domingo, 9 de junho de 2024

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

As orelhas do cangaceiro

Até hoje persiste em Princesa uma polêmica quando se fala sobre a relação do coronel José Pereira Lima com o Cangaço. Alguns historiadores asseguram que o coronel foi aliado e até coiteiro de cangaceiros. Por outro lado, familiares de Zé Pereira (principalmente seu filho, o já falecido ex-deputado Aloysio Pereira), afirmavam e afirmam que o chefe político de Princesa, em atividade na primeira metade do século passado (XX), jamais teve conluio com cangaceiros e que, pelo contrário, Zé Pereira combatia os facínoras e não permitia acoitamento deles em suas terras. Na verdade, ambas as vertentes dessa história têm algo de verídico.

Até o início da década de 1920 o coronel Zé Pereira – como todos os potentados e chefes políticos daquela época - fazia vistas grossas ao acoitamento de cangaceiros promovido por seu sobrinho e cunhado, Marcolino Florentino Diniz (o “Caboclo Marcolino”). Na qualidade de político influente (deputado estadual) o soba princesense e coronel de maior prestígio no Nordeste, Zé Pereira não queria se expor dando guarida a cangaceiros, porém, não proibia que seus parentes o fizessem.

Somente quando do advento da Coluna Prestes - movimento político-militar que percorreu o interior do Brasil entre os anos de 1924-27 – e sua passagem pela Paraíba, sob o governo de João Suassuna, este, atendendo ordens do Catete, resolveu mobilizar todas as lideranças do Estado, suprindo-as de armas e munições para combater os da Coluna Prestes, também chamados de Revoltosos. Munido dessa parafernália bélica, Zé Pereira, com o fim desse movimento, usou suas forças em demanda da perseguição aos cangaceiros, principalmente os do grupo liderado por Virgulino Ferreira, o “Lampião”. 

No afã de debelar esse banditismo que assolava todo o interior nordestino, o coronel se fez, a partir de meados da década de 1920, um dos principais inimigos do cangaceirismo. Mesmo assim, parentes e amigos do coronel não se furtavam em continuar dando apoio e guarida aos cangaceiros. Um dos principais coiteiros do grupo de Lampião era o Caboclo Marcolino que, em suas fazendas, nas terras de Patos (atual Irerê), acoitava Lampião e até festas promovia em homenagem aos que o coronel considerava bandidos.

Uma das comemorações mais emblemáticas foi a festa que Marcolino promoveu, quando da posse de Lampião como chefe do grupo de cangaceiros que antes era liderado por Sinhô Pereira que, aposentado, passou o cetro àquele que seria considerado, mais tarde, o “Rei do Cangaço”. Nessa ocasião, na fazenda Pedra, houve grande festa com a presença de autoridades, tais quais: o prefeito da cidade pernambucana de Triunfo e o Juiz de Direito da Comarca de Princesa. Tudo isso, se à revelia, mas, debaixo das barbas do coronel Zé Pereira.

Se não avalizava esse comportamento do sobrinho-cunhado, o coronel, fazia vistas grossas, porém, mesmo assim, cultivava a esperança de uma oportunidade em punir os facínoras e seus apoiadores. Uma das maiores desfeitas contra as ordens do coronel Zé Pereira, foi a realização do casamento do cangaceiro Antônio Augusto Correia, mais conhecido por “Meia-Noite” – um mameluco forte e destemido que começara na vida errante do crime ainda impúbere, aos 12 anos de idade - com seu grande amor, a cabocla Zulmira, ocorrido na capela de São Sebastião no povoado de Patos. Sob os auspícios do major Floro (proprietário de grande vastidão de terras e também da capela), e do vigário de Princesa, padre Floro Diniz, mesmo a contragosto do coronel, o casamento do cangaceiro foi realizado e seguido de grande festa. Uma verdadeira afronta ao chefe de Princesa. Todavia, se os promotores desse evento foram anistiados da desobediência, o pobre cangaceiro, não perdia por esperar. Zé Pereira resolveu punir Meia-Noite, um dos principais seguidores de Lampião.

Após o casamento, o grupo de Lampião – este se recuperava de um ferimento no pé e era tratado nas imediações do povoado de Patos pelo médico doutor Severino Diniz -, por ordens suas, partiu para a famosa invasão da cidade paraibana de Sousa, o que ocorreu em 27 de julho de 1924. No retorno dessa empreitada, uma confusão se instalou no seio do grupo de cangaceiros quando, do butim daquele ataque, desapareceram nove contos de réis, que era a parte que cabia ao cangaceiro Meia-Noite. Exasperado, este, imputou a culpa do “roubo” aos dois irmãos de Lampião, Antônio Ferreira e Livino. Em face da confusão, Lampião ressarciu Meia-Noite, no mesmo valor supostamente roubado por seus irmãos e o expulsou do bando. Desgarrado do grupo, o cangaceiro se fez presa fácil para os cabras do coronel Zé Pereira.

Primeiro, determinado pelo coronel, formou-se uma volante em perseguição dos cangaceiros em suas propriedades e, um desses perseguidos era Meia-Noite. Acuado pela polícia, por duas oportunidades, em casebres no sítio Tataíra, Meia-Noite escapou e, ferido, foi esbarrar numa gruta de pedra no sítio Saco dos Caçulas. Ali descoberto por Manoel Lopes Diniz - fiel escudeiro e ainda parente do coronel, mais conhecido por “Ronco Grosso”, apelido concedido por sua potente e cavernosa voz de barítono - foi denunciado ao chefe de Princesa. Chegado à casa de Zé Pereira, após informar o paradeiro do cangaceiro, Ronco Grosso perguntou ao coronel o que fazer com o homem, ao que Zé Pereira respondeu: “Resolva você. Eu não quero cangaceiros em minhas terras. São as orelhas dele ou, as suas”. Estava dada senha.

Para essa incumbência, Zé Pereira designou, além de Ronco Grosso, o ex-cangaceiro Antônio Ladislau, mais conhecido por “Tocha”. Nesse ponto residem algumas interrogações. Há quem diga que Zé Pereira ordenou a morte de Meia-Noite. No entanto, parentes do coronel assinalam que o chefe político queria apenas enxotar o cangaceiro de suas propriedades. Pelo sim, pelo não, a história conta que, Ronco Grosso, fazendo-se de coiteiro do cangaceiro, quando o supria de mantimentos enquanto escondido naquela gruta no Saco dos Caçulas, numa manhã chuvosa do mês de agosto de 1924, juntamente com Tocha, partiu de Princesa determinado em cumprir a sub-reptícia ordem do coronel.

Chegados ao Saco dos Caçulas, prepararam marmitas com comida e um bule de café e partiram para o esconderijo onde estava Meia-Noite. Lá chegando, acostumados que estavam em servi-lo, se aproximaram e serviram o jantar ao cangaceiro. Depois de alguns minutos de prosa, sem que o facínora de nada desconfiasse, os dois dispararam, à queima-roupa, assassinando o destemido cangaceiro. Não bastasse isso, deceparam-lhe as orelhas      

As orelhas decepadas – uma prática bastante usada naqueles idos - serviriam de prova de que o facínora havia sido exterminado. Dessa empresa, restou um episódio macabro que, segundo alguns historiadores, foi relatado por uma sobrinha do coronel Zé Pereira. Conta-se que, na noite daquele fatídico dia de agosto de 1924, Ronco Grosso adentrou à casa do coronel, em Princesa e, sem explicação alguma, derramou sobre a mesa grande da sala de jantar – ocasião em que o chefe político estava reunido com parentes, amigos e correligionários -, o conteúdo de seu embornal: duas enegrecidas orelhas. Atônito com a macabra cena, Zé Pereira, talvez para imiscuir-se de possível conivência, reclamou com voz altiva: “O que é isso?! Leve isso daqui, homem!” E, Ronco Grosso: “Mas, coronel, isso são as orelhas do cangaceiro!”



 

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