Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
As orelhas do
cangaceiro
Até hoje persiste em Princesa uma polêmica quando se fala
sobre a relação do coronel José Pereira Lima com o Cangaço. Alguns historiadores
asseguram que o coronel foi aliado e até coiteiro de cangaceiros. Por outro
lado, familiares de Zé Pereira (principalmente seu filho, o já falecido
ex-deputado Aloysio Pereira), afirmavam e afirmam que o chefe político de
Princesa, em atividade na primeira metade do século passado (XX), jamais teve
conluio com cangaceiros e que, pelo contrário, Zé Pereira combatia os facínoras
e não permitia acoitamento deles em suas terras. Na verdade, ambas as vertentes
dessa história têm algo de verídico.
Até o início da década de 1920 o coronel Zé Pereira – como
todos os potentados e chefes políticos daquela época - fazia vistas grossas ao
acoitamento de cangaceiros promovido por seu sobrinho e cunhado, Marcolino
Florentino Diniz (o “Caboclo Marcolino”). Na qualidade de político influente
(deputado estadual) o soba princesense e coronel de maior prestígio no
Nordeste, Zé Pereira não queria se expor dando guarida a cangaceiros, porém,
não proibia que seus parentes o fizessem.
Somente quando do advento da Coluna Prestes - movimento
político-militar que percorreu o interior do Brasil entre os anos de 1924-27 – e
sua passagem pela Paraíba, sob o governo de João Suassuna, este, atendendo
ordens do Catete, resolveu mobilizar todas as lideranças do Estado, suprindo-as
de armas e munições para combater os da Coluna Prestes, também chamados de
Revoltosos. Munido dessa parafernália bélica, Zé Pereira, com o fim desse
movimento, usou suas forças em demanda da perseguição aos cangaceiros,
principalmente os do grupo liderado por Virgulino Ferreira, o “Lampião”.
No afã de debelar esse banditismo que assolava todo o
interior nordestino, o coronel se fez, a partir de meados da década de 1920, um
dos principais inimigos do cangaceirismo. Mesmo assim, parentes e amigos do
coronel não se furtavam em continuar dando apoio e guarida aos cangaceiros. Um
dos principais coiteiros do grupo de Lampião era o Caboclo Marcolino que, em
suas fazendas, nas terras de Patos (atual Irerê), acoitava Lampião e até festas
promovia em homenagem aos que o coronel considerava bandidos.
Uma das comemorações mais emblemáticas foi a festa que
Marcolino promoveu, quando da posse de Lampião como chefe do grupo de
cangaceiros que antes era liderado por Sinhô Pereira que, aposentado, passou o
cetro àquele que seria considerado, mais tarde, o “Rei do Cangaço”. Nessa
ocasião, na fazenda Pedra, houve grande festa com a presença de autoridades,
tais quais: o prefeito da cidade pernambucana de Triunfo e o Juiz de Direito da
Comarca de Princesa. Tudo isso, se à revelia, mas, debaixo das barbas do
coronel Zé Pereira.
Se não avalizava esse comportamento do sobrinho-cunhado, o coronel,
fazia vistas grossas, porém, mesmo assim, cultivava a esperança de uma
oportunidade em punir os facínoras e seus apoiadores. Uma das maiores desfeitas
contra as ordens do coronel Zé Pereira, foi a realização do casamento do
cangaceiro Antônio Augusto Correia, mais conhecido por “Meia-Noite” – um
mameluco forte e destemido que começara na vida errante do crime ainda
impúbere, aos 12 anos de idade - com seu grande amor, a cabocla Zulmira, ocorrido na capela
de São Sebastião no povoado de Patos. Sob os auspícios do major Floro
(proprietário de grande vastidão de terras e também da capela), e do vigário de
Princesa, padre Floro Diniz, mesmo a contragosto do coronel, o casamento do
cangaceiro foi realizado e seguido de grande festa. Uma verdadeira afronta ao
chefe de Princesa. Todavia, se os promotores desse evento foram anistiados da
desobediência, o pobre cangaceiro, não perdia por esperar. Zé Pereira resolveu
punir Meia-Noite, um dos principais seguidores de Lampião.
Após o casamento, o grupo de Lampião – este se recuperava de
um ferimento no pé e era tratado nas imediações do povoado de Patos pelo médico
doutor Severino Diniz -, por ordens suas, partiu para a famosa invasão da
cidade paraibana de Sousa, o que ocorreu em 27 de julho de 1924. No retorno
dessa empreitada, uma confusão se instalou no seio do grupo de cangaceiros
quando, do butim daquele ataque, desapareceram nove contos de réis, que era a
parte que cabia ao cangaceiro Meia-Noite. Exasperado, este, imputou a culpa do “roubo”
aos dois irmãos de Lampião, Antônio Ferreira e Livino. Em face da confusão, Lampião
ressarciu Meia-Noite, no mesmo valor supostamente roubado por seus irmãos e o
expulsou do bando. Desgarrado do grupo, o cangaceiro se fez presa fácil para os
cabras do coronel Zé Pereira.
Primeiro, determinado pelo coronel, formou-se uma volante em
perseguição dos cangaceiros em suas propriedades e, um desses perseguidos era
Meia-Noite. Acuado pela polícia, por duas oportunidades, em casebres no sítio
Tataíra, Meia-Noite escapou e, ferido, foi esbarrar numa gruta de pedra no
sítio Saco dos Caçulas. Ali descoberto por Manoel Lopes Diniz - fiel escudeiro
e ainda parente do coronel, mais conhecido por “Ronco Grosso”, apelido
concedido por sua potente e cavernosa voz de barítono - foi denunciado ao chefe
de Princesa. Chegado à casa de Zé Pereira, após informar o paradeiro do
cangaceiro, Ronco Grosso perguntou ao coronel o que fazer com o homem, ao que
Zé Pereira respondeu: “Resolva você. Eu não quero cangaceiros em minhas terras.
São as orelhas dele ou, as suas”. Estava dada senha.
Para essa incumbência, Zé Pereira designou, além de Ronco
Grosso, o ex-cangaceiro Antônio Ladislau, mais conhecido por “Tocha”. Nesse
ponto residem algumas interrogações. Há quem diga que Zé Pereira ordenou a
morte de Meia-Noite. No entanto, parentes do coronel assinalam que o chefe
político queria apenas enxotar o cangaceiro de suas propriedades. Pelo sim,
pelo não, a história conta que, Ronco Grosso, fazendo-se de coiteiro do
cangaceiro, quando o supria de mantimentos enquanto escondido naquela gruta no
Saco dos Caçulas, numa manhã chuvosa do mês de agosto de 1924, juntamente com
Tocha, partiu de Princesa determinado em cumprir a sub-reptícia ordem do
coronel.
Chegados ao Saco dos Caçulas, prepararam marmitas com comida
e um bule de café e partiram para o esconderijo onde estava Meia-Noite. Lá
chegando, acostumados que estavam em servi-lo, se aproximaram e serviram o
jantar ao cangaceiro. Depois de alguns minutos de prosa, sem que o facínora de
nada desconfiasse, os dois dispararam, à queima-roupa, assassinando o destemido
cangaceiro. Não bastasse isso, deceparam-lhe as orelhas
As orelhas decepadas – uma prática bastante usada naqueles
idos - serviriam de prova de que o facínora havia sido exterminado. Dessa
empresa, restou um episódio macabro que, segundo alguns historiadores, foi
relatado por uma sobrinha do coronel Zé Pereira. Conta-se que, na noite daquele
fatídico dia de agosto de 1924, Ronco Grosso adentrou à casa do coronel, em
Princesa e, sem explicação alguma, derramou sobre a mesa grande da sala de
jantar – ocasião em que o chefe político estava reunido com parentes, amigos e
correligionários -, o conteúdo de seu embornal: duas enegrecidas orelhas.
Atônito com a macabra cena, Zé Pereira, talvez para imiscuir-se de possível conivência,
reclamou com voz altiva: “O que é isso?! Leve isso daqui, homem!” E, Ronco
Grosso: “Mas, coronel, isso são as orelhas do cangaceiro!”
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