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quinta-feira, 27 de julho de 2023

Padre Cícero reabilitado


No último dia 20 deste mês de julho, completaram-se 89 anos da morte do padre Cícero Romão Batista. Esse número [89] é bastante emblemático na vida desse místico religioso pois foi em 1889 que aquele sacerdote cearense teve sua vida virada de ponta-cabeça. Nascido no Crato/CE em 24 de março de 1844 e ordenado padre em 1870, em Fortaleza/CE, voltou a sua terra natal, quando foi designado capelão da Igreja de Nossa Senhora das Dores, no então povoado de Juazeiro, pertencente à freguesia do Crato. Ali, Cícero se tornou um verdadeiro cura d’Almas. Era um padre que valorizava as pregações, visitava as casas de seus fiéis, dava conselhos e ensinamentos para o enfrentamento das secas, praticava caridade, enfim, um verdadeiro pastor.

Mesmo cuidando das coisas da religião, o padre Cícero exercia também ingerência na política local o que o fez, mais tarde, galgar os postos de prefeito do Juazeiro, deputado estadual e vice-governador do estado do Ceará. À época de Cícero, havia somente uma diocese no Ceará, sediada em Fortaleza, comandada pelo bispo dom Joaquim José Vieira – esse prelado mantinha uma relação por demais harmoniosa com o padre Cícero chegando a tecer elogios ao sacerdote quando dizia ser, o padre Cícero: “uma joia da Igreja”. Pela força do destino, mais tarde, um fato inesperado aconteceu o que provocou uma reviravolta na vida do padre Cícero Romão Batista, o que o fez tornar-se a “ovelha negra” da Igreja.

No dia 1º de março de 1889, durante a celebração de uma missa, quando no ato da distribuição da comunhão aos seus fiéis, o padre Cícero, ao depositar a hóstia – fruto da transubstanciação – na boca da beata Maria de Araújo, a partícula sagrada converteu-se em sangue. De imediato, os devotos presentes afirmaram que se tratava de um milagre e que a hóstia havia se transformado no sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Espalhada a notícia do “milagre”, muitos acorreram ao Juazeiro para constatar essa transformação Divina, o que passou a ocorrer todas as vezes em que o sacerdote dava a comunhão à pobre beata.

Maria de Araújo, uma cafuza, quase negra, analfabeta, raquítica e de saúde mental prejudicada era uma donzela juramentada que optara pelo voto de castidade e, entonada num tosco hábito (similar aos das freiras), servia na casa do padre e, sem nenhuma pretensão, viu-se de repente no olho do furacão como protagonista do “milagre”, fato com repercussão gigantesca. Padre Cícero, sem explicação para o fato, mesmo assim não desestimulou que os fiéis fizessem disso algo verdadeiro e passível de adoração. Pelo contrário, estimulou, quando até o lenços usados para enxugar o sangue da boca da beata serviam como peça de adoração.

O suposto milagre reverberou por todo o estado do Ceará chegando aos ouvidos do bispo dom Joaquim que, imediatamente, determinou a formação de uma comissão, formada por dois padres para que fosse procedida uma investigação sobre a veracidade do caso. Numa primeira, análise, a comissão atestou ser verdadeira a transformação da hóstia em sangue. Todavia, não convencida a autoridade eclesiástica, determinou esta uma nova análise com a incumbência de que fosse desmontada o que acreditava ser uma farsa. Assim foi feito e, na segunda investigação, a comissão optou por determinar inverídico o milagre do Juazeiro. Por conta disso, um religioso francês, padre Pierre-Auguste Chevalier, da Diocese de Fortaleza, teceu o seguinte comentário: “Nosso senhor não iria deixar a Europa para fazer milagres no Brasil”.

Em face do resultado das novas investigações que vieram a seu contento, o bispo do Ceará, animado pelo eurocentrismo do auxiliar francês e diante da discordância do padre Cícero em face do veredicto da Comissão, dom Joaquim José Vieira suspendeu o padre Cícero das ordens sacerdotais, proibindo-o de celebrar missas e de oficiar quaisquer sacramentos. Suspenso, padre Cícero se afastou por algum tempo de sua capela em Juazeiro e foi passar uns dias na cidade de Salgueiro/PE, na casa de um sobrinho da “coronela” cearense, dona Fideralina Augusto. Tempos depois, o padre retornou ao Juazeiro e, mesmo proibido, passou a casar e batizar, além de fazer sermões particulares em frente à sua residência, o que atraía centenas de fiéis. Por conta do “milagre”, das pregações e da influência política do padre Cícero, Juazeiro passou por uma onda de progresso e logo se transformou numa vila bastante próspera, chegando a superar - em tamanho e população – a sede do município, Crato. Em 1911 o antigo arruado do Juazeiro se tornou cidade e teve como seu primeiro prefeito o padre Cícero Romão Batista.

Insatisfeito com as punições impostas, o padre Cícero resolveu ir a Roma, tratar diretamente com o Papa. Chegando na Cidade Eterna, o padre cearense hospedou-se num colégio de freiras aguardando ser recebido pelo chefe da Igreja Católica, o papa Leão XIII. Não conseguindo esse desiderato, foi examinado pelo Tribunal do Santo Ofício, que remeteu ao Papa um Relatório de todo o caso em tela. Enquanto isso, Cícero ficou no aguardo da decisão papal, o que só veio quando ele já retornara ao Juazeiro. Sem muita surpresa, o padre recebeu a sentença do Sumo Pontífice que confirmava o que havia sido determinado pelo bispo de Fortaleza. Afastado em definitivo de suas obrigações de sacerdote e sem esperançada absolvição, Cícero adentrou de vez no mundo da política quando, em 1914, aliou-se ao governador deposto do Ceará, Nogueira Aciolly e lutou no episódio conhecido como “Sedição de Juazeiro” no qual derrotou a polícia cearense do então governador Franco Rabelo, o que proporcionou a recondução do seu amigo Nogueira Aciolly ao cargo de governador do Estado.

A reconciliação do padre Cícero com a Igreja de Roma só veio a acontecer em 2015 quando o papa Francisco aceitou a abertura do processo de beatificação do sacerdote cearense. A partir daí, Cícero passou a ser considerado um “Servo de Deus” a caminho da reabilitação que poderá leva-lo a ser um dia Beato e até ser canonizado Santo da Igreja que lhe excomungou. Desde então, a imagem do “Padim Ciço” teve a permissão de ser exibida nas Igrejas da religião Católica. Na verdade, para o povo do Juazeiro e de quase todo o Nordeste brasileiro, o padre Cícero já é considerado um Santo; mesmo porque, sem a anuência do Vaticano, mas com a aclamação dos devotos, Cícero já é, há muito tempo, considerado um santo popular consagrado pelos fiéis, porém não reconhecido (ainda) pela Igreja que, por heresia, lhe condenou um dia. Nesse caso, a infalibilidade do papa Francisco tem sido muito mais benéfica à fé nordestina – quando reabilita o padre Cícero - do que a falível decisão do papa Leão XIII quando ratificou sua excomunhão. Malgrado a hipócrita incoerência, sem comentários, afinal, Roma locuta est, causa finita est.



 

 

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