A vingança extemporânea
Francisquinha, atendendo determinação paterna e necessidades
impostas pela extrema pobreza, casou-se cedo, aos 17 anos de idade, com um
homem 15 anos mais velho do que ela. O marido, chamava-se João e era muito
trabalhador. O homem cuidava do fazimento de tijolos de barro que queimava em
imensas caieiras, daí, o apelido de “João da Caieira”. Desse casamento,
nasceram dois filhos: José e Antônio. Mesmo na qualidade de pobres, viviam bem
e moravam no Sítio Várzea, nas proximidades da cidade de Princesa. Porém, com o
advento da grande seca iniciada no ano de 1952, João teve seus negócios
prejudicados e viu-se obrigado a partir para outras terras, em busca de
trabalho para sustentar sua família.
Com essa intenção, o marido, pegou Francisquinha e os filhos
e viajou para o estado do Pará, onde morava um primo, que lhe garantia
possibilidades de trabalhar. Fixou-se na cidade de Ananindeua e, ali, passou a
funcionar como cortador de árvores para uma empresa multinacional. Trabalhou
cerca de um ano, quando caiu gravemente enfermo, vitimado pela malária. Sem
remédio que o curasse, viu-se às portas da morte, e resolveu voltar para sua
terra. Chegando de volta à Várzea, em poucos dias, faleceu, o marido de
Francisquinha. Agora, sozinha, com dois filhos pequenos – José com cinco anos
e, Antônio, a quem chamava de “Tonico”, com dois -, a viúva, passou a trabalhar
como empregada doméstica e lavadora de roupas.
Não bastasse a tragédia da perda do marido, em pouco mais de
seis meses após a morte de João, Francisquinha perdeu também o filho mais novo,
Tonico, vitimado pela coqueluche. Mesmo assim, a mulher, não desanimou e
continuou na luta, trabalhando para dar sustento ao filho que lhe restou. A viúva,
já beirando os 30 anos de idade, era uma mulher bonita. Em que pese não poder
se vestir bem, mesmo entonada em seus vestidos de chita, as curvas de seu belo
corpo realçavam, o que, dado o seu desamparo de mulher sem marido, chamava a
atenção dos homens. Porém, ela, se mantinha em procedimento de mulher séria,
sem dar trela aos olhares maldosos que, insistentemente, caíam sobre ela.
A viúva, trabalhava de sol-a-sol e, o que alternava a labuta
diária, era frequentar a Igreja nos dias de domingo e nas festas ou
comemorações religiosas. Em suas andanças, da Várzea para a cidade, quando ia
para a Igreja, trabalhar nas casas de famílias ou lavar roupas de ganho,
Francisquinha, passou a notar que, um homem, seu conhecido, chamado José, a
quem apelidavam de “Zé Perequeté”, a acompanhava, com olhares, o que a
incomodava sobremaneira. Certo dia, no meio da estrada entre a cidade e o sítio
onde morava, a mulher foi abordada por Zé Perequeté. Este, sem disfarçar,
começou a elogiar seus atributos físicos e a dizer que ela, trabalhava porque
queria e que, ele, poderia lhe dar uma vida de conforto, etc. etc. A mulher
descartou, tanto os elogios, quanto a proposta de vida boa.
Porém, isso não parou por aí. O homem, continuou insistindo
em tê-la como mulher e, Francisquinha, temerosa e aflita com a situação, passou
a andar acompanhada do filho, José, de apenas 6 anos de idade. Andava pegada na
mão do menino, como se isso impedisse, Perequeté, de incomodá-la com suas
investidas. Calada, não contou nada a ninguém sobre a situação, mas, ficou à
espreita, evitando se expor, em horários ou em situações perigosas, com medo de
ser atacada pelo insistente e abusado galanteador. Na verdade, a viúva, não
tinha interesse em homem algum. Era uma mulher quieta, sem muito fogo entre as
pernas. O que ela queria mesmo, era criar seu filho em paz e, para tanto,
trabalhava incansavelmente.
Corria o ano de 1953 e chegara a Semana Santa, ocasião em que
tudo se resumia às comemorações da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Naquele tempo, as solenidades da Semana Santa, na Igreja Católica, ocorriam
obedecendo ao rigoroso rito, imposto ainda pelo Concílio Vaticano I (1869-70) –
não havia acontecido, ainda, o aggiornamento
promovido pelo Concílio Vaticano II (1962-65), convocado pelo Papa João
XXIII. Naquele tempo, a partir da Quarta-feira Santa (também chamada “de trevas”),
tudo girava em torno das solenidades religiosas: santos e altares cobertos por
panos roxos; os sinos não tocavam; os rádios, das casas, desligados e, as
pessoas, demonstrando completa tristeza.
Na Quinta-Feira Santa, acontecia a cerimônia do Lava-pés e a
exposição do Santíssimo Sacramento, para adoração, o que varava a noite e a
madrugada, até a tarde da Sexta-feira Santa, quando acontecia a cerimônia do
Beija-cruz, a Missa da Paixão e a procissão do Senhor Morto. Para tanto,
acorriam todos para a igreja – até dos sítios mais distantes – para assistirem
(literalmente assistirem, pois, naquele tempo, todo o rito litúrgico, era
celebrado em latim) aos ofícios religiosos. Não foi diferente para
Francisquinha, que morava no Sítio Várzea, distante cerca de 3 quilômetros da
cidade de Princesa. Muito religiosa e, ciosa da necessidade de reparar seus
pecados, logo cedo da quinta-feira, dia 3 de abril daquele ano de 1953, a mulher
partiu de casa, com seu filho pequeno, em busca da cidade para se confessar,
comungar e assistir às solenidades da Via Sacra e do Lava-pés.
Chegada à igreja, Francisquinha, tomou assento em um dos
bancos, na nave central do templo (só ocupavam as cadeiras, que eram
personalizadas, as pessoas da alta sociedade; o populacho, ficava na geral) e
passou a assistir, primeiro a Via Sacra, em que o vigário, frei Bertholdo,
percorria as 14 Estações, ali mesmo, dentro da igreja; depois, o Lava-pés,
quando o vigário, acompanhado pelo padre auxiliar, frei Clemente, lavava os pés
dos potentados da cidade, ali representados por altos comerciantes,
fazendeiros, políticos, etc. Findos esses ofícios religiosos, e a missa,
Francisquinha, ao invés de voltar para casa, na companhia dos demais moradores
da Várzea, resolveu se confessar e, para tanto, entrou numa imensa fila. No
confessionário, o padre auxiliar, frei Clemente - um alemão que brigara na II
Guerra Mundial, ao lado dos nazistas, o que lhe valeu um entrevamento das duas
pernas quando não as podia dobrar e que, por isso, ficavam estiradas para fora
do confessionário –ouviu os pecados da mulher.
Livre dos pecados, a viúva, depois de rezar em cumprimento da
penitência decretada pelo sacerdote alemão, pegou na mão de seu filho José e, a
pés, partiu de volta para casa. Saída da rua, nas imediações do Açude Velho (o
que, à época era lugar ermo), Francisquinha foi, abruptamente, abordada por Perequeté
que, escondido num aceiro da estrada, a puxou pelo braço e, a despeito do choro
do menino de seis anos, estuprou a mulher ali mesmo dentro do mato e, não
bastasse isso, vitimou-a com cinco peixeiradas e desapareceu mata-a-dentro.
Aflito, e em choro convulsivo, menino, partiu de volta para a rua em busca de
socorro para a mãe agonizante. Ao primeiro que encontrou, José, aos prantos,
mesmo sem saber explicar direito, relatou o fato. Acorreram ao local, mas, nada
puderam fazer. Francisquinha, depois de perder quase todo seu sangue, estava
morta na beira da estrada.
Enterraram a mulher e, a criança desvalida, depois de passar
alguns dias na casa de conhecidos da mãe, foi entregue a um tio que veio buscá-la
para morar com ele, em São Paulo. Para Zé Perequeté, abriu-se o mundo e
fechou-se; o homem desapareceu e, punição alguma houve para esse crime.
Passaram-se os anos e, amparado pelo decurso de prazo e pela proteção de
políticos poderosos de Princesa, o assassino, já com o crime prescrito, depois
de mais de 20 anos, morando pras bandas de São Paulo, retornou à Várzea e
passou a morar com sua mãe, já idosa, numa pequena casa na beira da estrada que
liga Princesa à cidade de Manaíra. Num certo dia - que podemos chamar de “dia
certo” – do mês de setembro de 1974, depois de almoçar, Zé Perequeté, fechou a
porta da frente e deitou-se numa rede, armada na sala da pequena casa. Depois
de tomar um xícara de café e fumar um cigarro de palha, em desfrute da sesta,
pegou no sono.
Se ouviu o disparo, Perequeté, só soube do que se tratava
quando já estava em gozo de repouso eterno. Pela brecha da porta de sua casa, o
cano de uma espingarda 12 adentrou e, num único tiro, tirou a vida daquele que
estuprou Francisquinha, há mais de 20 anos atrás. Não deu nem tempo de
estrebuchar; o tiro foi fatal. Para esse crime, também não houve punição, só
perdão. Talvez, instrumentalizada pela mão de Deus, uma arma, promoveu a
justiça contra um crime hediondo que ceifou a vida de uma pobre de Cristo e
desgraçou a vida de uma criança inocente. José, já aos 27 anos de idade, depois
de visitar alguns parentes, em Princesa, voltou para São Paulo e, dele, nunca
mais se ouviu falar. Se não veio a cavaleiro, mas em passo de tartaruga, a
justiça, mesmo extemporânea, se fez.
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