A foto de Juliano Matuto, prefeito de São José, pilotando uma retroescavadeira, me comoveu. Bem sei dos truques midiáticos de alguns prefeitos e governadores que vão a estúdios sofisticados e constroem suas imagens cheias de hormônios e testosterona. Como crianças manuseando um joystick, eles manobram máquinas enormes, acionam turbinas e detonam pedreiras colossais, mas tudo não passa de pirotecnia para impressionar seu eleitorado.
Mas no condado de São José não tem disso não, o prefeito acorda cedo, economiza de cara um operador para a máquina, aspira o cheiro de óleo diesel e ruma ao canteiro de obras. Em São José a vida é real e de punhos fechados, todo mundo trabalha, seja do partido do prefeito, seja da oposição. E o prefeito é de todo mundo, queira ou não queira os opositores, assim reza a cartilha da boa e republicana cidadania.
Ele tem a investidura e a conseguiu através do voto e fim de papo. Agora ele é o prefeito, tem o poder da caneta e dos milhares de cavalos de força da máquina que pilota. E pode fazer o que bem desejar, dentro dos limites da lei, inclusive abaixar seu próprio salário e aumentar a carga horária de trabalho, como fez recentemente. Parabéns, senhor prefeito.
A última vez que estive em São José, pude ver e sentir sua beleza paisagística, a fleuma dos habitantes, a tranquilidade das ruas, um carro vai devagar, devagar a vida anda, mas não é uma vida besta, como diz o poeta Drummond. Desde os limites com Princesa, seu município-mãe, até o desfiladeiro do Sozinho, acima dos Patos de Irerê, e de lá até o quilombo do Livramento, o sobe e desce do relevo, eis toda a geografia do meu sonho, do meu sonho recorrente, e quando acordo dou um nó no travesseiro para ele não ir embora.
O riacho parece um risco, garatuja de menino no caderno aluvionário das vazantes. Ele serpenteia sobre as planícies de capim gordura salpicadas de nelores, cuja beleza cresce a cada dia em nossas vistas, tanto quanto nossos níveis de colesterol. Gosto de churrasco, mas apandemia me manteve afastado de minha casa da serra, bem na divisa — a sala pertence a São Josée a cozinha é pernambucana, município de Triunfo — mas pouco importa ogeoposicionamento se a alma é universal.
A ponte sobre o riacho do mesmo nome, os telhados do casario e o céu meio fosco nas horas semimortas de fim de tarde, são os detalhes de um quadro de Van Gogh ou de Antônio Maximiano Roberto, tendo ao fundo o paredão poente que tapa o céu, lombo de um gigantesco paquiderme antediluviano. E pensar que aquela serra não está ali para assustar crianças, tampouco para conter as encostas de Manaíra. É o cenário que há milhões de anos a natureza conserva para hoje servir de pano de fundo para a selfie inesquecível, a fotografia do pôr-do-sol mais perfeita do mundo.
ZÉ E O ESQUELETO
Zé de Cabrinha, da bodega, disse que Jesus passou em São José e cavou as areias do riacho para beber água e achou um esqueleto. Mentira de Zé de Cabrinha e de Jesus, informou Pacífico de Zé de Fausto, em pleno dia, sentado no banco dapraça e na companhia de um burrinho de cachaçae um copo. O meu amigo de infância achou um jeito econômico de driblar a inflação e suportar a angústia de tanta corrupção no Ministério da Saúde. Diz ele que seu irmão Rudival, agente comunitário de saúde, praticante e juramentado,não está gostando de nada disso.
Depois disso, fui complementar a feira semanal no mercadinho de Jeová, e dou meutestemunho de que fiz um bom negócio, achei os produtos que eu desejava e de promoção ganhei a visão soberba da casa de Quinzim Bezerra, na outra esquina, de arquitetura pré-colonial e totalmente preservada, que a prefeitura transformou em Museu, hoje aberto à visitação pública.
RENA BEZERRA
A casa do museu me arrasta para outro exemplar de soberba e curiosa arquitetura, a morada senhorial do poeta Rena Bezerra, da mesma época e igualmente conservada. Toda em tijolo aparente, autêntica casa de fazendeiro, sede da propriedade e fortaleza (vide as seteiras através das quais se colocava o cano do fuzil ou do bacamarte por ocasião de algum ataque externo). Pouso e refúgio de pioneiro, gente da estirpe daqueles da Casa da Torre da Bahia e que grassaram os sertões subindo pelo rio São Francisco, depois através do leito do Pajeú, até darem com os costados por essas bandas.
Outro dia parei diante da bela casa e o passado me deu um soco no estômago. Dona Rita, nonagenária, sentada em sua cadeira de matriarca, magra e elegante como sempre, relembrou os tempos de estudante da escola normal e da amizade que tinha com minha mãe, também professora. De Rena, seu filho, escutei uns poemas de sua própria lavra, cordel rico e palatável, na cadência do coração e em pura língua de Camões e João Paraibano.
O terreiro ficou pequeno para o nosso sarau vespertino. Aí entraram no rolo Augusto dos Anjos, Manoel Bandeira, Ronaldo Cunha Lima,Zé Limeira, Ariano, a Besta Esfolienta e a Pavoa Devoradora. O chão empenou, choveu canivete, corisco e meteoro, mas ninguém arredou dali. Ouvi a narrativa de sua rehab, em Campina Grande, notícias das irmãs Erotildes e Eronildes, e a saudade eterna do pai Edilson, hoje em outra dimensão. Com seu cajado patriarcal, ele apascenta ovelhas telepáticas e tange gados siderais, enquanto o seu trator eterno gradeia e araterras nos campos do Senhor.
Texto de Aldo Lopes de Araújo
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