Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
O Discurso do ateu
O muçulmano Hassan, a judia Judith, o pastor Levi, o padre
Amâncio e o ateu Paulo resolveram se afastar - durante os três dias de Carnaval
– de suas atividades religiosas e habitar um resort no litoral alagoano pertinho
de Maceió. Ali estariam reunidos, numa espécie de retiro para, num seminário
ecumênico, discutirem, profundamente, sobre as três principais religiões
monoteístas que dominam o mundo: Cristianismo, Islamismo e Judaísmo. Em
contraponto, convidaram um ateu que, no papel de “advogado do diabo”
contrabalançaria as discussões.
Hassan, um homem de 48 anos de idade, moreno, alto e de
cabelos e olhos negros, versado em profundidade sobre o Alcorão, principalmente
no que concerne à ética, à moral e demais preceitos do islamismo. Judith, uma
ruiva formosa, de baixa estatura, olhos azuis e seus 37 anos de idade,
especialista no tocante aos cinco primeiros livros do pentateuco: Gênesis,
Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. O pastor Levi, evangélico pentecostal,
um senhor negro de mais de 60 anos, gordo e de barba grisalha, vestido com
elegância e doutor em Evangelhos pela Baylor University do Texas, EUA. O padre
Amâncio, jesuíta, um homem branco de 51 anos de idade, vestido num terno sóbrio
complementado por um branquíssimo clergyman; um respeitado intelectual católico
especialista em Sagradas Escrituras pela Pontifícia Universidade Gregoriana de
Roma. Por fim, o ateu Paulo, um homem pardo de estatura média, cabelos e barba
compridos, com cerca de 40 anos, desalinhado no vestir, um livre pensador,
autodidata e convicto de suas não crenças.
Hospedados em quartos separados se encontrariam nas refeições
e na hora das reuniões, que aconteceriam três vezes ao dia. A principal delas
ocorreria à noite quando fariam um balanço das discussões diurnas. No primeiro
dia, de manhã, o encontro serviu para que, cada um, se apresentasse diante dos
colegas religiosos e do ateu. Todos brasileiros, informaram de onde vinham e
sobre suas atividades junto às suas respectivas comunidades, crenças e práticas
sociais relacionadas com os preceitos do que consideravam sagrado. Hassan, o
islamita, vinha do Rio Grande do Sul; Judith era oriunda do Paraná; o
pentecostalista Levi era da Bahia; o padre Amâncio de João Pessoa na Paraíba e
o ateu, Paulo, de Princesa.
Sobre o propósito desse encontro, o evangélico Levi, na
qualidade de decano do grupo, no primeiro dia, à tarde, tomou a palavra
inicial: “Aqui estamos para uma discussão civilizada sem digressão do assunto
principal que é a explicação para nós mesmos sobre a manifestação de Deus no
âmbito das três principais religiões monoteístas professadas no mundo”.
Interrompendo o pastor, Paulo, o ateu, atalhou: “Ou sobre a ausência dessa
manifestação!” Em face do que considerou um deboche, o padre Amâncio interveio,
enfático: “Tenho certeza de que, o negacionismo da Divindade reforça ainda mais
a certeza das três características de Deus: Onipotência, Onisciência e
Onipresença”. “Mas não podemos ter esses três pilares das religiões, Cristã,
Judaica e Islâmica como premissa essencial provadora da existência de um Ser superior
porque não são elas a essência, mas sim a consequência Dessa divindade e, se é
uma consequência Dela, portanto, por demais subjetivo”, observou o ateu. De
forma provocadora, o padre emendou citando uma quadra de Provérbios 15:3: “Os
olhos do Senhor estão em toda parte observando atentamente os maus e os bons”.
Vendo a discussão se polarizar entre os cristãos e o
agnóstico, Hassan, o islamita, entrou na briga: “A onipotência, onisciência e
onipresença de Alá estão intrínsecas na Sua essência divina. Essas
características exigem dos fiéis: oração diária, profissão de fé, esmolas,
jejum e peregrinação a Meca. No Islã, todos são iguais perante o Único e
Misericordioso”. O ateu questionou voraz: “Iguais? Sua religião é
preconceituosa e discriminatória. No seu credo, as mulheres são seres considerados
inferiores! Onde está a igualdade?” Hassan rebateu: “Não há nada desigual nesse
gênero! Na nossa religião são atribuídas mais responsabilidades aos homens do
que às mulheres e, por isso, eles têm a obrigação, o dever, de protegê-las”.
Calada até então, Judith, a judia, se manifestou: “Não estamos aqui para
avaliar costumes, mas sim para examinarmo-nos quanto à nossa capacidade de
explicar Deus no âmbito dos vários credos professados pela humanidade.
Em face da observação da judia, Paulo voltou à carga: “Como
se imiscues em analisar costumes? Jogas o lixo para debaixo do tapete? Não é, a
tua religião, o judaísmo, uma das mais preconceituosas e supersticiosas de
todas? Teu credo preceitua: Justiça e Ética, mas tem um Deus que deve ser
comprometido com um único povo: o judeu! No teu credo é proibido comer carne de
animais que tenham as patas fendidas e também frutos do mar; o porco é um
animal amaldiçoado; à mesa, não se pode misturar carnes com leite, isso não é
pura superstição? Judeus são obrigados a amar, temer e louvar ao Deus chamado
Javé - nome que, por respeito, vocês não podem pronunciar. Faço minhas as
palavras do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900): ‘Como posso
acreditar num Deus a quem tenho de louvar a cada instante?’ As religiões
monoteístas são todas iguais em seus princípios, práticas e superstições”.
Essa longa fala do ateu balançou as estruturas de todos os
líderes religiosos que participavam daquela mesa redonda. Ante a balbúrdia de
protestos, o decano Levi pôs ordem na reunião indicando que Judith tinha a
palavra para responder às assertivas de Paulo. A judia: “São tradições da
religião monoteísta mais antiga do mundo; são conceitos e costumes para
identificar os escolhidos que devem cumprir a missão de converter os ímpios.
Nós, judeus, temos uma missão no mundo que é a de louvar o Senhor em
intercessão pela conversão dos que não creem. Quanto ao louvor, o fazemos
porque o Poderoso criou todas as coisas e nós devemos louvá-Lo por isso”.
Encerrou Judith. Antes que alguém tomasse a palavra, o padre Amâncio declarou,
sobre o tema da Criação: “Deus criou o Céu e a Terra e, tudo o que existe, deve
estar serviço Dele. Nós estamos aqui de passagem, num estágio de
aperfeiçoamento em busca do merecimento da glória celestial. Aliás, Ele criou o
homem e a mulher à sua semelhança e, ambos, são iguais perante Sua divindade”.
Sorrindo, Paulo observou: “Padre, não sabes que, no Velho Testamento, a mulher
é considerada um ser nocivo? Em Eclesiastes 7:26-28, está escrito: ‘A mulher é
mais amarga que a morte’”. Padre Amâncio calou.
O ateu continuou: “Não posso concordar com o reverendo”.
Dizendo isso, Paulo pôs-se de pé e continuou: “Primeiro, quanto à teoria do
criacionismo, já sabem todos que isso é uma balela. Já em 1859, o cientista
britânico Charles Darwin (1809-1882) lançou o livro ‘A Origem das Espécies’
redefinindo para sempre a ciência moderna. Segundo, tenho dúvidas quanto à
onipotência desses deuses em que vocês acreditam. Lembremos que a
versatilidade, marca registrada dessa Divindade, vem fazendo com que Ela se
adapte, ao longo dos séculos, aos interesses e às vontades dos que A seguem;
senão vejamos: de conformidade com o Velho Testamento, o Deus judeu de
antigamente punia com força os que O desobedeciam, era Vingador! Em nome desse
mesmo Deus – já na forma de filho do Homem, Jesus Cristo -, a Igreja Católica,
através da “Santa Inquisição”, usando a forja, o torniquete, o pêndulo, e o
cavalete, torturou e matou os que não rezavam no seu catecismo, principalmente
judeus; prática também seguida pelos protestantes.” E continuou enfático: “Se
retornasse, o Filho do Homem, não passaria sequer nas calçadas, fossem das
suntuosas catedrais católicas; das pequenas igrejas de crentes de ponta de rua
ou até dos portentosos templos de Edir Macedo que mais parecem a Casa da Moeda.
Por que temos de ser tementes a esse Deus? Por que louvá-Lo, se ele é
onipotente e onisciente? Ele sabe de todas as nossas necessidades, lê os nossos
pensamentos e sabe das nossas intenções. Os Cruzados trucidaram judeus na
chamada Terra Santa. Todas essas práticas violentas, perpetradas em nome de
Deus, tinham o condão de confiscar os bens dos ‘infiéis’, o que construiu o
esplêndido patrimônio da igreja de Roma! Em tempos recentes, o Papa João Paulo
II, por ocasião do Jubileu do Segundo Milênio, pediu perdão pelos crimes das
Cruzadas e da Santa Inquisição e aproveitou para abolir o Purgatório e o
Inferno. Mais recentemente, o Papa Francisco abençoou as uniões homoafetivas, o
que era um verdadeiro tabu para o Vaticano. O que houve? O Todo Poderoso mudou,
reciclou-Se?”
Indignado, Levi, que até então posava de apaziguador, partiu
como um leão em defesa de sua fé, mas deslizou num ataque velado aos católicos:
“Deus não mudou, Ele é o mesmo de sempre. O pecado está naqueles que se prestam
a usar o nome do Criador para manter suas tradições e suas pompas”. Sem pedir a
palavra, o padre interrompeu o pastor e disparou: “Falas da pompa da Igreja,
mas te esqueces da prosperidade dos pastores, bispos, apóstolos e missionários
de tua Igreja. A fortuna de Edir Macedo, que orça em torno de R$ 1,9 bilhão; a
de Valdemiro Santiago que beira os R$ 500 milhões; a de Silas Malafaia que
passa de R$ 300 milhões, o que me dizes disso? Não sabes que tudo isso vem
sendo construído com a extorsão dos pobres coitados que são vítimas da
‘sacolinha’, dos envelopes, dos boletos e, agora, do pix?” O tempo fechou ao
ponto de Hassan, o muçulmano tomar a palavra e pedir a todos que se contivessem
nas acusações, dizendo: “Não é este o local apropriado para a lavação de roupa
suja! Violência verbal não leva a nada, contenham-se!” Em face dessa intervenção
do islamita, Paulo retornou à carga: “Violência? Aqui não há violência alguma.
Tudo isso é fruto das provocações feitas por vocês mesmos quando estão retirando
o lixo de debaixo do tapete!”
Irritado com essa observação, Hassan respondeu: “Na verdade,
Paulo, é você o pomo de toda essa discórdia! Você desvirtuou o nosso encontro
que se propunha discutir a fé em suas diversas nuances numa tentativa de
convergir para o consenso em prol de uma união de forças que pudesse nos
permitir uma convivência pacífica em nome Daquele que é o Provedor de tudo. Com
suas intervenções provocativas você, não somente desvirtuou como implantou a
discórdia, portanto, eu recomendo: cale-se!” “Não posso me calar diante das
evidentes idiossincrasias desse grupo de religiosos que se arvoram de donos da
verdade espiritual de dois terços da humanidade”, respondeu o ateu. E
continuou: “Ademais, falando em violência, é o teu credo o que mais persegue e
mata em nome do teu Deus a quem chamam de Alá. Quem não lembra do Talibã e da
destruição das torres gêmeas do World Trade Center? Quem não sabe da sentença
de morte exarada contra o escritor Salman Rushdie? E pior, os fiéis muçulmanos
que matam e aterrorizam em nome de Alá, recebem como prêmio, cada um, 7 virgens
para desfrutar na morada celeste! São todos iguais, o que reina é a hipocrisia!”
Ao descambar para barulhento tumulto, a reunião perdeu o rumo
se transformando numa verdadeira “Torre de Babel” quando ninguém se entendia,
todos se acusavam mutuamente e nada convergia para um consenso. Em meio à
confusão, como que para tocar mais fogo na fogueira, o ateu olhou para o padre
e o pastor, apontou para um crucifixo que estava dependurado numa das paredes
da sala e proferiu: “Tudo isso acontece porque vocês sempre O mantiveram
pregado numa cruz. Soltem-No! Se assim o fizerem Ele voltará com o chicote que
usou para expulsar os vendilhões do templo de Jerusalém”. Olhando para Judith,
disparou: “Quanto aos judeus, resta-lhes cumprir o que mandam as tábuas da lei
mosaica e o que está contido na Torá”. Virando-se para Hassan, Paulo continuou:
“Aos muçulmanos, professos da religião mais retrógrada e mais violenta do
mundo, resta-lhes esquecer o terror e cultivar o amor contido no Alcorão
escrito por Maomé”. Já a nós, pobres ateus, resta conformarmo-nos com o nosso
isolamento, mas confortados porque desobrigados da prática da hipocrisia. Em
face dessas lições proferidas pelo ateu, deram-se todos por insatisfeitos e a
reunião, que duraria três dias – como um aborto – acabou-se no primeiro dia. O
eloquente discurso do ateu calou fundo na alma dos crentes.