, que Sidônia era, além de adivinhona, feiticeira e que trabalhava com apetrechos vindos da Bahia.

Seu prazer mórbido pela tragédia era notório. Quando acontecia um acidente ou algum caso envolvendo atos de violência e que não resultava em morte, era patente sua decepção. Mesmo auto investida das atribuições de curandeira e rezadeira, a mulher, era mesmo igual ave de mau augúrio, se deleitava com as misérias alheias e rogava pragas aos montes contra os que ousassem desafiá-la nas suas convicções.

Certo dia, chegou-lhe a notícia de que o chefe político do arruado, José Maria Belo, estava acamado vítima de um mal que ninguém sabia do que se tratava. Levado para Xique-Xique na Bahia, foi desenganado pelos médicos e voltou para morrer em casa. Sidônia resolveu visitar o doente. Aprontou-se toda, vestiu a saia mais colorida que tinha no seu baú e partiu para a casa de “seu” Zé Belo. Já levou consigo seus apetrechos de cura e, lá chegando, foi logo pedindo para ficar a sós com o enfermo.

Desenganado que estava, a única filha do velho não ofereceu resistência, pois, tudo que dali viesse, seria lucro. A mulher trancou-se no quarto do homem, um ancião com mais de 80 anos e, no exercício de sua cabala, balançou seu galho de pinhão roxo em consonância com o balbuciar de orações ininteligíveis. O velho, ofegante e nem aí para nada, tava só arquejando no leito de morte. Mesmo assim, numa peleja por uma reação do doente, Sidônia gastou mais de uma hora e, quando saiu do quarto do doente, demonstrava cansaço e suava de bica.

“Como está o velho?” Perguntou uma neta que cuidava dele. “Quase nas mãos de Deus, minha filha, quase nas mãos de Deus...” Respondeu a rezadeira. “Mas... E as rezas da senhora não servem para lhes dar uma melhora?” insistiu a moça. “São muitos os pecados de ‘seu’ Zé Belo! Olhe, minha filha, se ele não matou, mandou; quase todos os filhos de suas moradeiras, são dele; as terras de sua propriedade foram, quase todas, usurpadas dos pobres agricultores...” “Então...”, interrompeu a neta: “Vovô tá no inferno?” “Não, minha filha, a força da oração é muito grande e, com minhas rezas, ‘seu’ Zé Belo, certamente, vai para o Purgatório espiar suas culpas e, no tempo certo alcançará o reino da glória”. Dito isso, da sala onde estavam as duas e mais alguns curiosos, escutaram um forte barulho, um ronco estrepitoso vindo do quarto onde estava o enfermo e acorreram, todos, para ali.

Chegados ao aposento do homem, este, imóvel, parecia já morto. Mais que depressa, Sidônia, antes de rezar, tirou da bolsa um pequeno espelho e botou junto à boca do moribundo. Depois disso, com ar de desolação, virou-se para a neta de Zé Belo e disse: “Me dê uma vela, acesa...” Pôs a vela na mão do velho e começou a rezar e dizer: “Lembre do nome de Jesus! Lembre do nome de Jesus!” De seus apetrechos, tirou um frasquinho com um líquido amarelado e untou a testa e o peito do homem que já não se bulia mais. Em pouco mais de uma hora, chegou o vigário de Corrente que havia sido chamado para dar a extrema-unção.

Padre César, um velho sacerdote ranzinza e da velha guarda da Igreja, abominava rezadeiras a quem chamava de bruxas, mandou logo a mulher se afastar de perto do quase defunto, ao que Sidônia, mesmo de cara feia, obedeceu. O padre sacou do bolso de sua batina um pequeno recipiente de vidro contido de água benta, aspergiu o corpo e começou a rezar: “Iesus suos infirmorum curandorum gratia discipulos non tantum mist, sed pro iis peculiare instituit sacramentum: Unctionem scilicet infirmorum”. Após esse latinório incompreensível para todos, o cura entregou aquela alma a Deus e autorizou a preparação do corpo para o velório.

Enquanto os familiares pranteavam o finado, com a saída do padre, Sidônia cuidou de aprontar o defunto para o velório que seguiria ao longo daquela noite até o sepultamento no dia seguinte. Junto com a net de Zé Belo, trancou-se na câmara de morte e, depois de assear o cadáver, vestiu-o com a melhor roupa e mandou deitá-lo numa cama, exposto na sala da casa para as “incelências” e o indispensável retrato. Depois disso, a mulher foi para casa prometendo retornar, o que fez cerca de duas horas depois.

Chegada de volta, Sidônia deparou-se com o féretro exibindo imagem horrível: a boca escancarada, a dentadura protuberante e coalhada de dentes de ouro. Um rico monstro. A mulher pediu uma rodilha e, antes de amarrar a cabeça do finado, envolvendo com o pano, desde o maxilar até o cocuruto do crânio, fechando, num estalo, a boca do defunto, recolheu a chapa do homem e, ligeira, jogou-a dentro de sua bolsa. Feito isso, deram-se às orações e às cantorias típicas dos velórios daquele tempo. Reunida com outras mulheres do lugar, Sidônia tirou a primeira “incelência”:

Desse que está aí já chegou a hora

É de levar, é de levar

Essa alma pro reino da Gulora

Livrai-o de seus pecados

E leva esse presente pra Nossa Senhora

Não tem medo nem tem pavor

Leva pena e deixa saudade

Segurado no terço da Mãe de Deus

Vai pra casa do senhor

Chegou a hora do adeus. 

O velório durou a noite toda. Dada a importância do morto, acorreram todos para prestar as últimas homenagens àquele que havia sido o condutor de seus destinos por muito tempo. Já que não havia viúva (o velho era solteirão e só tinha uma filha reconhecida como tal), muitas mulheres choravam desconsoladas e, muita similaridade havia entre os rostos que circulavam no velório, com o retrato do homem dependurado na parede principal daquela sala.

De repente, em meio às rezas e cantorias, um barulho conhecido, saído de debaixo da cama do defunto – como se estivera vivo - espantou a todos. Pararam as rezas e todos botaram as mãos tapando os narizes se protegendo de um fedor horrível. Um bêbado, que estava sentado num tamborete, gritou: “Eita! Balançaram o galho de merda e caíram até as verdes!”

 


 

 

 

 

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