ODE

domingo, 17 de setembro de 2023

Domingo eu conto


Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

Diálogos no Paraíso

José Pereira Lima, o coronel Zé Pereira de Princesa e Nominando Muniz Diniz, mais conhecido como “Seu Mano” foram as duas lideranças que comandaram a política e a economia de Princesa durante grande parte do século XX. Ambos grandes latifundiários, industriais e agropecuaristas, eram eles que davam as cartas em toda a região do entorno de Princesa. No comando da política, principalmente. Quando não estavam exercendo o poder, denominavam um preposto para fazê-lo e assim, continuavam mandando do mesmo jeito. Zé Pereira morreu ainda moço, aos 64 anos de idade em 13 de novembro de 1949. Nominando faleceu mais velho, com 84 anos em 27 de novembro de 1974.

Chegados na outra vida, os dois, foram direto para o Purgatório. Os pecados da vida pessoal e quotidiana de cada um, eram poucos e, em sua maioria, veniais. Os mais cabeludos eram resultado da atividade política. Todavia, ou não tinham pecados mortais que os pudessem levar para o inferno ou, por outra, antes de morrer, tiveram tempo de pedir perdão a Deus. Dessa forma ficaram no Purgatório a redimirem-se de seus pecados até o dia 12 de janeiro de 2011, quando o papa Bento XVI aboliu o Purgatório. Com foro privilegiado - pela importância que tiveram aqui na Terra -, na triagem feita por São Pedro, foram, os dois, designados para o Céu sob o compromisso de, lá, se comportarem com civilidade. “As inrronhas da Terra e do Purgatório deveriam ficar para trás”, disse o chaveiro do Céu.

Em sua estada no Purgatório nunca tiveram oportunidade de se encontrarem. Chegados ao Paraíso, Zé Pereira e Mano, tiveram a sorte de habitarem uma mesma ala e ali se encontravam sempre. Não muito afeito a rezas - desde sua vida terrena – Zé Pereira não participava muito das constantes orações e levava o tempo em procurar seus antigos correligionários famosos da época de 1930: Washington Luís, os Pessoa de Queiroz, Alcides Carneiro, João Suassuna, João Dantas, dentre outros. Encontrou pouquíssimos. Já Nominando, que sempre foi muito religioso, só cuidava de outras atividades depois das obrigações sagradas. Na qualidade de lideranças que foram aqui, os dois gozavam de alguns privilégios: quartos individuais, liberdade para ir e vir... Algo que não era permitido à almas comuns. Era um verdadeiro gozo de repouso eterno.

Passaram a se encontrar e, nas primeiras conversas, ambos, despertados pela curiosidade de saber o que não puderam aferir em vida, passaram a jogar cascas de bananas um para o outro. “Nominando, é verdade que tu te negaste a vender gasolina a João Pessoa quando de sua visita a Princesa e o chamaste de déspota?” Perguntou Zé Pereira. Antes de responder, Nominando, de forma jocosa, teceu um elogio ao seu mais ferrenho adversário em vida: “Como sempre vaidoso, estás um janota!” Sabendo que Nominando sempre foi despeitado com ele, o coronel retrucou: “Querias que, aqui, eu me apresentasse como um biltre?” E, em tom de mofa, acrescentou quase ordenando: “Andas, respondes minha pergunta!” “Sim, me recusei a vender combustível ao presidente, mas fiz isso para te agradar. Tu estavas no auge...” Respondeu Mano. “No entanto, apesar dessa arrogância, pouco tempo depois tu te aliaste àqueles que massacraram Princesa”, asseverou o coronel. “Zé Pereira, tu sabes que eu sempre quis mandar em Princesa e tu, nunca deixaste... Vi ali a oportunidade de preencher o vazio da tua ausência e aceitei o convite de Zé Américo para governar Princesa. Simples assim... Tu não farias o mesmo?” O coronel pigarreou, coçou o nariz com a mão direita e disse: “Puro oportunismo, puro oportunismo!

Continuando o diálogo, em dias recentes, Zé Pereira sugeriu ao companheiro de Céu que conversassem sobre assuntos mais atuais e perguntou a Nominando: “O que estás achando da forma como vem sendo conduzida a política de Princesa?” “Homem, para te dizer a verdade, não se criam mais lideranças da nossa qualidade. A coisa ali tá desmantelada!” Analisou Mano. “Mas, de quem é a culpa?” Perguntou o coronel. “Só não é nossa. Nisso, eu até te defendo. O problema ali foram as escolhas.” “Escolhas?” inquiriu Pereira. “Sim. Escolhas. Começou logo dentro de tua casa quando teu bisneto criou uma cobra para mordê-lo e agora, sofre as consequências” disse Nominando. “Espere aí” - interrompeu Zé Pereira – “É verdade que o menino foi um mentecapto em dar guarida àquele sacripanta, mas, tu também escolheste mal. Lembras de 1982, quando o teu prefeito não apoiou o teu neto? Eu pelo menos não estava mais lá para orientar o menino”. “Sim meu amigo, é verdade, fomos traídos, mas, a culpa não foi minha. Em 1976 eu já havia morrido. Quem escolheu aquele prefeito foi minha filha, Maria Aurora”, respondeu Mano. “Pois é, se nós estivéssemos lá a coisa poderia ter sido diferente, né?” Emendou o coronel.

Para homens do quilate desses dois, que tiveram atividades intensas quando vivos, e muito sofrimento no Purgatório, a vida no Reino da Glória era um tédio. Nominando se queixava de haver sofrido para purgar-se da luxúria e da avareza terrenas e, Zé Pereira, por carregar nas costas as mortes da Guerra de Princesa. Para esquecer tudo isso, quebravam esse enfado com as constantes conversas diárias. Certa feita, no intervalo de uma oração ou outra, desta vez foi Nominando quem puxou a conversa: “Zé Pereira, o que tu achas da campanha eleitoral do próximo ano em Princesa?”. “Sei não, Nominando, mas acho que o bicho vai pegar” respondeu o coronel. “Pegar como?” “Sei lá, as notícias que me chegam são de que a coisa tá desmantelada e que tem fato novo na área”, respondeu o coronel. “Mas, dizem que lá, quem manda são os agiotas, é verdade?” Provocou Mano. “Ora, Nominando, de agiota quem entende és tu. Foi o que tu fizeste lá a vida toda. Até Severino Bento, pai do meu genro pediu emprestado a ti...” Devolveu o coronel. “Eu funcionava como se fora um banco! Ai deles se não fosse eu para financiar a produção, não sejas injusto!” Irritou-se Nominando. “Compravas na folha a produção dos pobres coitados e ainda cobravas juros!” Provocou Zé Pereira: “Isso é usura, homem, usura!”

No outro dia, matutando sobre a observação do adversário no dia anterior, Nominando, já de manhã, inquiriu Zé Pereira: “Tu me imputas defeitos como se foras tu um homem de completo respeito...” Asseverou Nominando como que para se vingar do coronel, e continuou: “Em 1945, tu, com a cara mais lisa do mundo votaste em Dutra que era o candidato de Getúlio, teu algoz em 30”. Zé Pereira, mesmo destreinado, reagiu: “Ora, Nominando, eu segui a orientação do meu partido. Eu não podia mesmo era votar no candidato de Zé Américo!”. Mano deu uma sonora gaitada e emendou: “Bastou tu morreres e teu filho, Aloysio, em 1950, apoiou e votou em Zé Américo para governador e, o pior, junto com nós!” vermelho da cor de uma ganga, o coronel contra-atacou se defendendo: “É verdade; mas quando eu soube disso, me remexi no túmulo. Pior fizeste quando mandaste fraudar a eleição de 1959, derrotando Zacarias e dando a vitória a Antônio Maia”. E o coronel continuou: “E mais, não lembras das perseguições que fizeste, a mando de Zé Américo e de Antenor Navarro, contra os meus correligionários e amigos que lutaram por Princesa?! E o cofre que mandaste arrombar com o fito de resgatar as cartas de Joaquim Sérgio?” Nominando, tremendo de raiva, já ia investir contra Zé Pereira quando, nesse momento, apareceu São Pedro que, vendo o calor da discussão, falou sério com os dois exigindo que se contivessem; afinal, estavam na casa de Deus.

Atendendo à admoestação do chaveiro celeste e, tentando desconversar, Nominando, agora mais contido, prosseguiu a prosa retornando à política de Princesa: “Mas, quem tu achas que vai ganhar a eleição do ano que vem lá na terrinha?” “Oxente, como sempre, quem ganha é quem tiver mais votos”, disse o coronel, e acrescentou: “Quando nós mandávamos em Princesa, o povo atendia aos apelos das lideranças. Hoje, avacalhou. Ninguém é mais de ninguém, tá tudo braiado”. Nominando riu e disse: “É verdade, Zé Pereira, bem que o padre Cícero disse que, ‘um dia as cadeiras iam descer e, os penicos, iam subir’. Aliás, tens razão; daqui de cima eu tenho observado famílias inteiras que me eram fiéis, e hoje, somam nas fileiras do adversário. Mal-agradecidos!” “Tens razão. E do meu lado, a coisa piorou depois que Gonzaga morreu... Falar nisso, onde é que ele tá mesmo? Não o vi ainda”, lembrou-se o coronel. “Com certeza, tanto ele quanto meu filho Antônio devem estar num lugar melhor do que este onde estamos”, disse Mano. “É verdade; ali são duas almas boas. Mas, Nominando, mudando de assunto, do que te arrependes em tua vida terrena?” Perguntou Pereira. “De não ter aceitado a pacificação proposta por teu filho, Aloysio, em 1963 quando teimei e me candidatei a prefeito contra Gonzaga Bento e fui derrotado pela primeira vez na minha vida”. Zé Pereira abriu um risinho entre os dentes e disse: “Eu sabia. Mesmo sofrendo no Purgatório eu comemorei tua derrota. Achei bem empregado. Arrogância não cabe dentro da política, às vezes, a gente faz um plano e vira um planeta”.

“Queres saber do meu arrependimento, Nominando?” Parece que estás doido pra dizer...” Respondeu Mano. “Pois, é”, começou Zé Pereira... “Atendi a interesses alheios quando fiz a Guerra de Princesa. Aquela cidade tinha vocação para o progresso, para o desenvolvimento, mas, com a guerra, foi tudo por água abaixo, restou somente a história que, mesmo assim, não tem o reconhecimento que merece”. “Concordo contigo, Zé Pereira”, disse Nominando e, tomando a palavra, continuou: “Mesmo assim tu me chamas de arrogante. Tu também o foste quando pensaste que eras o dono da cocada preta, que estavas acima de tudo e de todos. Quando a cabeça não pensa, o corpo padece e a fatura chega. Não tem reino que não acabe”, finalizou Nominando. Zé Pereira empertigou-se, olhou para o adversário em vida e disse: “Nominando, depois de tudo passado, vemos agora que nada vale nada. Ainda bem que mesmo antes de fazermos as pazes aqui no Reino da Glória, eu vi o meu filho Aloysio, lá embaixo, abraçando teus netos. Pelo menos, eles, demonstraram mais civilidade do que nós”. “É verdade” emendou Nominando: “Os tempos são outros, as coisas mudaram, as pessoas mudaram. Hoje em dia, os que não mudam, estão fadados a dar com os burros n’água”.

O afadigamento da vida eterna era, para Zé Pereira, bem mais rigoroso. Primeiro porque já estava lá há mais tempo do que Nominando, segundo, porque, acostumado com o frenesi do Purgatório e avesso a rezas, sofria com a tediosa rotina do Céu. Para Nominando, havia algum alento, pois, além de gostar das coisas da religião, livrara-se do aparelho auricular e, de repente, logo que saiu do Purgatório se viu livre também da tremedeira que o castigou na velhice. Mesmo assim, matavam o tempo rememorando o passado. No mais das vezes, na ausência de São Pedro, se digladiavam recordando coisas da vida pessoal de cada um. Zé Pereira falava em “Chica do Portão” e Nominando revidava relembrando as orgias do coronel em Recife na pensão da prostituta Laura Passos. Quanto à política, ficavam tristes por não poderem passar recados para os da Terra. Para eles, que adoravam política, estavam impotentes em ver as coisas não andarem nos conformes em seu feudo eleitoral. O coronel, um citadino que chegou a quase se formar em Direito, lamentava não poder mais servir à sua querida Princesa. Nominando, um matuto da Cabeça-do-porco, que sempre teve a cabeça boa para os negócios e para a política, sofria também em ver seu legado político murchar e, em que pese estar no Céu, penar diante dessa situação e somente lamentar. Cuidadosos em suas pelejas em que descobriam os podres um do outro, cuidavam também em não perderem os privilégios que são concedidos aos que estão sob a proteção Divina e se conformavam porque sabiam que, quem vai, não volta.



 

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