Por Domingos Sávio Maximiano Roberto
Os Santos Rejeitados
Inverno de 1967.
Naquela época, empolgados todos pela recente construção de Brasília e com
aquele sentimento de modernização por que passava o país, depois do “furacão”
Juscelino Kubitschek, quase todos queriam o novo. Porém, em Princesa, essa
modernidade aconteceu em detrimento do patrimônio histórico, representado pela
velha igreja e por alguns outros imóveis históricos que compunham o casario
antigo da cidade. O prédio da igreja Matriz Nossa Senhora do Bom Conselho, que
havia tido sua construção terminada em 1875, estava quase completando seu primeiro
centenário.
Infelizmente, isso
ficou impedido, pois, chegou a Princesa um padre, descompromissado com a
história da cidade e, sem planejamento ou consulta popular, decidiu derrubar a
velha igreja para construir um novo templo. Isso, sob a alegação de que, o
prédio, estava prestes a desabar. Desculpa de amarelo; aquela edificação
poderia haver sido restaurada, recuperada. Mas não! Derrubou a quase centenária
igreja. Para isso, contou, frei Anastácio Palmeira (frade da Ordem Carmelita e
vigário da Paróquia, oriundo das terras alagoanas), com o apoio do prefeito,
Gonzaga Bento, e com a omissão, se não intencional, mas, deliberada dos do
grupo “Diniz”.
É sabido que, naqueles
idos da década de 1960, era ainda, a Igreja, quem mandava em tudo. O padre,
tinha mais importância e poder do que as autoridades constituídas. A vontade da
Santa Madre Igreja, através de seu vigário, tinha de ser respeitada, e era
incontestável. Mesmo que esse argumento possa anistiar o prefeito Gonzaga Bento
de alguma culpa de conivência com o crime cometido contra o patrimônio
histórico municipal, ou isentar os “Nominando”, de omissão, não justifica o
fato de que nenhuma das autoridades do município tenha sequer tentado demover o
padre desse criminoso intento.
Nominando Diniz, pelo
menos, ainda ofereceu um terreno (lá onde funcionava sua indústria de
processamento de algodão, o antigo “vapor”, onde hoje está localizado o chamado
“Bairro Maia”), para que, o vigário demolidor, construísse ali uma igreja nova
e deixasse o antigo templo de pé, para que fosse transformado em museu. Nada
convenceu ou demoveu o religioso em sua sanha destruidora. Nem o argumento de
que, naquele prédio histórico, vários eventos religiosos de grande
significância aconteceram e que foi ali, onde vários homens e mulheres ilustres
da nossa história, foram batizados e casados e onde muitas reuniões importantes
foram realizadas. Nada disso convenceu o religioso a preservar aquele
patrimônio.
Anastácio, sem
escrúpulo algum, desrespeitando a história de uma terra que não era dele,
mandou passar o trator por cima de tudo; derrubou a igreja sem se importar
sequer com o que existia no interior daquele templo. Não fora a população,
resgatar os móveis e demais objetos sacros, tudo teria sido destruído como o
foram as paredes e alguns altares trabalhados caprichosamente por mestres da
terra, como o “princesense” Antônio Belarmino Barbosa (1864-1936), mais conhecido
por “Mestre Belinho”. Não ficou pedra sobre pedra e, no local onde existia a
antiga igreja, o então prefeito, Gonzaga Bento, mandou construir uma praça para
homenagear seu sogro, o coronel José Pereira Lima. Na esteira dessa destruição,
o padre, varreu também, do centro da cidade, grande parte do casario antigo e
histórico da urbe princesense.
Da forma como não
respeitou altares e mobiliário, Anastácio poderia ter também destruído a
santaria da Igreja. Mas, não. Talvez por respeito ou, temendo incorrer em
pecado grave, o vigário resolveu distribuir, os Santos, pelas casas dos fiéis
católicos, daqueles mais abastados ou, dos mais beatos. O principal de todos os
Santos da Igreja era o “Senhor Morto” – uma escultura, em madeira, de Jesus
Cristo, morto – da lavra de “Mestre Belinho” -, deitado num caixão, também de
madeira, que ficava logo à entrada do templo. O padre designou essa imagem para
a casa de dona Cecília Pires. Passada somente uma semana, a mulher foi ao
convento e disse ao frei Anastácio: “Padre, eu respeito demais Nosso Senhor
Jesus Cristo, mas, que Deus me perdoe por caridade – e persignou-se –, eu não
vou querer uma assombração daquela na minha casa. Todos os dias, quando acordo,
tá lá, um homem morto na minha sala. Me perdoe, mas, pode mandar buscar o
Santo”. Frei Anastácio recolheu, o “Senhor Morto”, e o mandou para o Colégio
das freiras.
No dia seguinte, foi a
vez da solteirona Domitila Andrade. O vigário, havia mandado São Sebastião para
sua casa. No dia seguinte, a “Moça Velha”, chegou ao Convento com a imagem
debaixo do braço e disse: “Frei Anastácio, eu tive pensando: não é justo eu
ficar com esse Santo lá em casa”. “Por quê”, perguntou o padre. Domitila
continuou: “Eu passei 17 anos namorando Sebastião Medeiros e, ele, me trocou
por outra. Eu não vou aguentar mais um “sebastião” na minha vida. Taí o Santo,
mande ele pra outra freguesia..." Surpreso, o sacerdote ponderou: “Então,
leve São Benedito”. Domitila aceitou, e levou o Santo para casa.
No outro dia, lá vem a
solteirona de novo, acompanhada de um menino, com a imagem de São Benedito numa
carroça: “Frei Anastácio, esse Santo também não vai dar certo ficar lá em casa”.
“Por quê, dona Domitila?” Inquiriu o vigário. A moça, já demonstrando impaciência,
disse: “Ontem, eu passei o dia na luta em casa: lavei, engomei, cozinhei,
arrumei a casa e, enquanto eu morria de trabalhar, esse negro, num trono, a me
observar, e eu, não estou pariada a isso não. Acho um desaforo! Tome seu Santo”.
Rindo, frei Anastácio perguntou: “A senhora tem alguma coisa contra Nossa
Senhora das Dores?” A moça respondeu: “Não, tenho não”. “Então leve ela e, pelo
amor de Deus, não me cause mais problemas!” Encerrou o padre.
Outra imagem, a de São
Manoel da Paciência, foi designada para a casa de dona Maria Liberalquino,
outra solteirona. A “moça velha” era uma artesã muito habilidosa no fazimento
de flores artificiais. Quando da chegada do Santo em sua casa – uma imagem de
um homem de corpo bem delineado, coberto apenas por um pano curto que só lhe cobria
as vergonhas –, Maria preparou uma mesinha, bem forrada, pôs São Manoel em cima
e, nos pés da imagem, um jarro de flores, das que ela confeccionava. Feliz, foi
dormir.
No outro dia, ao
acordar, Maria Liberalquino, sentou-se numa cadeira de balanço, na sala de
estar de sua casa, e passou a observar, detalhadamente, a imagem recém-chegada.
De súbito, pôs-se de pé, pegou o Santo e partiu para a casa dos padres. Lá
chegando, não estando frei Anastácio, encontrou frei Cirilo, e foi logo
dizendo: “Frei Cirilo, entregue esse Santo a frei Anastácio”. “Mas, por quê,
dona Maria?” Perguntou o frade. “Não vai dar certo ele ficar lá em casa”,
disse, a florista. “Por quê, dona Maria, qual o problema?” Perguntou o frade.
“Padre, o senhor há de compreender: não dá certo, eu, uma moça direita,
conviver com um homem quase nu dentro da minha casa. Isso não pega bem. Fique
com seu Santo”.
À noite, quando frei
Anastácio chegou ao convento, deparou-se com São Manoel em cima de uma mesa, e
perguntou porque o Santo estava ali e não na casa para a qual havia sido
designado. Frei Cirilo explicou a situação e, o vigário, foi à casa de Maria
Liberalquino levando a imagem de São Tarcísio a tiracolo. Lá chegando, o padre
perguntou: “Dona Maria, a senhora aceita ficar com São Tarcísio, o padroeiro
dos coroinhas?” A mulher exultou: “Ah! São Tarcísio eu quero: o ‘Mártir da
Eucaristia...’”. São Manoel da Paciência, foi parar na casa do alfaiate e
professor de datilografia, Antônio Eugênio Besêrra, por sua própria escolha.
No bojo dessa
distribuição de Santos, o fato mais emblemático foi o que envolveu outra
solteirona. Dona Antônia Gastão, era uma “moça velha” da mais alta sociedade e era
também, cantora da Igreja e uma das comandantes da “Pia União das Filhas de
Maria”. Instada, pelo vigário para abrigar, em sua casa, a imagem de Santo
Antônio, de pronto, Antônia Gastão recusou-se em recebê-lo: “Não posso, nem
devo, frei Anastácio. Esse Santo foi muito ingrato comigo. Passei minha vida
toda implorando, em orações, para que ele arranjasse para mim um bom casamento
e, esse ingrato, nem um casamento ruim, ele me providenciou”. Tentando
convencê-la, o padre argumentou: “Mas, dona Antônia, é somente uma imagem...”
Antes que o sacerdote continuasse, a solteirona completou: “Mas, foi justamente
a imagem que me enganou quando amarrei-a de cabeça pra baixo, e nada! Quero ele
arranchado na minha casa não! Me dê Nossa Senhora da Conceição, essa sim, nunca
fez mal a ninguém!”
Os problemas se
acumulavam com as recusas em aceitar alguns Santos. No entanto, muitos outros
foram bem recebidos pelos fiéis católicos, a exemplo do arcanjo São Miguel, que
ficou na casa do professor Genésio Lima; de Nossa Senhora do Carmo, que
estabeleceu-se na casa da minha mãe, Osana Roberto; de São Jorge, que foi acolhido
por dona Ana de Zé de Quincas; de São Cristóvão, que foi parar na casa de
Gerson Patriota, e outros Santos e outras casas mais.
Dentre os Santos bem
acolhidos, teve São Luiz Gonzaga, que foi solicitado por dona Xandu, viúva do
coronel Zé Pereira. Esse, talvez, tenha sido o Santo mais bem cuidado de todos.
Afinal, além de ser o Santo da devoção de dona Xandu, tinha o nome de seu
genro, Gonzaga Bento. Luiz Gonzaga, o santo de verdade, bento pelo bispo e,
Gonzaga, o genro, que estava mais para santo do pau-oco, por várias vezes,
abençoado pelas urnas de Princesa, conviveram em perfeita harmonia.
Os demais Santos –
tanto os rejeitados como os que sobraram -, foram designados para o Colégio das
freiras ou – ironicamente - para o Instituto “Frei Anastácio”. Com a construção
do novo templo, essas imagens sacras retornaram, todas, para a Igreja, onde
ainda hoje lá estão, inclusive a de São Brás Bispo, o Santo protetor contra os
males da garganta, aquele que se apresenta com duas grandes velas cruzadas, a
quem, nós, quando jovens e frequentadores da Igreja, o chamávamos de “São X”.
Entre mortos, pretos, nus e ingratos – para o bem da história e da arte –, em
que pese os problemas havidos, todos os Santos escaparam da demolição.