ODE

quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Crônicas da Princesa de antanho

O Dia da Derrama

Era o comecinho da década de 1970. Estudávamos no Ginásio Nossa Senhora do Bom Conselho; ali cursávamos a segunda fase do ensino fundamental a que chamavam, naquele tempo, de curso ginasial. A Escola – fundada em 1949 pelo então deputado estadual, Antônio Nominando Diniz - era semi-pública e a única em Princesa que recebia rapazes e moças. Seus professores eram pagos pelo governo do Estado, mas nós, alunos, contribuíamos com uma pequena mensalidade que bancava os demais custos para a manutenção do estabelecimento. Era diretor, o senhor Genésio Florentino Lima e ali estudavam ricos, pobres e remediados. A cobrança da mensalidade era feita, invariavelmente, todo final de mês.

Para tanto, o diretor comparecia, sempre acompanhado de sua inseparável esposa, dona Inês Diniz, para o recebimento do dinheiro em espécie. A mensalidade não era avultada, mesmo assim, proibitiva para alguns dos alunos filhos de pais detentores de poucas posses, o que era o caso meu e de meu irmão. Digamos que, a preço de hoje, fosse algo em torno de R$ 50, mas para quem era pobre, isso significava muito dinheiro.

Genésio Lima, metódico que era, obedecia a uma rotina imutável: chegava à escola, percorria as classes, uma por uma, fazia o chamamento nominal de cada aluno e arrecadava o dinheiro quando cada um ia ao birô e entregava a quantia estipulada. No mais das vezes, ao ser chamado, eu dizia, quase num murmúrio: “a minha, mãe acerta com dona Maria Aurora”. Genésio fazia cara feia, mas aguentava. Minha mãe era “boca-preta” roxa, funcionária do Hospital “São Vicente” e amicíssima de dona Maria Aurora (cunhada de Genésio). Os ricos, pagavam e ainda recebiam troco. Os remediados, juntavam uns couros de rato, mas pagavam e, os mais pobres, às vezes, deixavam fiado.

Certo mês, o dia da arrecadação da mensalidade coincidiu com uma aula de História do Brasil, ministrada pela professora Eli Correia, que versou sobre a Conjuração Mineira - aquela parte da nossa História que trata do movimento separatista promovido em Minas Gerais, a que chamamos de Inconfidência Mineira, que culminou com o enforcamento de Tiradentes. Na aula, dona Eli explicava que a conspiração se dera pela insatisfação dos mineiros quanto à extorsiva cobrança de impostos sobre os minérios extraídos das jazidas daquela província, e que, de forma pejorativa os mineiros se referiam ao dia da cobrança como o “Dia da Derrama”.

Nesse mesmo dia, “seu” Genésio e dona Inês compareceram para cumprir seu mister arrecadatório. A nossa classe era a primeira de quem entra pelo corredor dos combogós; e o diretor costumava começar a cobrança pela última sala - que ficava no final do corredor – voltando até a primeira. Sabedor da presença de “seu” Genésio, na escola, para a cobrança das mensalidades, João de Carlota, vindo das bandas da diretoria, informou em tom de brincadeira: “hoje é o dia da derrama!”. Estávamos todos sentados no banco inteiriço que existia em frentes às salas de aula.

Ouvindo de João, essa graça, imediatamente, veio-me à cabeça, pregar uma peça no diretor. Combinei com alguns colegas – aqueles mais rebeldes e corajosos – para que, quando “seu” Genésio passasse, déssemos uma vaia nele. Dei a senha: eu faria “Ú”, e os demais me acompanhariam. Assim foi feito e quando o diretor passou, ao lado de sua esposa, desfechamos sonora e ensurdecedora vaia. Impassível, o casal seguiu caminho sem sequer olhar para trás. Continuamos na nossa algazarra de jovens como se nada tivéssemos feito de errado. De repente, lá vinha “seu” Genésio em direção à nossa classe. Entramos todos e, em silêncio sepulcral, aguardamos a rebordosa.

O casal adentrou à sala, chegou ao birô dos professores e o diretor foi logo dizendo:

- De quem foi a iniciativa da vaia que há pouco destinaram a mim e a Inês? – Diante do silêncio total, o diretor repetiu:

- Quem iniciou a vaia? – Nada.

- Pois bem, – Disse “seu” Genésio – se não querem se acusar nem indicar o culpado, suspenderei toda a classe por trinta dias.

De repente, Maria Helena de Nira, levantou-se de sua carteira, dirigiu-se ao birô e disse:

- Bênção padrinho Genésio, bênção madrinha Inês – abençoada pelos dois, que ficaram com ar de interrogação, Maria Helena disparou:

- A ideia da vaia foi dele! – Disse isso apontando para mim.

Imediatamente, Beta e Edileusa de Chico Antas se puseram de pé e disseram, cada uma de uma vez:

- Fui eu! Fui eu!

Acompanharam-nas nessa corajosa assertiva: João Aurélio, Pacú Teodósio, João de Carlota, Aldo Lopes e mais alguns que não lembro.

Diante disso, o diretor Genésio invectivou:

- Moleques, estão todos suspensos por oito dias!

Depois da sentença, porém, não satisfeito com a punição, o diretor fez questão de prelecionar sobre cada um dos seus algozes preferidos. Começou por mim, dizendo: “Muito bonito pra sua cara; sua mãe, coitada, trabalhando diuturnamente no hospital para lhe sustentar, pagando as mensalidades em atraso e você agradece desse jeito?”. Virou-se para João Aurélio e disse: “Seu pai, um homem de bem, vendendo seus picolés para lhe dar educação e é assim que você retribui?”. Quanto a João de Carlota, disparou: “E você! Tão grande e não tem pena de sua mãe, de porta-em-porta, vendendo Avon para custear seus estudos e você fazendo molecagem?”. Por fim, virou-se para Aldo Lopes: “A professora Mãezinha, subindo e descendo serras, dando aulas lá em Manaíra com o intuito de lhe educar e você acompanhando esses malfeitos!”. Estão todos suspensos!

Estranhamente, a raiva do diretor abateu-se apenas sobre os pobres coitados, pois, Pacú de Antônio Teodósio – representante do Fumo Dubom, portanto, rico comerciante – e Beta e Edileusa, filhas do comerciante Chico Antas, ex-prefeito de Manaíra e dono da padaria mais chique da cidade, não tiveram punição alguma. O único lucro que tivemos foi que, nesse dia, não pagamos a mensalidade. A régua de Genésio Lima media corretamente. Na verdade, a punição não foi somente pela vaia – que foi a gota d’água -, mas também pelo acumulado das muitas estripulias que éramos acostumados a promover na Escola. Nesse dia, a inconfidência da colega derramou sobre nós o ódio do diretor. Mesmo sem pagarmos a mensalidade, ainda assim, foi o Dia da Derrama.




 

Um comentário:

  1. O maior bagunceiro do ginásio era Dominguinhos. Estava sempre na linha de frente de todas as indisciplinas, liderava os motins e tinha um formidável poder de convencimento

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