A Ceifadora
Por: Domingos Sávio
Maximiano Roberto
Zebedeu acordava cedo e seu primeiro afazer era cuidar dos
passarinhos. Em três gaiolas grandes ele mantinha presos dois canários da
terra, um cabeça vermelha e um golinha. Todos os dias limpava as gaiolas,
trocava a água, botava xerém e levava os bichinhos para tomarem sol
dependurados na parede frontal de sua casa. Era seu maior divertimento, se
comprazia com isso. Aliás, eram, os passarinhos, suas únicas companhias. Depois
que sua mulher foi embora com um caixeiro-viajante, sem filhos, “Bedeu” – como
era chamado pelos mais íntimos – ficou sozinho e não quis mais conviver com seu
ninguém.
Tirante de uma bodega e de um casarão abandonado, perto de
sua casa existia somente uma outra residência onde morava um casal de amigos:
Batista e Maria. Amigos com algumas reticências, pois, Maria, nutria pelos seus
três gatos o mesmo amor que ele tinha pelos passarinhos. Todo cuidado era pouco
e, os gatos, viviam a rondar a casa de Bedeu. Olhando para cima os bichanos
viviam a desejar as aves de estimação do vizinho. Maria era carinhosa com seus
bichos e os tratava como gente. Tinham nomes. O maior e mais velho chamava-se
lulu, era um gato amarelo de rabo grosso; outro levava o nome de palito,
magrinho e desnutrido, parecia doente e, o terceiro, era um gato preto raciado com
angorá braiado com siamês e se chamava peralta.
Bedeu cuidava de um pequeno roçado onde cultivava milho,
feijão e algumas verduras, frutas e legumes. Mas seu sustento não se atinha
somente a isso, fabricava bainhas de faca em couro, consertava selas de
animais, amolava facas e era perito na confecção de foices. Na sua solidão,
além do canto dos pássaros, sua outra animação era um pequeno rádio de pilha de
onde ouvia músicas e se alentava para dormir, escutando a Voz do Brasil. De
dia, pouco ligava o rádio para não atrapalhar a cantoria dos pássaros,
principalmente o show do golinha quando cantava de estalo. Vida simples e
tranquila demais como que prenunciando alguma tragédia.
Batista era casado com Maria. Não tinham filhos. Diziam os
fofoqueiros, no Povoado próximo, nos dias de feira, que ele era “maninho” e que
não conseguia apagar o fogo de Maria. Batista – um sujeito moreno, baixo e
atarracado - só ele sabia que não fazia filhos. Quando criança teve papeira que
desceu pros ovos e lhe deixou estéril. Maria, era uma morena de boa estatura,
feições bonitas, bem feita de corpo e bem mais nova do que o marido. A alegria
constante estampada no rosto da mulher contrastava com a sisudez e a rudeza de
Batista. Mesmo assim, diziam, a boca pequena, que ela mandava nele.
Zebedeu era um homem branco, alto, forte, espadaúdo, de
feições másculas e rudes, mas afável no trato. Falava manso e baixinho. Mesmo
sem ter tido educação doméstica era um cabra de bons modos. Era de poucos
amigos, mas sempre cumprimentava os vizinhos com atenção e, às vezes, aceitava
convites para almoçar com eles. Nessas ocasiões, Bedeu notava um comportamento
avoado de Maria. No vestir, no sentar, no falar... Isso, mesmo na frente do
marido; o que o deixava sempre constrangido com a desenvoltura da mulher de
Batista. Se continha porque palpitava Maria.
Certo dia, Batista teve de fazer uma pequena viagem para
visitar a mãe doente, num sítio próximo e, estranhamente, Maria recusou-se em
acompanhá-lo alegando que não poderia deixar seus gatos sozinhos. O homem foi,
Maria ficou. Bastou o esposo partir, a mulher inventou um chá e chamou o
vizinho para beber com ela. Tardezinha de uma sexta-feira. Bedeu aprontou-se
todo e foi para casa de Maria. “Acho que não tá muito certo a gente ficar
sozinhos aqui na ausência de seu marido”, disse Zebedeu antes de sentar-se à
mesa de Maria. “Besteira, homem, ele nem precisa saber disso”, respondeu Maria.
“Senta. Fiz chá e broa de milho, estão gostosas, experimenta...”
Zebedeu, meio envergonhado, tirou o chapéu, puxou o tamborete
e sentou-se. Maria, ao invés de ocupar o lugar fronteiro a ele na mesa,
preferiu sentar-se um pouco afastada encostada na parede. “Serve-se homem, fica
à vontade”. Bedeu pegou o bule, entornou o chá na xícara, pegou uma broa e
começou a refestelar-se com a comida de Maria. Ela pegou apenas uma xícara de
chá e voltou para o seu assento. Enquanto Bedeu comia e bebia, de cabeça baixa,
nada havia notado ainda. Ao levantar a cabeça para puxar assunto com a
anfitriã, viu que Maria estava de pernas abertas e sem calcinha com o sanharó
exposto como que convidando o homem para refestelar-se também com ele.
A alta temperatura do chá associada à quentura do sangue que
subiu à cabeça de Zebedeu o deixou vermelho e sem jeito. “O que é isso, Maria?
Se ajeita!” “Oxe, homem, não gostas?” Provocou Maria sem nenhuma cerimônia e,
levantando-se do tamborete, puxou Bedeu pelo braço que se levantou sem
protestar e, afastando a cortina de chita da porta com a mão, Maria levou o
homem para dentro de seu quarto já puxando ele para cima dela. Bedeu já estava
pronto. A secura dele encontrou no molhado dela o conforto de um gozo que há
muito não experimentava. Feito um galo, comeu Maria ali mesmo, de portas
abertas e rápido, nem as roupas tirou.
Finda a conjunção carnal, o homem se recompôs, fechou a
braguilha, pegou o chapéu e fez menção de ir embora. “Parece que não gostou?”
Perguntou Maria. “Gostei tanto que gozei, e tu?” “Adorei e quero mais”
respondeu a mulher. De olhos baixos, o homem balançou a cabeça afirmativamente
e, sem se despedir, foi embora para casa. No outro dia, logo cedo, Bedeu,
depois de ajeitar os passarinhos, foi para o roçado e de lá só voltou à boca da
noite. Nesse dia, nem almoço levou. Passou o dia trabalhado e matutando sobre o
acontecido do dia anterior. Não havia arrependimento, mas sim vontade de fazer
de novo. “E se Batista soubesse? Não vou me preocupar com isso agora, o tempo
resolve tudo”, pensou Zebedeu.
Se a preocupação que lhe aperreava o juízo era a trepada com
Maria, tudo isso se dissipou ao chegar em casa. Logo que tirou a tramela da
porta, viu que alguma coisa não estava certa. As gaiolas no chão e a pequena
sala cheia de penas por todos os lados. Nada de passarinhos. Adentrando ao interior
da casa, o homem viu correr um gato preto com seu golinha na boca, ainda
esperneando e tentando bater as asas. Correu atrás, mas o felino passou por um
buraco que havia na porta da cozinha e desapareceu no empardecer da tarde se
embrenhando no mato próximo. Dos outros passarinhos, nem sinal. “Acabou-se
minha vida”, pensou Zebedeu. “Isso é castigo de Deus pelo pecado que cometi
ontem. Ah minha Nossa Senhora, me perdoe e me dê de volta os meus bichinhos!” Chorava
o homem.
Inconsolável, Bedeu não dormiu à noite e, em sua insônia,
arquitetou a vingança maligna. Aquilo não poderia ficar assim. No dia seguinte,
armou-se de uma espingarda de fecho e sentou-se em frente à sua casa. “Quem
gosta, torna”, pensou. De repente, lá vem o gato preto se esgueirando pelos
aceiros do mato. Chegado mais perto, Zebedeu não teve dúvidas: era ele, o
peralta! Apontou, atirou e matou o bicho. Correu depressa, apanhou o bichano já
inanimado e cumpriu um pensamento que carregava desde criança. Quando menino,
ouvia de sua avó – a quem chamavam de catimbozeira - que todo gato preto tinha
um osso fino no mucumbu que, colocado entre os dentes incisivos superiores, fazia
a pessoa se tornar invisível, se encantar.
Zebedeu não considerava a morte do gato suficiente para
completar sua vingança. Agora, queria fazer-se envultado para poder comer Maria
na hora que quisesse. Assim fez. Descarnou o gato, tirou o tal ossinho, botou para
secar e, no dia seguinte, fez o teste. Aprontou-se todo de novo, botou o osso
do gato entre os dentes da frente e foi para casa de Maria. Lá chegando, já viu
Batista cortando uns paus de lenha no terreiro. Sem dizer nada, postou-se ao
seu lado e o homem, nem aí. Olhou para ele, caminhou para lá e para cá e nada. “Vixi
Maria! É verdade mermo, tô invurtado!” Pensou Bedeu. Voltou para casa, tirou o
ossinho dos dentes e foi de novo para a casa do corno. Antes mesmo de
aproximar-se, Batista já foi dizendo: “Tudo bem, Vizinho? A que devo a visita?”
“Nada não”, respondeu Bedeu. “Tô só passando”.
A vingança seria maligna. Dia seguinte, enquanto Batista foi
para roça, Bedeu foi na casa de Maria. Lá chegando, a mulher, acabrunhada, foi
logo dizendo:” Tu num viu um gato preto por lá não?” “Vi não”, respondeu o
homem. “Gato é assim mesmo, aqui acolá desaparece. Pior foi meus passarinhos,
foram embora tudim”. “Como assim?” Perguntou Maria. “Sei lá, sumiram... Mas eu
não vim para cá para falar disso. E tu como estás?” E foi logo enfiando a mão direita
entre as pernas da mulher. “Quem gosta torna, né?” Foi logo dizendo Maria e
caíram na cama de novo. Desta vez, a mulher ficou aflita com a possibilidade de
Batista retornar antes da hora e fez tudo ligeiro, mais ligeiro do que da outra
vez e botou Bedeu pra ir-se embora depressa.
O tempo passou e ficaram, Zebedeu e Maria, se encontrando com
muita frequência. De repente, os cochichos da vizinhança deram conta de que a
barriga de Maria tava crescendo e, Batista, desconfiado, pôs a pulga atrás da
orelha. “Maria, tu tá doente?” Perguntou o marido. “Tô não, por quê?” “E esse
bucho grande?”, questionou o homem. “Tô empachada, faz dias que não cago”, foi
a resposta de Maria. Uma semana depois, em casa mesmo, Maria pariu uma menina.
Batista deixou acabar o resguardo para acertar as contas com a mulher infiel.
Sem que ninguém esperasse, num sábado de manhã, Batista desapareceu e, a casa
onde morava com sua mulher, ficou fechada.
Desconfiado, Zebedeu esperou dois dias e, sem explicação
alguma, resolveu verificar o que havia acontecido. Logo cedo do dia, resolveu
arrombar a porta da casa dos vizinhos. Entrou e deparou-se com uma cena triste:
Maria estirada na cama, morta com o pescoço inchado, deitada por cima de uma
criança também morta. Indignado, Bedeu procurou a polícia, deu parte e, depois
dos procedimentos normais providenciou o enterro de Maria e de sua cria.
Novamente veio à sua mente arquitetar outra vingança. Essa mais forte, mais
séria. Tinha de matar o homem que ceifou a vida de sua amante e da sua filha. “O
ossinho vai ser de grande serventia”, pensou Bedeu.
Descobriu que Batista havia ido morar na casa de sua mãe.
Nada mais lhe interessava na vida senão a vingança contra aquele que lhe privou
daquele extemporâneo prazer. Ademais, foi embora também junto o fruto daquele absurdo
amor. Arrumou as coisas e partiu em busca de seu desiderato. Chegado ao sítio
onde Batista se homiziara, localizou o homem, tomou conhecimento de sua rotina
diária e determinou-se para a ação. Batista trabalhava todo dia no roçado da mãe,
próximo à casa da velha. Era uma sexta-feira à tarde, Zebedeu partiu para as
imediações do roçado de Batista e, munido de uma foice, ficou à espera de sua
presa.
Chegado Batista ao roçado, Bedeu pôs o ossinho entre os
dentes, pegou a foice e partiu para cima do homem que matou sua amada e sua
filha. Dois rapazes que trabalhavam a menos de 100 metros, viram a cena e
ficaram espantados, estarrecidos e, ao mesmo tempo, pasmos: Uma foice no ar,
sozinha, a rodopiar e a desferir golpes mortais na cabeça e nas costas de Batista.
Após essa esquisita cena, a vítima dessa inusitada luta caiu morta. A foice
desapareceu, os rapazes correram para casa e lá, contaram a todo mundo que
presenciaram o “Anjo Ceifador” matar um homem. Ninguém acreditou, mas ficou a
lenda - igual à de Hades -, que um homem foi vitimado pela verdadeira entidade
chamada de “Morte, a ceifadora”.
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