domingo, 10 de setembro de 2023

Domingo eu conto

A Ceifadora

Por: Domingos Sávio Maximiano Roberto

Zebedeu acordava cedo e seu primeiro afazer era cuidar dos passarinhos. Em três gaiolas grandes ele mantinha presos dois canários da terra, um cabeça vermelha e um golinha. Todos os dias limpava as gaiolas, trocava a água, botava xerém e levava os bichinhos para tomarem sol dependurados na parede frontal de sua casa. Era seu maior divertimento, se comprazia com isso. Aliás, eram, os passarinhos, suas únicas companhias. Depois que sua mulher foi embora com um caixeiro-viajante, sem filhos, “Bedeu” – como era chamado pelos mais íntimos – ficou sozinho e não quis mais conviver com seu ninguém.

Tirante de uma bodega e de um casarão abandonado, perto de sua casa existia somente uma outra residência onde morava um casal de amigos: Batista e Maria. Amigos com algumas reticências, pois, Maria, nutria pelos seus três gatos o mesmo amor que ele tinha pelos passarinhos. Todo cuidado era pouco e, os gatos, viviam a rondar a casa de Bedeu. Olhando para cima os bichanos viviam a desejar as aves de estimação do vizinho. Maria era carinhosa com seus bichos e os tratava como gente. Tinham nomes. O maior e mais velho chamava-se lulu, era um gato amarelo de rabo grosso; outro levava o nome de palito, magrinho e desnutrido, parecia doente e, o terceiro, era um gato preto raciado com angorá braiado com siamês e se chamava peralta.

Bedeu cuidava de um pequeno roçado onde cultivava milho, feijão e algumas verduras, frutas e legumes. Mas seu sustento não se atinha somente a isso, fabricava bainhas de faca em couro, consertava selas de animais, amolava facas e era perito na confecção de foices. Na sua solidão, além do canto dos pássaros, sua outra animação era um pequeno rádio de pilha de onde ouvia músicas e se alentava para dormir, escutando a Voz do Brasil. De dia, pouco ligava o rádio para não atrapalhar a cantoria dos pássaros, principalmente o show do golinha quando cantava de estalo. Vida simples e tranquila demais como que prenunciando alguma tragédia.

Batista era casado com Maria. Não tinham filhos. Diziam os fofoqueiros, no Povoado próximo, nos dias de feira, que ele era “maninho” e que não conseguia apagar o fogo de Maria. Batista – um sujeito moreno, baixo e atarracado - só ele sabia que não fazia filhos. Quando criança teve papeira que desceu pros ovos e lhe deixou estéril. Maria, era uma morena de boa estatura, feições bonitas, bem feita de corpo e bem mais nova do que o marido. A alegria constante estampada no rosto da mulher contrastava com a sisudez e a rudeza de Batista. Mesmo assim, diziam, a boca pequena, que ela mandava nele.

Zebedeu era um homem branco, alto, forte, espadaúdo, de feições másculas e rudes, mas afável no trato. Falava manso e baixinho. Mesmo sem ter tido educação doméstica era um cabra de bons modos. Era de poucos amigos, mas sempre cumprimentava os vizinhos com atenção e, às vezes, aceitava convites para almoçar com eles. Nessas ocasiões, Bedeu notava um comportamento avoado de Maria. No vestir, no sentar, no falar... Isso, mesmo na frente do marido; o que o deixava sempre constrangido com a desenvoltura da mulher de Batista. Se continha porque palpitava Maria.

Certo dia, Batista teve de fazer uma pequena viagem para visitar a mãe doente, num sítio próximo e, estranhamente, Maria recusou-se em acompanhá-lo alegando que não poderia deixar seus gatos sozinhos. O homem foi, Maria ficou. Bastou o esposo partir, a mulher inventou um chá e chamou o vizinho para beber com ela. Tardezinha de uma sexta-feira. Bedeu aprontou-se todo e foi para casa de Maria. “Acho que não tá muito certo a gente ficar sozinhos aqui na ausência de seu marido”, disse Zebedeu antes de sentar-se à mesa de Maria. “Besteira, homem, ele nem precisa saber disso”, respondeu Maria. “Senta. Fiz chá e broa de milho, estão gostosas, experimenta...”

Zebedeu, meio envergonhado, tirou o chapéu, puxou o tamborete e sentou-se. Maria, ao invés de ocupar o lugar fronteiro a ele na mesa, preferiu sentar-se um pouco afastada encostada na parede. “Serve-se homem, fica à vontade”. Bedeu pegou o bule, entornou o chá na xícara, pegou uma broa e começou a refestelar-se com a comida de Maria. Ela pegou apenas uma xícara de chá e voltou para o seu assento. Enquanto Bedeu comia e bebia, de cabeça baixa, nada havia notado ainda. Ao levantar a cabeça para puxar assunto com a anfitriã, viu que Maria estava de pernas abertas e sem calcinha com o sanharó exposto como que convidando o homem para refestelar-se também com ele.

A alta temperatura do chá associada à quentura do sangue que subiu à cabeça de Zebedeu o deixou vermelho e sem jeito. “O que é isso, Maria? Se ajeita!” “Oxe, homem, não gostas?” Provocou Maria sem nenhuma cerimônia e, levantando-se do tamborete, puxou Bedeu pelo braço que se levantou sem protestar e, afastando a cortina de chita da porta com a mão, Maria levou o homem para dentro de seu quarto já puxando ele para cima dela. Bedeu já estava pronto. A secura dele encontrou no molhado dela o conforto de um gozo que há muito não experimentava. Feito um galo, comeu Maria ali mesmo, de portas abertas e rápido, nem as roupas tirou.

Finda a conjunção carnal, o homem se recompôs, fechou a braguilha, pegou o chapéu e fez menção de ir embora. “Parece que não gostou?” Perguntou Maria. “Gostei tanto que gozei, e tu?” “Adorei e quero mais” respondeu a mulher. De olhos baixos, o homem balançou a cabeça afirmativamente e, sem se despedir, foi embora para casa. No outro dia, logo cedo, Bedeu, depois de ajeitar os passarinhos, foi para o roçado e de lá só voltou à boca da noite. Nesse dia, nem almoço levou. Passou o dia trabalhado e matutando sobre o acontecido do dia anterior. Não havia arrependimento, mas sim vontade de fazer de novo. “E se Batista soubesse? Não vou me preocupar com isso agora, o tempo resolve tudo”, pensou Zebedeu.

Se a preocupação que lhe aperreava o juízo era a trepada com Maria, tudo isso se dissipou ao chegar em casa. Logo que tirou a tramela da porta, viu que alguma coisa não estava certa. As gaiolas no chão e a pequena sala cheia de penas por todos os lados. Nada de passarinhos. Adentrando ao interior da casa, o homem viu correr um gato preto com seu golinha na boca, ainda esperneando e tentando bater as asas. Correu atrás, mas o felino passou por um buraco que havia na porta da cozinha e desapareceu no empardecer da tarde se embrenhando no mato próximo. Dos outros passarinhos, nem sinal. “Acabou-se minha vida”, pensou Zebedeu. “Isso é castigo de Deus pelo pecado que cometi ontem. Ah minha Nossa Senhora, me perdoe e me dê de volta os meus bichinhos!” Chorava o homem.

Inconsolável, Bedeu não dormiu à noite e, em sua insônia, arquitetou a vingança maligna. Aquilo não poderia ficar assim. No dia seguinte, armou-se de uma espingarda de fecho e sentou-se em frente à sua casa. “Quem gosta, torna”, pensou. De repente, lá vem o gato preto se esgueirando pelos aceiros do mato. Chegado mais perto, Zebedeu não teve dúvidas: era ele, o peralta! Apontou, atirou e matou o bicho. Correu depressa, apanhou o bichano já inanimado e cumpriu um pensamento que carregava desde criança. Quando menino, ouvia de sua avó – a quem chamavam de catimbozeira - que todo gato preto tinha um osso fino no mucumbu que, colocado entre os dentes incisivos superiores, fazia a pessoa se tornar invisível, se encantar.

Zebedeu não considerava a morte do gato suficiente para completar sua vingança. Agora, queria fazer-se envultado para poder comer Maria na hora que quisesse. Assim fez. Descarnou o gato, tirou o tal ossinho, botou para secar e, no dia seguinte, fez o teste. Aprontou-se todo de novo, botou o osso do gato entre os dentes da frente e foi para casa de Maria. Lá chegando, já viu Batista cortando uns paus de lenha no terreiro. Sem dizer nada, postou-se ao seu lado e o homem, nem aí. Olhou para ele, caminhou para lá e para cá e nada. “Vixi Maria! É verdade mermo, tô invurtado!” Pensou Bedeu. Voltou para casa, tirou o ossinho dos dentes e foi de novo para a casa do corno. Antes mesmo de aproximar-se, Batista já foi dizendo: “Tudo bem, Vizinho? A que devo a visita?” “Nada não”, respondeu Bedeu. “Tô só passando”.

A vingança seria maligna. Dia seguinte, enquanto Batista foi para roça, Bedeu foi na casa de Maria. Lá chegando, a mulher, acabrunhada, foi logo dizendo:” Tu num viu um gato preto por lá não?” “Vi não”, respondeu o homem. “Gato é assim mesmo, aqui acolá desaparece. Pior foi meus passarinhos, foram embora tudim”. “Como assim?” Perguntou Maria. “Sei lá, sumiram... Mas eu não vim para cá para falar disso. E tu como estás?” E foi logo enfiando a mão direita entre as pernas da mulher. “Quem gosta torna, né?” Foi logo dizendo Maria e caíram na cama de novo. Desta vez, a mulher ficou aflita com a possibilidade de Batista retornar antes da hora e fez tudo ligeiro, mais ligeiro do que da outra vez e botou Bedeu pra ir-se embora depressa.

O tempo passou e ficaram, Zebedeu e Maria, se encontrando com muita frequência. De repente, os cochichos da vizinhança deram conta de que a barriga de Maria tava crescendo e, Batista, desconfiado, pôs a pulga atrás da orelha. “Maria, tu tá doente?” Perguntou o marido. “Tô não, por quê?” “E esse bucho grande?”, questionou o homem. “Tô empachada, faz dias que não cago”, foi a resposta de Maria. Uma semana depois, em casa mesmo, Maria pariu uma menina. Batista deixou acabar o resguardo para acertar as contas com a mulher infiel. Sem que ninguém esperasse, num sábado de manhã, Batista desapareceu e, a casa onde morava com sua mulher, ficou fechada.

Desconfiado, Zebedeu esperou dois dias e, sem explicação alguma, resolveu verificar o que havia acontecido. Logo cedo do dia, resolveu arrombar a porta da casa dos vizinhos. Entrou e deparou-se com uma cena triste: Maria estirada na cama, morta com o pescoço inchado, deitada por cima de uma criança também morta. Indignado, Bedeu procurou a polícia, deu parte e, depois dos procedimentos normais providenciou o enterro de Maria e de sua cria. Novamente veio à sua mente arquitetar outra vingança. Essa mais forte, mais séria. Tinha de matar o homem que ceifou a vida de sua amante e da sua filha. “O ossinho vai ser de grande serventia”, pensou Bedeu.

Descobriu que Batista havia ido morar na casa de sua mãe. Nada mais lhe interessava na vida senão a vingança contra aquele que lhe privou daquele extemporâneo prazer. Ademais, foi embora também junto o fruto daquele absurdo amor. Arrumou as coisas e partiu em busca de seu desiderato. Chegado ao sítio onde Batista se homiziara, localizou o homem, tomou conhecimento de sua rotina diária e determinou-se para a ação. Batista trabalhava todo dia no roçado da mãe, próximo à casa da velha. Era uma sexta-feira à tarde, Zebedeu partiu para as imediações do roçado de Batista e, munido de uma foice, ficou à espera de sua presa.

Chegado Batista ao roçado, Bedeu pôs o ossinho entre os dentes, pegou a foice e partiu para cima do homem que matou sua amada e sua filha. Dois rapazes que trabalhavam a menos de 100 metros, viram a cena e ficaram espantados, estarrecidos e, ao mesmo tempo, pasmos: Uma foice no ar, sozinha, a rodopiar e a desferir golpes mortais na cabeça e nas costas de Batista. Após essa esquisita cena, a vítima dessa inusitada luta caiu morta. A foice desapareceu, os rapazes correram para casa e lá, contaram a todo mundo que presenciaram o “Anjo Ceifador” matar um homem. Ninguém acreditou, mas ficou a lenda - igual à de Hades -, que um homem foi vitimado pela verdadeira entidade chamada de “Morte, a ceifadora”.



 

Nenhum comentário:

Postar um comentário