domingo, 18 de agosto de 2024

Domingo eu conto

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

O Livre Arbítrio

O Livre Arbítrio é um instituto baseado no argumento sempre tão usado pelos que não conseguem definir ou justificar com precisão o motivo das desigualdades sociais, comportamentais, dentre outras -, serve como desculpa para justificar erros, omissões, abandonos, etc. No âmbito das religiões o “livre arbítrio” justifica situações em que se questiona a aplicação dos desígnios de Deus na vida das pessoas, principalmente aquelas mais carentes de meios financeiros, intelectuais ou de discernimento. Para os que defendem essa maléfica e mascarada tese, a alegação é a de que Ele escreve certo por linhas tortas quando escarnecem dos desvalidos em benefício de seus confortos espirituais baseados na hipocrisia religiosa.

Certa vez, participando de uma palestra ministrada por um pastor evangélico, membro de uma importante Igreja Batista, ouvi o mesmo afirmar, em resposta a uma pergunta formulada por uma senhora presente, que questionava sobre o motivo de existirem pessoas que tinham mais sorte do que outras e que viam seus problemas serem resolvidos com mais e maior facilidade do que os de outras. Queria, aquela mulher, que o religioso, baseado em seu empírico ministério e em seu conhecimento teológico, explicasse ou justificasse tal diferença entre “iguais”.

Contrita e adepta dos ensinamentos religiosos, a mulher, queria apenas uma orientação. Em face do questionamento da crente, o pastor, de forma evasiva simplesmente respondeu: isso é o “livre arbítrio”; acrescentando que Deus não interferia diretamente na vida das pessoas; que cada um detinha o direito de conduzir sua própria vida da maneira que quisesse; que os ensinamentos religiosos, serviam como guia para os crentes, porém, cada um teria a liberdade de segui-los ou não, ou de fazer as coisas em conformidade com suas vontades.

Ouvindo isso, levantei-me da cadeira em que estava e fiz uma interpelação, solicitando emitir um comentário sobre o assunto em pauta, no que fui atendido. Formulei uma pergunta ao pastor, contando uma história. Comecei dizendo que conhecia algumas mulheres que, em tempos passados, se tornaram prostitutas porque, quando “perdidas” - termo usado antigamente para definir moças donzelas que se entregavam à prática sexual antes do casamento -, foram sumariamente expulsas de casa pelos pais ou irmãos e, diante da severa recomendação para que nenhum dos familiares seus lhes dessem guarida, caíram no mundo e, os únicos locais que encontraram para abrigarem-se, foram os cabarés.

Diante do exposto, perguntei ao pastor: teriam essas moças – algumas ainda impúberes -, “livre arbítrio” para se conduzirem condignamente em obediência aos preceitos e ensinamentos religiosos e morais daquela época? Ou, em caso de cometimento do “pecado” capital da luxúria, saberiam elas se conduzirem pelo mundo afora sem nenhum amparo de terceiros? O pastor, titubeante, respondeu que os desígnios de Deus são impenetráveis e insondáveis e que para toda causa existe um efeito e citou a máxima popular dizendo: “às vezes, Deus escreve certo por linhas tortas”.

Após essa assertiva desprovida de consistência, perguntei ao reverendo se enquanto isso seria permitido por Deus, aquelas moças se depravariam, forçosamente, nos bordéis, onde, além de prostituírem-se, viciar-se-iam na bebida e nas drogas, além de estarem expostas a todo tipo de violência e às doenças inerentes à profissão mais antiga do mundo e acrescentando, em tom interrogativo, se tudo isso aconteceria com a permissão de Deus?

Além de nada mais responder, aquele representante do Divino aqui na terra, nada disse sobre o que fazem ou poderiam [eles] fazer para mudar esse comportamento ou promover verdadeiramente o famigerado “livre arbítrio”. Atêm-se, hipocritamente a orar, rezar e louvar a Deus, enquanto suas “criaturas” – principalmente as mais desamparadas -, sofrem sem nenhuma assistência espiritual ou financeira das diversas e ricas religiões que, em sua maioria – principalmente a religião Católica - primam, principalmente, pelo fausto da solenidade e do poder temporal.

Depreendi que o “livre arbítrio”, para eles, condôminos da fé, é mais um instrumento acomodadiço para justificar culpas por omissões e promover o conforto espiritual desses que nada fizeram ou nada fazem para dar oportunidades àqueles menos favorecidos pela sorte para conduzirem-se condignamente. Corroborando esse pensamento, lembro aqui a confortável posição das Igrejas Católica e Luterana com relação à escravidão de negros na era moderna quando, hipocritamente, não só anuíram quanto à existência da Escravatura, como também se locupletaram do elemento servil como proprietários de grandes lotes de escravizados. Teriam esses cativos o poder do exercício do livre arbítrio?

Além do cerceamento da liberdade de seus escravos, a Igreja Católica os ungia com o batismo, obrigava-os a professar a fé no seu culto religioso, enquanto promovia a segregação dos mesmos quando não lhes permitia a assistência às missas e aos ritos da fé católica em templos e igrejas juntos com os brancos e, mais adiante, já depois da extinção da Escravidão – no caso da Igreja Católica -, determinando a proibição de que negros pudessem ser ordenados padres. O exemplo mais acabado e mais gritante da hipocrisia em que se constitui o famigerado “livre arbítrio” é o próprio instituto da Escravidão que antagoniza todas e quaisquer condições de liberdade.

Com efeito, o livre arbítrio pode sim ser praticado por aqueles detentores das condições necessárias de fazê-lo. Transferir o exercício desse instituto para todos, de forma generalizada, é arbitrário, portanto inconcebível. Como pode, alguém cerceado das condições de agir - seja pela falta de meios ou por incapacidade intelectual ou social - fazer-se dono de sua vontade? No comando dessa prática, a hipocrisia vadeia quando a norma existe somente para justificar uma situação que mascara valores e situações completamente desiguais. Nesse caso, o livre arbítrio é praticado pelos que podem, contra aqueles que não possuem a mínima condição do exercício do querer.



 

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