ODE

domingo, 30 de junho de 2024

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

O espirro do corcunda

A feiura era o que mais realçava nele. Portador de uma escoliose que lhe castigava com acentuada curvatura lateral da coluna vertebral, o que provocou a protuberância do osso esterno, Afonso, além desse defeito congênito era desprovido de qualquer resquício de beleza. O vértice de suas pernas alcançava mais da metade de seu corpo e, de seu tronco, redondo, encimado por uma grande cabeça, saíam dois longos braços que mais pareciam tentáculos. Pobre e viciado em jogos de azar, o homem, solteiro, por óbvio, morava em Princesa com a mãe. Mesmo com essa plástica disforme, o corcunda, libidinoso ao extremo, era louco por mulheres. Toda conversa que abordava, incluía, assaz, o sexo feminino como tema preferido.

“Afonso do Caroço” ou “Peito de Pombo”, como era chamado, pejorativamente, já aos 54 anos de idade, vivia das migalhas da aposentadoria da mãe e da arte de fazer bainhas de faca, atividade que poderia lhe render algum dinheiro não fora a preguiça que lhe impedia de aumentar a freguesia. Além das mulheres, o que o geboso gostava mesmo era de beber cachaça e de estar pelas esquinas jogando conversa fora, e, quando lhe sobrava algum dinheirinho, tomava o rumo do cabaré para deitar-se com alguma das quengas do lupanar de Estrela; isso por um preço superior ao normalmente praticado, pois, sua repulsiva figura inflacionava a tabela convencional.

Não bastasse a feiura, o homem era inconveniente. Falava alto, gargalhava numa estridência nervosa, tinha mau hálito, suvaqueira e, por ser asmático, não se apartava de uma bombinha de Aerolin que carregava no bolso. Além de tudo isso, sofria de bruxismo, o que lhe deformava a boca. Falastrão, em toda conversa se metia e articulava a fala batendo a língua nos dentes e jogando para fora, junto com as palavras, grande quantidade de saliva.

Certo dia, numa discussão com amigos, em abordagem da política partidária local, Afonso do Caroço destratou um companheiro de cachaça, um negro chamado Pedro, na bodega de Adauto Duarte quando, na discussão, por ser adversário político, o chamou de “nêgo safado”. O ofendido aspou-se e, com um pequeno canivete à mão, partiu para agredir o corcunda. A turma do “deixa disso” interveio e apaziguou o entrevero, porém, ficou a rixa quando, os dois, não podiam se encontrar sem que houvesse uma discussão.

Num sábado à tarde, fim de feira, Peito de Pombo encontrou o rival no cabaré e começou a falar alto, se proclamando valente e que não tinha medo de ninguém. Pedro tomou para si como ofensa, levantou-se do tamborete em que estava sentado, endireitou-se, partiu para o desafeto e foi logo perguntando: “Ei! Peito de Pombo, tu vai tocar aonde?” Já irritado com o apelido, Afonso gritou de lá: “Tocar o quê, rapaz?” Sorrindo, Pedro completou: “Pra que tu quer essa sanfona que tu carrega nas costas?”. A gargalhada foi geral.

Injuriado, Afonso partiu pra cima do ofensor e se enroletaram, os dois, pelo chão do bar onde estavam. Nessa peleja, o corcunda levou a melhor. Com suas longas pernas, rodopiava no chão e, como um jogador de capoeira, desfechava golpes contra seu agressor sem que este o pudesse agarrar. Sempre que Pedro tentava pegar Afonso, este, redondo, escapulia das mãos do negro. Naqueles meios, atendendo intervenção de Estrela, a dona do cabaré, a briga cessou, terminando com, ambos os contendores, tomando cachaça juntos, e ficou o dito pelo não dito. Afonso era de lua: às vezes agressivo e, de repente, se fazia suave como se nada tivesse acontecido. Mesmo assim, nele ninguém podia confiar porque, de uma hora para outra, podia voltar ao comportamento agressivo sem motivo que o provocasse. Complexado que era, nada o irritava mais do que brincadeiras realçando a sua deformidade.

Mesmo cobrando mais caro, as raparigas do cabaré se esquivavam em deitar-se com o Peito de Pombo. Elas tinham nojo dele. Algumas não iam pra cama com ele de jeito nenhum. Mas essa situação mudaria. Viciado em jogatinas, o corcunda tinha preferência pelas apostas nas loterias e jogava - embora em pequenas quantias - de forma contumaz. Nesse sempre, um dia foi contemplado com a sorte grande e ganhou na mega-sena! Ninguém sabia o valor do prêmio, mas todos falavam em milhões.

Logo surgiu na rua o comentário de que Afonso do Caroço mudara de vida e que havia comprado uma fazenda, de porteira fechada, no estado do Mato Grosso. Desapareceu por uns meses e, de repente, voltou, bem vestido, perfumado e circulando num carrão importado. Agora, Afonso do Caroço era o cara! Falava grosso e era por todos respeitado. Embora sua vida tenha mudado, o corcunda não abandonou o vício de jogar, tampouco o de frequentar cabarés. Quando estava em Princesa, o lupanar de Estrela era parada obrigatória com a vantagem, agora, de ser recebido ali com a pompa devida aos endinheirados.

Depois de enriquecer, em sua primeira ida ao cabaré de Princesa, o ex-Peito de Pombo, agora “seu” Afonso, já foi recebido de forma diferente. As mulheres, que antes o rejeitavam, agora o rodeavam, insinuantes, em afagos vários àquele que antes lhes causava repulsa. Todas queriam trepar com Afonso. Agora, era ele quem escolhia. Não bastasse isso, Pedro, o antigo desafeto, era agora seu guarda-costas que fazia as vezes de estafeta em busca das melhores raparigas para o patrão comer. O rico geboso, agora com a libido mais apurada ainda, não se fazia de rogado quando se aproveitava das melhores quengas daquela casa de recursos.

Afonso adorava fornicar beijando na boca, porém, quando atrepado na quenga, dada a protuberância do osso esterno - o que o fazia redondo – o movimento se assemelhava ao de uma gangorra:  quando metia, não podia beijar e, quando beijava, não podia meter. Esse impedimento se constituía uma frustração para as putas quando, no mais das vezes, o corcunda gozava fora, em desproveito de uma possível e redentora gravidez para aquelas pobres mulheres ávidas por uma futura e gorda pensão alimentícia.

Diferente de antigamente, agora, Afonso no cabaré era uma festa. Pagava pra todo mundo, era respeitado e escolhia a rapariga que quisesse. Mandava na bola e, qual não foi a sorte do rico corcunda, quando uma mocinha de 16 anos “se perdeu” com o namorado e, botada de casa para fora pelo pai, tomou o rumo do cabaré de Estrela. Além de bonita e viçosa em sua pouca idade, Nalvinha, logo que chegou, foi oferecida a Afonso. Animado com a prenda, o homem foi logo dizendo: “Isso não é mulher para viver em cabaré não. Essa aqui eu vou levar é pra casa!” Botou a menina no dente e a carregou para sua fazenda no Mato Grosso.

Já beirando os sessenta anos de idade, no afã de uma boa performance na cama com sua nova amante, o corcunda, que já tinha o coração comprimido pelo desvio da coluna vertebral, se excedeu na ingestão de cachetes para melhorar o tesão e, numa noite chuvosa do verão mato-grossense, quando estava em pleno gozo do belo corpo de Nalvinha, teve um piripaque fatal. Morreu em cima da mulher! De sorte que esticou a canela quando estava metendo e não quando estava beijando, o que permitiu que toda sua herança ficasse para o resultado de seu derradeiro espirro.



 

 

   

  

 

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