ODE

domingo, 16 de junho de 2024

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

A Igreja do Rosário dos Pretos

Cosmo e Gregório, dois negros, chegados do Recife pela mão de um parente do coronel Marcolino Pereira Lima, aportaram na vila de Princêza no início do ano de 1886. Escravos, tinham, ambos, menos de 20 anos de idade. Chegados à vila, foram entregues ao então vigário da recém-criada Paróquia de Nossa Senhora do Bom Conselho, padre Francisco Tavares Arcoverde.

Gregório era um negro alto e musculoso, da etnia tutsis, considerado portador de habilidades para serviços artesanais e, como tinha servido no convento dos frades Carmelitas, sabia ler e escrever, um negro ladino. Já Cosmo, de estatura média, entroncado, bronco e analfabeto, descendia da etnia hutu e era mais apropriado para os trabalhos braçais. Nascidos no Brasil, foram comprados na capital pernambucana pelo padre Arcoverde com a finalidade de viabilizar a construção de um prédio, em Princêza, para abrigar uma igreja para o culto dos negros.

Gregório era habilitado no ofício de pedreiro e, Cosmo, fazia as vezes de servente. Sob a orientação de Abílio Ferreira – renomado e habilidoso mestre de obras que se transferira de São Paulo para Princêza -, deram-se à lida da construção do templo que, na verdade, era mesmo uma capela. Escravizados, os negros eram mantidos como tal pelo padre porém, sem as agruras dos maus tratos inerentes àquela condição.

Trabalhavam de sol-a-sol na construção da igrejinha, mas eram bem alimentados e até contemplados com o descanso aos domingos e dias santificados. Vestiam-se como os demais desvalidos daquele tempo e, em face de suas condições de inferiores, respeitavam os brancos. Gregório era mais “saído” do que Cosmo. Este, era caladão e refratário a contatos mais chegados. Já o Gregório, a quem chamavam de “Negão”, era ladino sob todos os aspectos.

Com a igreja quase pronta, em meados de 1887 – faltava apenas o reboco das paredes internas e externas, e o piso -, o vigário resolveu celebrar a primeira missa. Na inauguração do templo, ocasião em que se reuniram mulheres e homens de cor, escravos que trabalhavam nos engenhos do coronel e nas labutas domésticas, para assistirem à missa inaugural, o padre Arcoverde fez a leitura da Carta Pastoral emitida pelo bispo de Olinda, que concedia autorização para o funcionamento da nova Igreja.

Na homilia daquela primeira missa, inspirado nos sermões do antológico padre Antônio Vieira, o vigário similarizou o sofrimento dos escravos à agonia de Jesus Cristo na cruz e leu um trecho, excerto de um sermão daquele famoso sacerdote:

“Bem-aventurados vós se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e com a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança aproveitar e santificar o trabalho. (...) Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado (...) porque padeceis em um modo muito semelhante ao que o mesmo senhor padeceu na sua cruz, e em toda a sua paixão.

Embora os demais negros não estivessem entendendo nada do que o padre dizia, no meio da fala do sacerdote, Gregório o interrompeu fazendo uma pergunta: “Quer dizer, seu vigário, que nosso sofrimento é concedido e aprovado por Deus? Se nós também somos filhos Dele como o senhor diz, por que somos diferentes de vocês?” Antes que o padre se pronunciasse, uma negra chamada Ana, que cozinhava na casa do coronel Marcolino, levantou-se do banco onde estava, partiu para o escravo inquiridor e disse: “Negão, não diga isso com o padre, ele tá falando as palavras de Deus e, quem és tu, para duvidar? Tenha respeito!” Tentando acalmar os ânimos, o padre mandou a negra sentar-se e admoestou gravemente Gregório: “Não ouse me interromper, tampouco duvidar do que digo. Essas palavras do padre Antônio Vieira são sábias e verdadeiras porque proferidas por um teólogo da Santa Madre Igreja! Seja esta, a última vez que você contesta um ensinamento da Igreja”. E, com voz irritada, gritou: “Retire-se daqui!”

Esse incidente traria consequências nefastas para o negro Gregório. Sabedor do episódio, o coronel Marcolino mandou chamar o cativo à sua presença e determinou que arrumasse suas coisas, pois, no dia seguinte, seria enviado para trabalhar em uma de suas fazendas no vizinho estado de Pernambuco. Na noite desse dia, o Negão já dormiu em outro local que não o de costume: num armazém fechado a chave para que não ousasse fugir.

No outro dia, logo cedo, dois capatazes do coronel empreenderam viagem levando o escravo para uma sua propriedade nas imediações de Vila Bela. Era a fazenda Santa Clara, administrada por um parente do coronel, chamado Aluísio. Este, branco, casado com Luzia e pai de duas filhas, Rosa e Rita, morava numa espaçosa casa assobradada que servia de sede da fazenda. Aluísio recebeu Gregório e o designou para os cuidados com a manutenção de água, lenha e a ordenha das vacas para o abastecimento doméstico.

Logo, o escravo se acostumou com a rotina da casa e ganhou a graça dos membros da nova família à qual servia. As meninas, Rosa com 14 anos de idade e, Rita, com 16, eram diferentes entre si. Ambas brancas, mas, de conformação física e de personalidades diversas. Rosa, além de bonita, com seu corpo bem feito e longos cabelos loiros, era conversadeira, sensual por natureza e muito brincalhona. Já Rita, gordinha e de baixa estatura era calada, arredia e mau humorada como se vivesse de mal com a vida. Eram dois extremos.

Com Rosa, logo Gregório fez amizade e, dessa interação, criou-se uma intimidade que aumentou quando o escravo, letrado que era, começou a ensinar a menina a ler. Aos sábados e domingos, passavam horas, na varanda da casa, onde o cativo ensinava, sobre uma pequena mesa, as primeiras letras à mocinha. Logo Rosa aprendeu a ler e a escrever, o que foi louvado pela mãe Luzia, mas, reprovado pelo pai. Naquele tempo, os pais abominavam filhas letradas. Diziam eles que elas aprendiam a ler para mandar cartas para namorados e que, mulher era para as coisas do lar. Mesmo assim, Aluísio tolerou essa novidade.

Em Princêza, depois do episódio protagonizado pelo cativo rebelde, os trabalhos de finalização da construção da igreja dos pretos, carecidos de mão de obra especializada, com a ausência de Gregório, pararam. O negro Cosmo não tinha a mesma habilidade do outro; mestre Abílio havia ido trabalhar no Recife e, não se sabe porque, o padre Arcoverde desinteressou-se da obra. Quase que abandonado, o templo era usado somente para os ofícios mais simples como a reza do Rosário, às quintas-feiras, tirado pela escrava Ana acompanhada de um punhado de negras que respondiam às Ave-Marias e os Padre-nossos quase cochilando e sem saber direito o que diziam. O vigário nem lá pisava.

Já na fazenda Santa Clara, aconteciam coisas que prenunciavam tragédia. Além de ensinar a ler e escrever, o elemento servil ensinou também, a Rosa, as coisas do amor. Durante as aulas, enquanto a menina escrevinhava, Gregório roçava suas pernas nas dela ao que Rosa jamais objetou. Pelo contrário, acompanhava o ritmo imposto pelo negro num esfregamento mútuo que a deixava sem fôlego. Desse roçar, a coisa evoluiu e quando os dois se deram por fé, estavam, às escondidas, aos beijos e abraços.

Gregório dormia numa rede armada num barracão que servia de armazém, ao lado da casa, sede da fazenda. Numa noite enluarada do mês de janeiro de 1888, por volta das dez horas da noite, o negro escutou o ranger da porta dos fundos do armazém. Esperto que era, pulou da rede já com um facão à mão. Na penumbra permitida pelo tênue clarão da lua que adentrava àquele barracão pelas frestas do telhado irregular, o cativo viu o vulto de uma mulher que se aproximava. “Rosa...?” Perguntou o negro. “Sim, sou eu...” Respondeu a menina quase num sussurro. “O que diabo tu tá fazendo aqui menina? Tás doida?!” A mocinha, já em sua frente, respondeu: “Eu vim dormir mais tu”.

Incendiado de desejo, o escravo abraçou a menina e, ali mesmo, no chão do armazém, sobre uma pequena esteira, Gregório desvirginou a filha do seu senhor. Como essa, foram muitas as noites de amor sem que ninguém desconfiasse de nada. Contudo, a fatura dessa ilicitude amorosa não demorou a chegar. Rosa, sem mais nem menos, começou a sentir-se mal, a desmaiar pelos cantos sem que ninguém soubesse do que se tratava.

Livre dos chiliques, a barriga da mocinha começou a crescer e, a mãe, mais experiente, inquiriu a menina sobre o que estava acontecendo. Aflita com a situação, Rosa confessou seu romance com o negro. Luzia, ao invés de amparar a filha, aperreada, procurou Gregório, contou-lhe o que estava acontecendo e disse que ia dizer a Aluísio. Ladino que era, o negro, na noite desse mesmo dia, temeroso pela reação do pai da moça, escapuliu na escuridão e desapareceu sem deixar rastro.

Ao saber da situação, Aluísio determinou que Rosa ficasse enfurnada no sobrado da casa grande, incomunicável, até a criança nascer, e deu ordens para que ninguém falasse mais sobre esse assunto. Quanto ao negro, o capataz organizou uma força-tarefa composta por mais de 10 escravos e partiu em busca daquele que “desgraçou” sua filha. Busca inglória. O mundo abriu-se e fechou-se e, o negro, desapareceu. Passados alguns meses, Rosa pariu um menino que foi imediatamente encaminhado para a cidade do Recife com destino à “Roda dos Enjeitados” do convento das Carmelitas Descalças. Terminado o resguardo, Rosa, por recomendação do coronel Marcolino, foi aceita como noviça no convento das Clarissas, em Olinda.

Na fazenda, mesmo depois dessa tragédia, a vida parecia correr normal até o dia em que chegou a notícia de que, o corpo do negro Gregório, foi encontrado, na beira de uma estrada vicinal, próximo à vila de Princêza, vítima de seccionamento das carótidas e de violento empalamento. A notícia desse ocorrido logo chegou também a Princêza o que comoveu a todos quando, os escravos, realizaram um ofício religioso na igrejinha do Rosário em memória do negro supliciado. Irritado com isso, o coronel determinou o fechamento da Igreja do Rosário dos Pretos. Aluísio, em pouco mais de um ano do acontecido, morreu misteriosamente. O negro Cosmo definhou e morreu de banzo alguns dias depois da notícia da morte do companheiro.

Mesmo fechada, a Igreja do Rosário se tornou o centro das atenções dos moradores da vila. Diziam que o pequeno sino tocava na madrugada e que, os que passavam por seu entorno, escutavam barulhos como se alguém ali estivesse trabalhando como no tempo de sua edificação. Era voz comum dizerem que, o templo, virara morada do espírito do negro Gregório. Uma casa mal assombrada! A Igreja ficou fechada até o fim do vicariato do padre Tavares Arcoverde em 1899. Em 1963, o então vigário da paróquia de Princesa, o alemão frei Anscário Hillebrand, mandou derrubar o que restou daquele malfadado templo.



 

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