domingo, 25 de agosto de 2024

Domingo eu conto


Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

Padre Cícero, santo e herói da Pátria

No dia 20 do último mês de julho, completaram-se 90 anos da morte do padre Cícero Romão Batista, falecido em 1934. Nascido no Crato/CE em 24 de março de 1844 e ordenado padre em 1870, em Fortaleza/CE, voltou à sua terra natal, quando foi designado capelão da Igreja de Nossa Senhora das Dores, no então povoado de Juazeiro, pertencente à freguesia do Crato. Ali, Cícero se tornou um verdadeiro cura d’almas. Era um padre que valorizava as pregações, visitava as casas de seus fiéis, ouvia confissões, dava conselhos e ensinamentos para o enfrentamento das secas, praticava caridade, enfim, um verdadeiro pastor.

Mesmo cuidando das coisas da religião, o padre exercia também ingerência na política da região polarizada pelo Crato o que o fez, mais tarde, galgar os postos de prefeito de Juazeiro, deputado estadual e vice-governador do estado do Ceará. À época de Cícero, havia somente uma diocese no Ceará, sediada em Fortaleza, comandada pelo bispo dom Joaquim José Vieira – esse prelado mantinha uma relação por demais harmoniosa com o padre Cícero chegando a tecer elogios ao sacerdote quando dizia ser, o padre Cícero: “Uma joia da Igreja”. Pela força do destino aconteceu, mais tarde, um fato inesperado que provocou uma reviravolta na vida do padre Cícero Romão Batista, e o fez tornar-se a “ovelha negra” da Igreja.

No dia 1º de março de 1889, durante a celebração de uma missa, na Sexta-Feira Santa, quando no ato da distribuição da comunhão aos seus fiéis, o padre Cícero, ao depositar a hóstia – fruto da transubstanciação – na boca da beata Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, a partícula sagrada converteu-se em sangue. De imediato, os devotos presentes afirmaram que se tratava de um milagre e que a hóstia havia se transformado no sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Espalhada a notícia do “milagre”, muitos acorreram ao Juazeiro para constatar esse fenômeno da presença Divina, em forma de sangue, o que passou a ocorrer todas as vezes em que o sacerdote dava a comunhão à pobre beata.

Maria de Araújo, uma cafuza, quase negra, analfabeta, raquítica e de saúde mental prejudicada, era uma donzela juramentada que optara pelo voto de castidade e, entonada num tosco hábito (similar aos das freiras), servia na casa do padre e, sem nenhuma pretensão, viu-se de repente no olho do furacão como protagonista do “milagre”, fato que teve repercussão gigantesca. Padre Cícero, sem explicação para o que seria uma manifestação Divina, mesmo assim não desestimulou que os fiéis fizessem desse acontecimento inexplicável, algo milagroso e passível de adoração. Pelo contrário, estimulou, quando até o lenços usados para enxugar o sangue da boca da beata serviam como peça de veneração.

O suposto milagre reverberou por todo o estado do Ceará chegando aos ouvidos do bispo de Fortaleza, dom Joaquim José Vieira que, imediatamente, determinou a formação de uma comissão, composta por dois padres, para que fosse procedida uma investigação sobre a veracidade do caso. Numa primeira análise, a comissão atestou ser verdadeira a transformação da hóstia em sangue. Todavia, não satisfeita, a autoridade eclesiástica, determinou uma nova investigação com a incumbência de que fosse desmontado o “milagre”, o que acreditava ser uma farsa. Assim foi feito e, nessa segunda diligência, a comissão optou por determinar inverídico o “milagre” do Juazeiro. No curso das investigações, um religioso francês, padre Pierre-Auguste Chevalier, da Diocese de Fortaleza, de forma jocosa e preconceituosa, teceu o seguinte comentário: “Nosso Senhor não iria deixar a Europa para fazer milagres no Brasil”.

Em face do resultado da nova análise, que veio a seu contento, o prelado, fazendo jus ao eurocentrismo do auxiliar francês e diante da discordância do padre Cícero em face do veredicto da Comissão, suspendeu o padre Cícero das ordens sacerdotais, proibindo-o de celebrar missas e de oficiar quaisquer sacramentos. Suspenso, o cura de Juazeiro se afastou por algum tempo de sua Capela e foi passar uns dias na cidade de Salgueiro/PE, na casa de um sobrinho da “coronela” cearense, dona Fideralina Augusto.

Tempos depois, o padre retornou ao Juazeiro e, mesmo proibido, passou a casar e batizar, além de fazer sermões particulares em frente à sua residência, o que atraía centenas de fiéis. Por conta do “milagre”, das pregações e da influência política do padre Cícero, acorreram muitos para Juazeiro e o lugar passou por uma onda de progresso e logo se transformou numa vila bastante próspera, chegando a superar - em tamanho e população – a sede do município, Crato. Em 1911 o antigo arruado do Juazeiro se tornou cidade e teve como seu primeiro prefeito o padre Cícero Romão Batista.

Insatisfeito com as punições impostas, o padre Cícero resolveu ir a Roma tratar diretamente com o Papa. Chegando à Cidade Eterna, o padre cearense hospedou-se num colégio de freiras aguardando ser recebido pelo chefe da Igreja Católica, o papa Leão XIII (1878-1903). Não conseguindo esse desiderato, foi examinado pelo Tribunal do Santo Ofício, que remeteu ao Papa um Relatório sobre todas as ocorrências no Juazeiro. Enquanto isso, Cícero ficou no aguardo da decisão papal, o que só veio quando ele já retornara ao Juazeiro. Sem muita surpresa, o padre recebeu a sentença do Sumo Pontífice que, em sua infalibilidade, confirmava o que havia sido determinado pelo bispo de Fortaleza.

Afastado em definitivo de suas obrigações sacerdotais e sem esperança da absolvição, Cícero adentrou de vez no mundo da política quando, em 1914, aliou-se ao governador deposto do Ceará, Nogueira Aciolly e lutou no episódio conhecido como “Sedição de Juazeiro” quando as forças restauradoras derrotaram a polícia cearense do então governador Franco Rabelo, o que proporcionou a recondução do seu amigo Nogueira Aciolly ao cargo de governador do Estado e, com isso, o padre revestiu-se de grande prestígio junto aos donos da ordem reestabelecida.

A reconciliação do padre Cícero com a Igreja de Roma só veio acontecer em 2015 quando o papa Francisco aceitou a abertura do processo de beatificação do sacerdote cearense. A partir daí, Cícero passou a ser considerado um “Servo de Deus”, a caminho da reabilitação, o que poderá levá-lo a ser um dia Beato e, tal qual Joana D’Arc - que foi também excomungada, queimada na fogueira da Santa Inquisição e, depois, tornada santa -  até ser canonizado Santo da Igreja que lhe excomungou. Desde então, a imagem do “Padim Ciço” teve a permissão para ser exibida nas Igrejas da religião Católica.

Na verdade, para o povo do Juazeiro e de quase todo o Nordeste brasileiro, o padre Cícero já é considerado um Santo; mesmo porque, sem a anuência do Vaticano, mas com a aclamação dos devotos, Cícero já é, há muito tempo, considerado um santo popular consagrado pelos fiéis, porém não reconhecido (ainda) pela Igreja quando acusado de heresia foi condenado um dia. Nesse caso, a infalibilidade do papa Francisco tem sido muito mais benéfica à fé nordestina – quando reabilita o padre Cícero - do que a falível decisão do papa Leão XIII quando ratificou sua excomunhão. Malgrado a hipocrisia e a incoerência da Igreja Católica, quando reabilita o Padre Cícero com o intuito de estancar a sangria desatada de fiéis católicos rumo aos cultos evangélicos, só podemos acrescentar que: Roma locuta, causa finita est.

Não bastasse a absolvição eclesiástica promovida pela Igreja Católica, em 2015, pelas mãos do Papa Francisco, o padre Cícero Romão Batista foi também reconhecido pelo poder civil e é agora considerado “Herói da Pátria”. Através da Lei nº 14.693/23, de iniciativa do presidente Luís Inácio Lula da Silva e aprovada pelo Congresso Nacional e que1 foi sancionada em 11 de outubro de 2023, com o seguinte teor:

Art. 1º Fica inscrito no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, que se encontra no “Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves”, em Brasília, Distrito Federal, o nome do Padre Cícero Romão Batista.

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Além de ser considerado “Servo de Deus” pela Igreja de Roma e Santo Popular pela maioria dos nordestinos, Padre Cícero é agora também, um Herói da Pátria. Rehabilitatio quae sera tamen!



 

 

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