Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
O espirro do corcunda
A feiura era o que mais realçava nele. Portador de uma escoliose
que lhe castigava com acentuada curvatura lateral da coluna vertebral, o que
provocou a protuberância do osso esterno, Afonso, além desse defeito congênito
era desprovido de qualquer resquício de beleza. O vértice de suas pernas
alcançava mais da metade de seu corpo e, de seu tronco, redondo, encimado por
uma grande cabeça, saíam dois longos braços que mais pareciam tentáculos. Pobre
e viciado em jogos de azar, o homem, solteiro, por óbvio, morava em Princesa com
a mãe. Mesmo com essa plástica disforme, o corcunda, libidinoso ao extremo, era
louco por mulheres. Toda conversa que abordava, incluía, assaz, o sexo feminino
como tema preferido.
“Afonso do Caroço” ou “Peito de Pombo”, como era chamado,
pejorativamente, já aos 54 anos de idade, vivia das migalhas da aposentadoria
da mãe e da arte de fazer bainhas de faca, atividade que poderia lhe render
algum dinheiro não fora a preguiça que lhe impedia de aumentar a freguesia.
Além das mulheres, o que o geboso gostava mesmo era de beber cachaça e de estar
pelas esquinas jogando conversa fora, e, quando lhe sobrava algum dinheirinho,
tomava o rumo do cabaré para deitar-se com alguma das quengas do lupanar de
Estrela; isso por um preço superior ao normalmente praticado, pois, sua
repulsiva figura inflacionava a tabela convencional.
Não bastasse a feiura, o homem era inconveniente. Falava
alto, gargalhava numa estridência nervosa, tinha mau hálito, suvaqueira e, por
ser asmático, não se apartava de uma bombinha de Aerolin que carregava no
bolso. Além de tudo isso, sofria de bruxismo, o que lhe deformava a boca. Falastrão,
em toda conversa se metia e articulava a fala batendo a língua nos dentes e
jogando para fora, junto com as palavras, grande quantidade de saliva.
Certo dia, numa discussão com amigos, em abordagem da
política partidária local, Afonso do Caroço destratou um companheiro de cachaça,
um negro chamado Pedro, na bodega de Adauto Duarte quando, na discussão, por
ser adversário político, o chamou de “nêgo
safado”. O ofendido aspou-se e, com um pequeno canivete à mão, partiu para
agredir o corcunda. A turma do “deixa disso” interveio e apaziguou o entrevero,
porém, ficou a rixa quando, os dois, não podiam se encontrar sem que houvesse
uma discussão.
Num sábado à tarde, fim de feira, Peito de Pombo encontrou o
rival no cabaré e começou a falar alto, se proclamando valente e que não tinha
medo de ninguém. Pedro tomou para si como ofensa, levantou-se do tamborete em
que estava sentado, endireitou-se, partiu para o desafeto e foi logo
perguntando: “Ei! Peito de Pombo, tu vai
tocar aonde?” Já irritado com o apelido, Afonso gritou de lá: “Tocar o quê, rapaz?” Sorrindo, Pedro
completou: “Pra que tu quer essa sanfona
que tu carrega nas costas?”. A gargalhada foi geral.
Injuriado, Afonso partiu pra cima do ofensor e se enroletaram,
os dois, pelo chão do bar onde estavam. Nessa peleja, o corcunda levou a
melhor. Com suas longas pernas, rodopiava no chão e, como um jogador de
capoeira, desfechava golpes contra seu agressor sem que este o pudesse agarrar.
Sempre que Pedro tentava pegar Afonso, este, redondo, escapulia das mãos do
negro. Naqueles meios, atendendo intervenção de Estrela, a dona do cabaré, a
briga cessou, terminando com, ambos os contendores, tomando cachaça juntos, e
ficou o dito pelo não dito. Afonso era de lua: às vezes agressivo e, de
repente, se fazia suave como se nada tivesse acontecido. Mesmo assim, nele
ninguém podia confiar porque, de uma hora para outra, podia voltar ao
comportamento agressivo sem motivo que o provocasse. Complexado que era, nada o
irritava mais do que brincadeiras realçando a sua deformidade.
Mesmo cobrando mais caro, as raparigas do cabaré se esquivavam
em deitar-se com o Peito de Pombo. Elas tinham nojo dele. Algumas não iam pra
cama com ele de jeito nenhum. Mas essa situação mudaria. Viciado em jogatinas,
o corcunda tinha preferência pelas apostas nas loterias e jogava - embora em
pequenas quantias - de forma contumaz. Nesse sempre, um dia foi contemplado com
a sorte grande e ganhou na mega-sena! Ninguém sabia o valor do prêmio, mas
todos falavam em milhões.
Logo surgiu na rua o comentário de que Afonso do Caroço mudara
de vida e que havia comprado uma fazenda, de porteira fechada, no estado do
Mato Grosso. Desapareceu por uns meses e, de repente, voltou, bem vestido,
perfumado e circulando num carrão importado. Agora, Afonso do Caroço era o
cara! Falava grosso e era por todos respeitado. Embora sua vida tenha mudado, o
corcunda não abandonou o vício de jogar, tampouco o de frequentar cabarés.
Quando estava em Princesa, o lupanar de Estrela era parada obrigatória com a
vantagem, agora, de ser recebido ali com a pompa devida aos endinheirados.
Depois de enriquecer, em sua primeira ida ao cabaré de
Princesa, o ex-Peito de Pombo, agora “seu” Afonso, já foi recebido de forma
diferente. As mulheres, que antes o rejeitavam, agora o rodeavam, insinuantes,
em afagos vários àquele que antes lhes causava repulsa. Todas queriam trepar
com Afonso. Agora, era ele quem escolhia. Não bastasse isso, Pedro, o antigo
desafeto, era agora seu guarda-costas que fazia as vezes de estafeta em busca
das melhores raparigas para o patrão comer. O rico geboso, agora com a libido
mais apurada ainda, não se fazia de rogado quando se aproveitava das melhores
quengas daquela casa de recursos.
Afonso adorava fornicar beijando na boca, porém, quando atrepado
na quenga, dada a protuberância do osso esterno - o que o fazia redondo – o
movimento se assemelhava ao de uma gangorra: quando metia, não podia beijar e, quando
beijava, não podia meter. Esse impedimento se constituía uma frustração para as
putas quando, no mais das vezes, o corcunda gozava fora, em desproveito de uma
possível e redentora gravidez para aquelas pobres mulheres ávidas por uma
futura e gorda pensão alimentícia.
Diferente de antigamente, agora, Afonso no cabaré era uma
festa. Pagava pra todo mundo, era respeitado e escolhia a rapariga que
quisesse. Mandava na bola e, qual não foi a sorte do rico corcunda, quando uma
mocinha de 16 anos “se perdeu” com o namorado e, botada de casa para fora pelo
pai, tomou o rumo do cabaré de Estrela. Além de bonita e viçosa em sua pouca
idade, Nalvinha, logo que chegou, foi oferecida a Afonso. Animado com a prenda,
o homem foi logo dizendo: “Isso não é
mulher para viver em cabaré não. Essa aqui eu vou levar é pra casa!” Botou
a menina no dente e a carregou para sua fazenda no Mato Grosso.
Já beirando os sessenta anos de idade, no afã de uma boa
performance na cama com sua nova amante, o corcunda, que já tinha o coração
comprimido pelo desvio da coluna vertebral, se excedeu na ingestão de cachetes
para melhorar o tesão e, numa noite chuvosa do verão mato-grossense, quando
estava em pleno gozo do belo corpo de Nalvinha, teve um piripaque fatal. Morreu
em cima da mulher! De sorte que esticou a canela quando estava metendo e não
quando estava beijando, o que permitiu que toda sua herança ficasse para o
resultado de seu derradeiro espirro.
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