Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
A Igreja do Rosário dos
Pretos
Cosmo e Gregório, dois negros, chegados do Recife pela mão de
um parente do coronel Marcolino Pereira Lima, aportaram na vila de Princêza no
início do ano de 1886. Escravos, tinham, ambos, menos de 20 anos de idade.
Chegados à vila, foram entregues ao então vigário da recém-criada Paróquia de
Nossa Senhora do Bom Conselho, padre Francisco Tavares Arcoverde.
Gregório era um negro alto e musculoso, da etnia tutsis, considerado
portador de habilidades para serviços artesanais e, como tinha servido no
convento dos frades Carmelitas, sabia ler e escrever, um negro ladino. Já
Cosmo, de estatura média, entroncado, bronco e analfabeto, descendia da etnia
hutu e era mais apropriado para os trabalhos braçais. Nascidos no Brasil, foram
comprados na capital pernambucana pelo padre Arcoverde com a finalidade de
viabilizar a construção de um prédio, em Princêza, para abrigar uma igreja para
o culto dos negros.
Gregório era habilitado no ofício de pedreiro e, Cosmo, fazia
as vezes de servente. Sob a orientação de Abílio Ferreira – renomado e
habilidoso mestre de obras que se transferira de São Paulo para Princêza -,
deram-se à lida da construção do templo que, na verdade, era mesmo uma capela.
Escravizados, os negros eram mantidos como tal pelo padre porém, sem as agruras
dos maus tratos inerentes àquela condição.
Trabalhavam de sol-a-sol na construção da igrejinha, mas eram
bem alimentados e até contemplados com o descanso aos domingos e dias
santificados. Vestiam-se como os demais desvalidos daquele tempo e, em face de
suas condições de inferiores, respeitavam os brancos. Gregório era mais “saído”
do que Cosmo. Este, era caladão e refratário a contatos mais chegados. Já o
Gregório, a quem chamavam de “Negão”, era ladino sob todos os aspectos.
Com a igreja quase pronta, em meados de 1887 – faltava apenas
o reboco das paredes internas e externas, e o piso -, o vigário resolveu
celebrar a primeira missa. Na inauguração do templo, ocasião em que se reuniram
mulheres e homens de cor, escravos que trabalhavam nos engenhos do coronel e
nas labutas domésticas, para assistirem à missa inaugural, o padre Arcoverde
fez a leitura da Carta Pastoral emitida pelo bispo de Olinda, que concedia
autorização para o funcionamento da nova Igreja.
Na homilia daquela primeira missa, inspirado nos sermões do
antológico padre Antônio Vieira, o vigário similarizou o sofrimento dos
escravos à agonia de Jesus Cristo na cruz e leu um trecho, excerto de um sermão
daquele famoso sacerdote:
“Bem-aventurados vós se
soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação
de tão alta e divina semelhança aproveitar e santificar o trabalho. (...) Em um
engenho sois imitadores de Cristo crucificado (...) porque padeceis em um modo
muito semelhante ao que o mesmo senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua
paixão.
Embora os demais negros não estivessem entendendo nada do que
o padre dizia, no meio da fala do sacerdote, Gregório o interrompeu fazendo uma
pergunta: “Quer dizer, seu vigário, que
nosso sofrimento é concedido e aprovado por Deus? Se nós também somos filhos Dele
como o senhor diz, por que somos diferentes de vocês?” Antes que o padre se
pronunciasse, uma negra chamada Ana, que cozinhava na casa do coronel
Marcolino, levantou-se do banco onde estava, partiu para o escravo inquiridor e
disse: “Negão, não diga isso com o padre,
ele tá falando as palavras de Deus e, quem és tu, para duvidar? Tenha
respeito!” Tentando acalmar os ânimos, o padre mandou a negra sentar-se e
admoestou gravemente Gregório: “Não ouse
me interromper, tampouco duvidar do que digo. Essas palavras do padre Antônio
Vieira são sábias e verdadeiras porque proferidas por um teólogo da Santa Madre
Igreja! Seja esta, a última vez que você contesta um ensinamento da Igreja”.
E, com voz irritada, gritou: “Retire-se
daqui!”
Esse incidente traria consequências nefastas para o negro
Gregório. Sabedor do episódio, o coronel Marcolino mandou chamar o cativo à sua
presença e determinou que arrumasse suas coisas, pois, no dia seguinte, seria
enviado para trabalhar em uma de suas fazendas no vizinho estado de Pernambuco.
Na noite desse dia, o Negão já dormiu em outro local que não o de costume: num
armazém fechado a chave para que não ousasse fugir.
No outro dia, logo cedo, dois capatazes do coronel empreenderam
viagem levando o escravo para uma sua propriedade nas imediações de Vila Bela.
Era a fazenda Santa Clara, administrada por um parente do coronel, chamado Aluísio.
Este, branco, casado com Luzia e pai de duas filhas, Rosa e Rita, morava numa
espaçosa casa assobradada que servia de sede da fazenda. Aluísio recebeu
Gregório e o designou para os cuidados com a manutenção de água, lenha e a
ordenha das vacas para o abastecimento doméstico.
Logo, o escravo se acostumou com a rotina da casa e ganhou a
graça dos membros da nova família à qual servia. As meninas, Rosa com 14 anos
de idade e, Rita, com 16, eram diferentes entre si. Ambas brancas, mas, de
conformação física e de personalidades diversas. Rosa, além de bonita, com seu
corpo bem feito e longos cabelos loiros, era conversadeira, sensual por
natureza e muito brincalhona. Já Rita, gordinha e de baixa estatura era calada,
arredia e mau humorada como se vivesse de mal com a vida. Eram dois extremos.
Com Rosa, logo Gregório fez amizade e, dessa interação,
criou-se uma intimidade que aumentou quando o escravo, letrado que era, começou
a ensinar a menina a ler. Aos sábados e domingos, passavam horas, na varanda da
casa, onde o cativo ensinava, sobre uma pequena mesa, as primeiras letras à
mocinha. Logo Rosa aprendeu a ler e a escrever, o que foi louvado pela mãe
Luzia, mas, reprovado pelo pai. Naquele tempo, os pais abominavam filhas
letradas. Diziam eles que elas aprendiam a ler para mandar cartas para
namorados e que, mulher era para as coisas do lar. Mesmo assim, Aluísio tolerou
essa novidade.
Em Princêza, depois do episódio protagonizado pelo cativo
rebelde, os trabalhos de finalização da construção da igreja dos pretos,
carecidos de mão de obra especializada, com a ausência de Gregório, pararam. O
negro Cosmo não tinha a mesma habilidade do outro; mestre Abílio havia ido
trabalhar no Recife e, não se sabe porque, o padre Arcoverde desinteressou-se
da obra. Quase que abandonado, o templo era usado somente para os ofícios mais
simples como a reza do Rosário, às quintas-feiras, tirado pela escrava Ana
acompanhada de um punhado de negras que respondiam às Ave-Marias e os
Padre-nossos quase cochilando e sem saber direito o que diziam. O vigário nem
lá pisava.
Já na fazenda Santa Clara, aconteciam coisas que prenunciavam
tragédia. Além de ensinar a ler e escrever, o elemento servil ensinou também, a
Rosa, as coisas do amor. Durante as aulas, enquanto a menina escrevinhava,
Gregório roçava suas pernas nas dela ao que Rosa jamais objetou. Pelo
contrário, acompanhava o ritmo imposto pelo negro num esfregamento mútuo que a
deixava sem fôlego. Desse roçar, a coisa evoluiu e quando os dois se deram por
fé, estavam, às escondidas, aos beijos e abraços.
Gregório dormia numa rede armada num barracão que servia de
armazém, ao lado da casa, sede da fazenda. Numa noite enluarada do mês de
janeiro de 1888, por volta das dez horas da noite, o negro escutou o ranger da
porta dos fundos do armazém. Esperto que era, pulou da rede já com um facão à
mão. Na penumbra permitida pelo tênue clarão da lua que adentrava àquele
barracão pelas frestas do telhado irregular, o cativo viu o vulto de uma mulher
que se aproximava. “Rosa...?” Perguntou
o negro. “Sim, sou eu...” Respondeu a
menina quase num sussurro. “O que diabo
tu tá fazendo aqui menina? Tás doida?!” A mocinha, já em sua frente,
respondeu: “Eu vim dormir mais tu”.
Incendiado de desejo, o escravo abraçou a menina e, ali
mesmo, no chão do armazém, sobre uma pequena esteira, Gregório desvirginou a
filha do seu senhor. Como essa, foram muitas as noites de amor sem que ninguém
desconfiasse de nada. Contudo, a fatura dessa ilicitude amorosa não demorou a
chegar. Rosa, sem mais nem menos, começou a sentir-se mal, a desmaiar pelos
cantos sem que ninguém soubesse do que se tratava.
Livre dos chiliques, a barriga da mocinha começou a crescer
e, a mãe, mais experiente, inquiriu a menina sobre o que estava acontecendo.
Aflita com a situação, Rosa confessou seu romance com o negro. Luzia, ao invés
de amparar a filha, aperreada, procurou Gregório, contou-lhe o que estava
acontecendo e disse que ia dizer a Aluísio. Ladino que era, o negro, na noite
desse mesmo dia, temeroso pela reação do pai da moça, escapuliu na escuridão e
desapareceu sem deixar rastro.
Ao saber da situação, Aluísio determinou que Rosa ficasse
enfurnada no sobrado da casa grande, incomunicável, até a criança nascer, e deu
ordens para que ninguém falasse mais sobre esse assunto. Quanto ao negro, o
capataz organizou uma força-tarefa composta por mais de 10 escravos e partiu em
busca daquele que “desgraçou” sua filha. Busca inglória. O mundo abriu-se e
fechou-se e, o negro, desapareceu. Passados alguns meses, Rosa pariu um menino
que foi imediatamente encaminhado para a cidade do Recife com destino à “Roda
dos Enjeitados” do convento das Carmelitas Descalças. Terminado o resguardo,
Rosa, por recomendação do coronel Marcolino, foi aceita como noviça no convento
das Clarissas, em Olinda.
Na fazenda, mesmo depois dessa tragédia, a vida parecia
correr normal até o dia em que chegou a notícia de que, o corpo do negro
Gregório, foi encontrado, na beira de uma estrada vicinal, próximo à vila de
Princêza, vítima de seccionamento das carótidas e de violento empalamento. A
notícia desse ocorrido logo chegou também a Princêza o que comoveu a todos
quando, os escravos, realizaram um ofício religioso na igrejinha do Rosário em
memória do negro supliciado. Irritado com isso, o coronel determinou o
fechamento da Igreja do Rosário dos Pretos. Aluísio, em pouco mais de um ano do
acontecido, morreu misteriosamente. O negro Cosmo definhou e morreu de banzo
alguns dias depois da notícia da morte do companheiro.
Mesmo fechada, a Igreja do Rosário se tornou o centro das
atenções dos moradores da vila. Diziam que o pequeno sino tocava na madrugada e
que, os que passavam por seu entorno, escutavam barulhos como se alguém ali
estivesse trabalhando como no tempo de sua edificação. Era voz comum dizerem
que, o templo, virara morada do espírito do negro Gregório. Uma casa mal
assombrada! A Igreja ficou fechada até o fim do vicariato do padre Tavares
Arcoverde em 1899. Em 1963, o então vigário da paróquia de Princesa, o alemão
frei Anscário Hillebrand, mandou derrubar o que restou daquele malfadado
templo.
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