Meninos, eu vi... e
agora posso contar
DRAULT ERNANNY
O livro em tela, de autoria do paraibano Drault Ernanny de
Mello e Silva, contém 329 páginas e foi lançado pela Editora RECORD em 1988, no
Rio de Janeiro. É um livro de memórias de um paraibano ilustre que, pobre,
partiu daqui para o Rio de Janeiro, então Capital Federal e lá, fez fortuna e
transformou-se numa referência da mais alta roda, na “Cidade Maravilhosa”. Dono
da famosa “Casa de Pedras” – uma construção inspirada na mansão de Scarlett
O’Hara do filme “...E o Vento Levou”, situada na Gávea Pequena, região nobre do
Rio de Janeiro. Naquela antológica casa, Drault Ernanny recebia as mais altas
autoridades do Brasil e também personalidades internacionais.
Drault Ernanny relata quase tudo de sua longa existência e,
nessa obra, como não poderia deixar de ser, no capítulo V – Façanha dos
Companheiros, o autor dedica algumas páginas a fatos ocorridos, em 1930,
relacionados a Princesa. Na página 124, Ernanny relata sobre o rompimento do
coronel José Pereira Lima com o presidente da Paraíba, João Pessoa. De sua
lavra:
Na cidade de Princesa, o coronel José
Pereira arregimentou forças, mobilizou a população e outros companheiros de
luta e criou o Estado Livre de Princesa (sic),
um bravo núcleo separatista de sertanejos rebelados contra o autoritarismo do
poder central representado por João Pessoa. O Brasil daquele tempo, sem
estradas, sem meios de comunicação, sem transportes rápidos, permitia que
núcleos mais afoitos, como esse, de José Pereira, se encastelassem numa cidade
do interior, por algum tempo, e declarassem sua independência por motivos
políticos. Essa espécie de Canudos de Princesa durou pouco, mas deu trabalho ao
governo.
No livro, Ernanny, além de discorrer sobre o episódio da
Guerra de Princesa, trata também de suas causas e de suas consequências. Dá uma
ênfase especial ao assassinato do presidente João Pessoa pelo advogado, João
Duarte Dantas, e também sobre o calvário do ex-presidente da Paraíba, João
Suassuna, quando relata sua morte por assassinato no Rio de Janeiro e
transcreve, na íntegra, a carta que este enviou à sua esposa, dona Ritinha, na
Paraíba, prevendo sua própria morte. Na página 128 relata sobre a ocupação de
Princesa pela polícia paraibana quando da vitória da Revolução de 1930.
Mais adiante, na página 132, o autor fala sobre o coronel
José Pereira, quando de suas estadas no Rio de Janeiro após ser anistiado em
1936. Num relato interessante, que vale a pena reproduzir aqui, uma vez se
tratar de uma história engraçada e pouco conhecida sobre o caudilho
princesense, escreve Drault Ernanny:
Devo dizer que conheci Zé Pereira e
tornei-me, mais tarde, seu amigo. Passada a borrasca, ele já vinha ao Rio e
frequentava minha casa. Tenho até seu autógrafo no livro de visitantes da Casa
de Pedras. Fui amigo dele e de seu afilhado, o querido e saudoso Alcides
Carneiro, que chegou a ser ministro do Superior Tribunal Militar. Sou, até
hoje, amigo do filho de Zé Pereira, Aloísio Pereira, hoje deputado estadual.
Aqui no Rio, convidei, inúmeras vezes, amigos, banqueiros, industriais e
políticos para almoçar comigo no Bife de Ouro, na pérgula do Copa, levando
comigo, incógnito, o famoso Zé Pereira – e seu grande advogado, prof. Nehemias
Gueiros. Propositadamente, no meio da conversa, eu puxava o tema da famosa luta
travada na Paraíba, em Princesa. Por esse tempo, já estávamos em pleno regime
getuliano, e quase todos esses amigos eram ligados à situação. Consideravam Zé
Pereira um terrível cangaceiro, um bandido que levantou seu município, e parte
da Paraíba, contra o Governo do Estado. Eu discordava, afiançando que Zé
Pereira não fora nada daquilo, mas, ao contrário, um chefe político prestigioso
em sua região, uma figura carismática. De fato, o líder de Princesa era homem
educado, ex-aluno da Faculdade de Direito do Recife (cujo curso seguiu até o
terceiro ano), deputado estadual várias vezes e um causeur interessantíssimo, cheio daquela verve sertaneja tão
apreciada pelos cariocas de bom gosto.
É claro que ninguém acreditava no que
eu dizia, mas sempre ganhei a parada de modo definitivo. Zé Pereira, na mesa
conosco, ainda não identificado, já conquistava toda a turma com suas histórias
pitorescas e seu charme. E eu dava, então, o xeque-mate:
- Eis aí o homem com quem vocês estão
conversando. É o próprio Zé Pereira!
O sucesso era total. Fiz essa
brincadeira muitas vezes, para alegria de tantos dos meus amigos e de Zé
Pereira, que se divertia muito com esse jogo. Tinha um grande senso de humor e,
comentando a revolta de Princesa, costumava dizer:
- Vocês dão valor exagerado ao que
houve. Aquilo lá foi só uma má-criação do meu pessoal...
Nessa “má-criação” morreu muita gente
boa, mas Zé Pereira lamentava o desperdício de vidas e a comoção política em
seu Estado. Nunca se conformou com o assassinato de João Pessoa, pois, apesar
de adversário, em determinada época, tinha sido seu grande amigo.
Esse interessante relato dá conta da importância do coronel
Zé Pereira no meio intelectual, político e social da época, principalmente na
então Capital Federal, o Rio de Janeiro, o que, por extensão, denota a
importância da Guerra de Princesa no contexto da historiografia nacional. No
livro, completando sua iconografia, Drault Ernanny reproduz a foto do
“Estado-Maior” do Território Livre de Princesa em 1930, num registro que
considera necessário por retratar fato relevante da nossa história. Esse
trabalho memorialista é leitura necessária para o entendimento de quase um
século da história do Brasil, da Paraíba e de Princesa, sob o olhar de quem
viveu tudo de forma presente e intensa.
Drault Ernanny nasceu em 5 de julho de 1905, no minúsculo
povoado de São José dos Cordeiros (hoje município paraibano), era filho de João
Olyntho de Mello e Silva e de dona Francisca Olinto de Hollanda. Teve 23
irmãos. Deixou sua terra ainda menino, estudou no Recife e na Bahia, formou-se
em Medicina no Rio de Janeiro, foi mata-mosquito, fiscal do leite, dietista,
dono de curtume, banqueiro, senador, deputado federal, ajudou a elaborar a lei
que criou a Petrobras e construiu a Refinaria de Manguinhos. Amigo íntimo do
presidente Juscelino Kubitschek e do papa das comunicações, o também paraibano,
Assis Chateaubriand. Influente, monopolizou a vida social do Rio de Janeiro
entre os anos 40 e 60. Amante das artes, ajudou a formar o acervo do Museu de
Artes de São Paulo, do Museu da Paraíba e de tantas outras casas de cultura. Faleceu
no Rio de Janeiro aos 96 anos de idade, em 20 de março de 2002.
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