sexta-feira, 29 de abril de 2022

Crônicas dos Tempos de Antanho

A Freira e o Pé-rapado

Corria o ano de 1972. A cidade era a de Cajazeiras, na Paraíba. Ali, existia um Convento de Freiras da Ordem das Dorotéias – Congregação fundada em 1834 por Santa Paula Frassinetti. Vizinho ao Convento, num prédio simples, funcionava uma escola para moças, que era administrada pelas irmãs Dorotéias. A Escola era particular e tocada por oito freiras, sob a direção da madre superiora, uma italiana, sóror Benigna Matteo. Dentre essas religiosas estava a sóror Magdalena Domiciano, a quem suas confreiras chamavam carinhosamente de “irmã Lena”, que era a Secretária Administrativa da Escola.

Sóror Magdalena, que tinha o nome civil de Adalzira Domiciano, era uma mulher de aproximadamente 35 anos de idade, morena clara, de baixa estatura e de relativa beleza. Olhando para a religiosa, apesar da indumentária (o hábito), se observavam traços de um corpo sinuoso e ela, em constante alegria - mesmo no recatamento que sua condição exigia - se fazia muito simpática. No exercício da função de Secretária da Escola, a irmã Lena era muito eficiente e tratava a todos com extremada educação, presteza e respeito.

Malgrado ser aquela uma escola só para moças, alguns jovens do sexo masculino frequentavam-na quando do acontecimento de jogos, gincanas, apresentações folclóricas ou atos religiosos. Essa mistura de gêneros foi a desgraça de irmã Magdalena. Elenildo Macena era um desses jovens que sempre compareciam aos eventos daquela Escola. Rapaz bonito, contava 18 anos de idade, alto, moreno, bem feito de corpo, inteligente e, porque não dizer, muito interesseiro. Embora com sobrenome nobre, Elenildo, que tinha o apelido de “Niniu”, era pobre; filho de um fotógrafo lambe-lambe e vivia no afã de adentrar ao concerto dos ricos.

Num desses eventos, Elenildo conheceu a sóror Magdalena e logo encetaram amizade. Tanto ele quanto ela gostavam de ler e foi este, o canal inicial, para uma aproximação mais efetiva. Começaram trocando livros e, por conta disso, o rapaz começou a frequentar a Secretaria da Escola. Ali, discutiam assuntos literários e ouviam a execução de músicas em discos de vinil numa velha vitrola. O tempo foi passando – para eles muito rapidamente – e a amizade foi aumentando. Logo, Elenildo, interessou-se por aprender datilografia e, a freira, muito solícita, disponibilizou-se em ensinar-lhe.

Na sala em que funcionava a Secretaria, além de uma grande estante com vários livros e do móvel que acondicionava a velha vitrola, existiam dois birôs, algumas cadeiras, fichários e uma pequena mesa que servia de suporte para uma máquina de escrever. Já demonstrando alguma intimidade com o jovem mancebo, irmã Lena – que o chamava pelo apelido, Niniu – começou a ensinar a ele o ofício de bater máquina. Para tanto, a pequenina freira, debruçava-se sobre os ombros do rapaz, sentado a uma cadeira, e, no mais das vezes, estendia suas próprias mãos em auxílio no dedilhar das teclas.

Já havia uma aproximação emocional entre os dois. No entanto, essa aproximação física foi o estopim para a deflagração de perigoso sentimento, que culminou num namoro proibido o que provocaria, mais tarde, grande escândalo na cidade de Cajazeiras. Aulas intermináveis eram ministradas pela religiosa e, Niniu, nada aprendia. Porém, nesse roçar de corpos, acendeu-se a chama do desejo carnal. Quando sozinhos, na Secretaria, beijavam-se efusivamente e, no intervalo para o almoço, aproveitavam o deserto de pessoas para a consumação de abrasivos atos sexuais. Irmã Magdalena estava completamente apaixonada por Elenildo, e este, a lhe corresponder na virilidade que cabia a um jovem recém-saído da adolescência. Estavam juntas aí, a fome com a vontade de comer.

Cega de paixão, a freirinha, não se deu conta de que já pairavam suspeitas quanto a essa estranha “amizade” entre uma religiosa e um jovem rapaz. Sem poder dizer se foi proposital, certo dia, uma das professoras da Escola, dona Nilda Lulú, durante o intervalo do primeiro horário, resolveu chegar mais cedo e dirigiu-se à Secretaria a fim de pegar uma caderneta. Adentrou ao recinto sem bater na porta, e deparou-se com Lena e Niniu abraçados, beijando-se na boca. O escândalo estava feito.

Diante dessa cena, dona Nilda, horrorizada com o quadro, soltou um grito:

- Meu Deus do Céu! O que é isso?!”.

Mais do que depressa a sóror se recompôs colocando, de volta, o véu à cabeça e foi logo rogando, aflita:

- Nilda, pelo amor de Deus, você não viu nada... – implorou Magdalena

- Vi sim, irmã, vi sim! E vou comunicar à madre superiora. Isso é uma pouca vergonha! Onde já se viu uma freira dependurada nos beiços de um rapaz? E olha o estado dele – apontando para as partes baixas do jovem - isso é um escândalo! – Dito isso, a professora Nilda retirou-se do recinto.

Chorando muito, a freira, recomendou a Niniu que fosse embora dali e a deixasse entregue à própria sorte. Atordoado, mas sem demonstrar qualquer reação de apoio à desvalida amante, Elenildo escapuliu. Em seguida, adentraram à sala a madre Benigna Matteo acompanhada de mais duas irmãs e da professora Nilda. De forma peremptória, a superiora foi logo arguindo:

- Magdalena, o que aconteceu aqui?

Ao que, chorando, completamente decaída e, de forma humilde, a desventurada freira respondeu:

- Tudo e nada, madre. Eu já não sou mais nada e, como disse o Pai: Em suas mãos, eu entrego o meu espírito.

De um rompante, madre Benigna aproximou-se de irmã Magdalena e arrancou o véu que lhe cobria a cabeça, dizendo, aos gritos:

- Arrume suas tralhas e suma daqui! Não nos envergonhes mais! Você não faz mais parte da nossa irmandade. És a vergonha da nossa Congregação, rua!!!

Depois desse escândalo, o que repercutiu negativamente por toda a cidade, a sóror deixou de ser Magdalena e voltou a ser Adalzira e foi embora de Cajazeiras em busca de sua família que residia em uma comunidade rural de Princesa, também na Paraíba. Elenildo, passou algum tempo em Cajazeiras, encetou namoro com uma moça da alta-roda da sociedade cajazeirense e, de novo, impedido de levar a frente seu intento de adentrar no meio dos ricos, resolveu evadir-se de sua terra e foi tentar a vida no Recife onde conseguiu formar-se médico e contrair matrimônio com uma famosa jornalista. Constituiu família e, hoje, aposentado, conta sua história aos netos.

Adalzira, tal qual uma “madalena arrependida”, após perder o hábito e o amor de Niniu, foi-se embora para o Rio Grande do Sul e dela, não tivemos mais notícias; desapareceu para séculos sem fim, amém.

Obs.: Qualquer similaridade, desta crônica, com pessoas reais, lugares ou situações considere-se apenas coincidência.







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