ODE

quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Crônicas sobre a velha Princesa de antanho

O Caixão da Caridade

Nos idos das décadas de 1960/70, Princesa era um atraso só. Tudo aqui era original, difícil e artesanal. A energia de Paulo Afonso e a água encanada do açude Jatobá II, só chegaram no final dos anos 60. Garrafa automática, geladeira, fogão a gás e televisão eram um luxo somente permissível aos chamados ricos. Até para morrer, carecíamos do artesanato, da arte do fazer. Naquela época, os caixões de defunto, as urnas que nos envelopavam com destino à eternidade, eram fabricadas pelas mãos de “seu” Tião do Ó, marceneiro especial que fazia os ataúdes conforme o gosto da família do cliente ou, por tradição, obedecendo a determinações religiosas.

Naquele tempo, os caixões de defunto tinham cores variadas, de conformidade com a condição de cada morto: as crianças, também chamadas de “anjos”, eram enterradas em urnas revestidas de tecido branco; as donzelas (tivessem que idade fosse), eram acondicionadas em caixões com cobertura na cor azul e, os demais falecidos, em ataúdes recobertos com tecido preto. Os ornamentos das urnas funerárias eram aplicados de acordo com o gosto e as possibilidades financeiras dos donos do defunto. Tião do Ó era o único fabricante de caixões em Princesa. Não havia estoque, eram fabricados por encomenda logo após o derradeiro suspiro do falecido e, no mais das vezes o marceneiro fúnebre varava as noites em seu ofício macabro.

Famílias que não tinham condições financeiras de comprar um ataúde, conduziam seus mortos numa rede e os enterravam no chão limpo. Vendo isso, alguns ricaços, apiedados com essa humilhante condição, instituíram a criação do “Caixão da Caridade”. O coronel Zé Pereira – no que foi acompanhado por “seu” Mano -, foi um dos precursores desse ato de caridade quando mandou confeccionar um caixão, em tamanho padrão, para servir àqueles desvalidos do privilégio de um sepultamento digno. Seguindo esse exemplo, alguns cidadãos abonados - a exemplo do meu pai, major Nequinho -, determinaram às futuras viúvas que, quando morressem, fossem sepultados envoltos em lençóis e que, seus caixões, fossem doados para servir aos pobres.

Assim ficou definitivamente instituído o famoso “Caixão da Caridade”. Para acondicionar essas urnas e outros apetrechos, o vigário da paróquia mandou construir um “quartinho” nos aceiros do Cemitério. A partir daí várias lendas tenebrosas começaram a surgir em torno desse instrumento de morte. A mais conhecida, tem como protagonista um maluco chamado “Mané Pitita”. Doido e tomador de pinga, Pitita era filho de “Benedita Pratudo” – uma velha que vendia areia que servia como “Bombril” para as donas de casa -, e vivia, durante o dia, a perambular pelas ruas de Princesa, sempre a repetir, falando sozinho: “quem tem mãe tem tudo, quem não tem, não tem nada”.

Mané Pitita, que gostava de tocar um velho fole de oito baixos, adotou a prática de dormir no Cemitério e, para tanto, usava os tais “Caixões da Caridade” como leito para seu sono. Todas as noites, logo cedo, se dirigia à cidade dos mortos e se recolhia ao seu descanso (sem ser o eterno), para seu sono reparador naquele ambiente fúnebre. Certa madrugada, véspera do Dia de Finados, algumas freiras da irmandade Carmelita acordaram cedo para providenciar a ornamentação do altar onde seria celebrada a Missa de Finados no Cemitério de Princesa, e lá chegaram mesmo na hora em que Mané Pitita se acordava. Quando viram abrir-se a tampa de um dos caixões e dele emergir um homem todo assanhado e esfregando os olhos, saíram dali em desabalada carreira gritando por socorro com medo da alma penada.



 

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