domingo, 19 de maio de 2024

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

A vingança extemporânea

Francisquinha, atendendo determinação paterna e necessidades impostas pela extrema pobreza, casou-se cedo, aos 17 anos de idade, com um homem 15 anos mais velho do que ela. O marido, chamava-se João e era muito trabalhador. O homem cuidava do fazimento de tijolos de barro que queimava em imensas caieiras, daí, o apelido de “João da Caieira”. Desse casamento, nasceram dois filhos: José e Antônio. Mesmo na qualidade de pobres, viviam bem e moravam no Sítio Várzea, nas proximidades da cidade de Princesa. Porém, com o advento da grande seca iniciada no ano de 1952, João teve seus negócios prejudicados e viu-se obrigado a partir para outras terras, em busca de trabalho para sustentar sua família.

Com essa intenção, o marido, pegou Francisquinha e os filhos e viajou para o estado do Pará, onde morava um primo, que lhe garantia possibilidades de trabalhar. Fixou-se na cidade de Ananindeua e, ali, passou a funcionar como cortador de árvores para uma empresa multinacional. Trabalhou cerca de um ano, quando caiu gravemente enfermo, vitimado pela malária. Sem remédio que o curasse, viu-se às portas da morte, e resolveu voltar para sua terra. Chegando de volta à Várzea, em poucos dias, faleceu, o marido de Francisquinha. Agora, sozinha, com dois filhos pequenos – José com cinco anos e, Antônio, a quem chamava de “Tonico”, com dois -, a viúva, passou a trabalhar como empregada doméstica e lavadora de roupas.

Não bastasse a tragédia da perda do marido, em pouco mais de seis meses após a morte de João, Francisquinha perdeu também o filho mais novo, Tonico, vitimado pela coqueluche. Mesmo assim, a mulher, não desanimou e continuou na luta, trabalhando para dar sustento ao filho que lhe restou. A viúva, já beirando os 30 anos de idade, era uma mulher bonita. Em que pese não poder se vestir bem, mesmo entonada em seus vestidos de chita, as curvas de seu belo corpo realçavam, o que, dado o seu desamparo de mulher sem marido, chamava a atenção dos homens. Porém, ela, se mantinha em procedimento de mulher séria, sem dar trela aos olhares maldosos que, insistentemente, caíam sobre ela.

A viúva, trabalhava de sol-a-sol e, o que alternava a labuta diária, era frequentar a Igreja nos dias de domingo e nas festas ou comemorações religiosas. Em suas andanças, da Várzea para a cidade, quando ia para a Igreja, trabalhar nas casas de famílias ou lavar roupas de ganho, Francisquinha, passou a notar que, um homem, seu conhecido, chamado José, a quem apelidavam de “Zé Perequeté”, a acompanhava, com olhares, o que a incomodava sobremaneira. Certo dia, no meio da estrada entre a cidade e o sítio onde morava, a mulher foi abordada por Zé Perequeté. Este, sem disfarçar, começou a elogiar seus atributos físicos e a dizer que ela, trabalhava porque queria e que, ele, poderia lhe dar uma vida de conforto, etc. etc. A mulher descartou, tanto os elogios, quanto a proposta de vida boa.

Porém, isso não parou por aí. O homem, continuou insistindo em tê-la como mulher e, Francisquinha, temerosa e aflita com a situação, passou a andar acompanhada do filho, José, de apenas 6 anos de idade. Andava pegada na mão do menino, como se isso impedisse, Perequeté, de incomodá-la com suas investidas. Calada, não contou nada a ninguém sobre a situação, mas, ficou à espreita, evitando se expor, em horários ou em situações perigosas, com medo de ser atacada pelo insistente e abusado galanteador. Na verdade, a viúva, não tinha interesse em homem algum. Era uma mulher quieta, sem muito fogo entre as pernas. O que ela queria mesmo, era criar seu filho em paz e, para tanto, trabalhava incansavelmente.

Corria o ano de 1953 e chegara a Semana Santa, ocasião em que tudo se resumia às comemorações da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Naquele tempo, as solenidades da Semana Santa, na Igreja Católica, ocorriam obedecendo ao rigoroso rito, imposto ainda pelo Concílio Vaticano I (1869-70) – não havia acontecido, ainda, o aggiornamento promovido pelo Concílio Vaticano II (1962-65), convocado pelo Papa João XXIII. Naquele tempo, a partir da Quarta-feira Santa (também chamada “de trevas”), tudo girava em torno das solenidades religiosas: santos e altares cobertos por panos roxos; os sinos não tocavam; os rádios, das casas, desligados e, as pessoas, demonstrando completa tristeza.

Na Quinta-Feira Santa, acontecia a cerimônia do Lava-pés e a exposição do Santíssimo Sacramento, para adoração, o que varava a noite e a madrugada, até a tarde da Sexta-feira Santa, quando acontecia a cerimônia do Beija-cruz, a Missa da Paixão e a procissão do Senhor Morto. Para tanto, acorriam todos para a igreja – até dos sítios mais distantes – para assistirem (literalmente assistirem, pois, naquele tempo, todo o rito litúrgico, era celebrado em latim) aos ofícios religiosos. Não foi diferente para Francisquinha, que morava no Sítio Várzea, distante cerca de 3 quilômetros da cidade de Princesa. Muito religiosa e, ciosa da necessidade de reparar seus pecados, logo cedo da quinta-feira, dia 3 de abril daquele ano de 1953, a mulher partiu de casa, com seu filho pequeno, em busca da cidade para se confessar, comungar e assistir às solenidades da Via Sacra e do Lava-pés.

Chegada à igreja, Francisquinha, tomou assento em um dos bancos, na nave central do templo (só ocupavam as cadeiras, que eram personalizadas, as pessoas da alta sociedade; o populacho, ficava na geral) e passou a assistir, primeiro a Via Sacra, em que o vigário, frei Bertholdo, percorria as 14 Estações, ali mesmo, dentro da igreja; depois, o Lava-pés, quando o vigário, acompanhado pelo padre auxiliar, frei Clemente, lavava os pés dos potentados da cidade, ali representados por altos comerciantes, fazendeiros, políticos, etc. Findos esses ofícios religiosos, e a missa, Francisquinha, ao invés de voltar para casa, na companhia dos demais moradores da Várzea, resolveu se confessar e, para tanto, entrou numa imensa fila. No confessionário, o padre auxiliar, frei Clemente - um alemão que brigara na II Guerra Mundial, ao lado dos nazistas, o que lhe valeu um entrevamento das duas pernas quando não as podia dobrar e que, por isso, ficavam estiradas para fora do confessionário –ouviu os pecados da mulher.

Livre dos pecados, a viúva, depois de rezar em cumprimento da penitência decretada pelo sacerdote alemão, pegou na mão de seu filho José e, a pés, partiu de volta para casa. Saída da rua, nas imediações do Açude Velho (o que, à época era lugar ermo), Francisquinha foi, abruptamente, abordada por Perequeté que, escondido num aceiro da estrada, a puxou pelo braço e, a despeito do choro do menino de seis anos, estuprou a mulher ali mesmo dentro do mato e, não bastasse isso, vitimou-a com cinco peixeiradas e desapareceu mata-a-dentro. Aflito, e em choro convulsivo, menino, partiu de volta para a rua em busca de socorro para a mãe agonizante. Ao primeiro que encontrou, José, aos prantos, mesmo sem saber explicar direito, relatou o fato. Acorreram ao local, mas, nada puderam fazer. Francisquinha, depois de perder quase todo seu sangue, estava morta na beira da estrada.

Enterraram a mulher e, a criança desvalida, depois de passar alguns dias na casa de conhecidos da mãe, foi entregue a um tio que veio buscá-la para morar com ele, em São Paulo. Para Zé Perequeté, abriu-se o mundo e fechou-se; o homem desapareceu e, punição alguma houve para esse crime. Passaram-se os anos e, amparado pelo decurso de prazo e pela proteção de políticos poderosos de Princesa, o assassino, já com o crime prescrito, depois de mais de 20 anos, morando pras bandas de São Paulo, retornou à Várzea e passou a morar com sua mãe, já idosa, numa pequena casa na beira da estrada que liga Princesa à cidade de Manaíra. Num certo dia - que podemos chamar de “dia certo” – do mês de setembro de 1974, depois de almoçar, Zé Perequeté, fechou a porta da frente e deitou-se numa rede, armada na sala da pequena casa. Depois de tomar um xícara de café e fumar um cigarro de palha, em desfrute da sesta, pegou no sono.

Se ouviu o disparo, Perequeté, só soube do que se tratava quando já estava em gozo de repouso eterno. Pela brecha da porta de sua casa, o cano de uma espingarda 12 adentrou e, num único tiro, tirou a vida daquele que estuprou Francisquinha, há mais de 20 anos atrás. Não deu nem tempo de estrebuchar; o tiro foi fatal. Para esse crime, também não houve punição, só perdão. Talvez, instrumentalizada pela mão de Deus, uma arma, promoveu a justiça contra um crime hediondo que ceifou a vida de uma pobre de Cristo e desgraçou a vida de uma criança inocente. José, já aos 27 anos de idade, depois de visitar alguns parentes, em Princesa, voltou para São Paulo e, dele, nunca mais se ouviu falar. Se não veio a cavaleiro, mas em passo de tartaruga, a justiça, mesmo extemporânea, se fez.



 

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