O Dia da Derrama
Era o comecinho da década de 1970. Estudávamos no Ginásio
Nossa Senhora do Bom Conselho; ali cursávamos a segunda fase do ensino
fundamental a que chamavam, naquele tempo, de curso ginasial. A Escola –
fundada em 1949 pelo então deputado estadual, Antônio Nominando Diniz - era
semi-pública e a única em Princesa que recebia rapazes e moças. Seus
professores eram pagos pelo governo do Estado, mas nós, alunos, contribuíamos
com uma pequena mensalidade que bancava os demais custos para a manutenção do
estabelecimento. Era diretor, o senhor Genésio Florentino Lima e ali estudavam
ricos, pobres e remediados. A cobrança da mensalidade era feita,
invariavelmente, todo final de mês.
Para tanto, o diretor comparecia, sempre acompanhado de sua
inseparável esposa, dona Inês Diniz, para o recebimento do dinheiro em espécie.
A mensalidade não era avultada, mesmo assim, proibitiva para alguns dos alunos
filhos de pais detentores de poucas posses, o que era o caso meu e de meu
irmão. Digamos que, a preço de hoje, fosse algo em torno de R$ 50, mas para
quem era pobre, isso significava muito dinheiro.
Genésio Lima, metódico que era, obedecia a uma rotina
imutável: chegava à escola, percorria as classes, uma por uma, fazia o
chamamento nominal de cada aluno e arrecadava o dinheiro quando cada um ia ao
birô e entregava a quantia estipulada. No mais das vezes, ao ser chamado, eu
dizia, quase num murmúrio: “a minha, mãe acerta com dona Maria Aurora”. Genésio
fazia cara feia, mas aguentava. Minha mãe era “boca-preta” roxa, funcionária do
Hospital “São Vicente” e amicíssima de dona Maria Aurora (cunhada de Genésio).
Os ricos, pagavam e ainda recebiam troco. Os remediados, juntavam uns couros de
rato, mas pagavam e, os mais pobres, às vezes, deixavam fiado.
Certo mês, o dia da arrecadação da mensalidade coincidiu com
uma aula de História do Brasil, ministrada pela professora Eli Correia, que
versou sobre a Conjuração Mineira - aquela parte da nossa História que trata do
movimento separatista promovido em Minas Gerais, a que chamamos de
Inconfidência Mineira, que culminou com o enforcamento de Tiradentes. Na aula,
dona Eli explicava que a conspiração se dera pela insatisfação dos mineiros
quanto à extorsiva cobrança de impostos sobre os minérios extraídos das jazidas
daquela província, e que, de forma pejorativa os mineiros se referiam ao dia da
cobrança como o “Dia da Derrama”.
Nesse mesmo dia, “seu” Genésio e dona Inês compareceram para
cumprir seu mister arrecadatório. A nossa classe era a primeira de quem entra
pelo corredor dos combogós; e o diretor costumava começar a cobrança pela
última sala - que ficava no final do corredor – voltando até a primeira. Sabedor
da presença de “seu” Genésio, na escola, para a cobrança das mensalidades, João
de Carlota, vindo das bandas da diretoria, informou em tom de brincadeira:
“hoje é o dia da derrama!”. Estávamos todos sentados no banco inteiriço que
existia em frentes às salas de aula.
Ouvindo de João, essa graça, imediatamente, veio-me à cabeça,
pregar uma peça no diretor. Combinei com alguns colegas – aqueles mais rebeldes
e corajosos – para que, quando “seu” Genésio passasse, déssemos uma vaia nele.
Dei a senha: eu faria “Ú”, e os demais me acompanhariam. Assim foi feito e
quando o diretor passou, ao lado de sua esposa, desfechamos sonora e
ensurdecedora vaia. Impassível, o casal seguiu caminho sem sequer olhar para
trás. Continuamos na nossa algazarra de jovens como se nada tivéssemos feito de
errado. De repente, lá vinha “seu” Genésio em direção à nossa classe. Entramos
todos e, em silêncio sepulcral, aguardamos a rebordosa.
O casal adentrou à sala, chegou ao birô dos professores e o
diretor foi logo dizendo:
- De quem foi a iniciativa da vaia que há pouco destinaram a
mim e a Inês? – Diante do silêncio total, o diretor repetiu:
- Quem iniciou a vaia? – Nada.
- Pois bem, – Disse “seu” Genésio – se não querem se acusar nem
indicar o culpado, suspenderei toda a classe por trinta dias.
De repente, Maria Helena de Nira, levantou-se de sua
carteira, dirigiu-se ao birô e disse:
- Bênção padrinho Genésio, bênção madrinha Inês – abençoada
pelos dois, que ficaram com ar de interrogação, Maria Helena disparou:
- A ideia da vaia foi dele! – Disse isso apontando para mim.
Imediatamente, Beta e Edileusa de Chico Antas se puseram de
pé e disseram, cada uma de uma vez:
- Fui eu! Fui eu!
Acompanharam-nas nessa corajosa assertiva: João Aurélio, Pacú
Teodósio, João de Carlota, Aldo Lopes e mais alguns que não lembro.
Diante disso, o diretor Genésio invectivou:
- Moleques, estão todos suspensos por oito dias!
Depois da sentença, porém, não satisfeito com a punição, o
diretor fez questão de prelecionar sobre cada um dos seus algozes preferidos.
Começou por mim, dizendo: “Muito bonito pra sua cara; sua mãe, coitada,
trabalhando diuturnamente no hospital para lhe sustentar, pagando as
mensalidades em atraso e você agradece desse jeito?”. Virou-se para João
Aurélio e disse: “Seu pai, um homem de bem, vendendo seus picolés para lhe dar
educação e é assim que você retribui?”. Quanto a João de Carlota, disparou: “E
você! Tão grande e não tem pena de sua mãe, de porta-em-porta, vendendo Avon
para custear seus estudos e você fazendo molecagem?”. Por fim, virou-se para
Aldo Lopes: “A professora Mãezinha, subindo e descendo serras, dando aulas lá
em Manaíra com o intuito de lhe educar e você acompanhando esses malfeitos!”.
Estão todos suspensos!
Estranhamente, a raiva do diretor abateu-se apenas sobre os
pobres coitados, pois, Pacú de Antônio Teodósio – representante do Fumo Dubom,
portanto, rico comerciante – e Beta e Edileusa, filhas do comerciante Chico
Antas, ex-prefeito de Manaíra e dono da padaria mais chique da cidade, não tiveram
punição alguma. O único lucro que tivemos foi que, nesse dia, não pagamos a
mensalidade. A régua de Genésio Lima media corretamente. Na verdade, a punição
não foi somente pela vaia – que foi a gota d’água -, mas também pelo acumulado
das muitas estripulias que éramos acostumados a promover na Escola. Nesse dia,
a inconfidência da colega derramou sobre nós o ódio do diretor. Mesmo sem
pagarmos a mensalidade, ainda assim, foi o Dia da Derrama.
O maior bagunceiro do ginásio era Dominguinhos. Estava sempre na linha de frente de todas as indisciplinas, liderava os motins e tinha um formidável poder de convencimento
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