Por Domingos Sávio Maximiano Roberto
A Perfeição da Natureza
A situação de Helena, ainda na década de 60, era algo que trazia grandes transtornos e constrangimentos. Naquele tempo, não havia esse negócio de LGBTQIA+; não havia a compreensão com o que alguns chamam de erros da natureza; tampouco existiam os direitos consagrados em lei para proteger as minorias. Mulher com mulher virava jacaré. Era sabão mesmo. Respeito algum dispensavam aos diferentes. Ou seja: mesmo não sendo semelhantes no conteúdo, as pessoas tinham de ser “normais” na aparência. Recatada, Helena vivia absorta em suas elucubrações, pensando como fazer para não desistir da vida diante de tanta infelicidade. Casar-se, jamais! Ficar solteirona também não era sua vocação. Talvez, sair da cidadezinha onde morava e onde todos sabiam e especulavam sobre a vida de todos. Mas, para onde ir? Naquele tempo tudo era muito difícil. Ademais, ela morava no fim do mundo, onde o vento fazia a curva... Onde o cão perdeu as botas...
Tudo em Helena era diferente do que acontecia com as outras meninas. Não gostava de brincar de bonecas nem de roda. O que gostava mesmo era de rodar pião, jogar triângulo, bila, castanha e, adorava futebol. Quando começaram a se apresentar, os sinais de mudanças em seu corpo, fazia questão de escondê-los. Detestava ver os peitos crescendo e o corpo tomando formas arredondadas. Certo dia, foi ao barbeiro da rua em que morava e mandou-o cortar seus cabelos rente, igual aos dos meninos. Em casa, levou uma pisa da mãe e, como castigo, teve de usar um lenço amarrado na cabeça até os cabelos voltarem a crescer. Tudo nela era ao contrário. Odiava aquele corpo de mulher e, para escondê-lo, passou a usar vestidos folgados que não realçassem suas formas femininas. Naquele tempo, mulher não podia usar calças compridas, o padre não deixava entrar na igreja com aquela indumentária masculina e, como tudo era ditado pela Santa Madre Igreja, todos se submetiam a tanto.
O pior, é que Helena foi ficando bonita e passou a chamar a atenção dos meninos. Para que o massacre fosse maior, ela era a menina mais formosa da turma. Na Escola, o bullying de que era vítima, acontecia ao contrário: em vez de a criticarem por algo feio ou defeituoso, a incomodavam com elogios pela sua beleza “feminina”. Mesmo assim, não deixava de ser uma intimidação sistemática e isso a aborrecia muito. Ela não queria chamar a atenção dos meninos, mas sim, das meninas. Adorava quando tinha oportunidade de dormir na casa de uma das colegas. Achava ótimo sentir o calor e o cheiro delas. “Que coisa esquisita!”, pensava: “Isso não é normal, mas não consigo controlar, isso vem de dentro, é intrínseco”. Já com 17 anos, a jovem resolveu ser freira, afinal, ali, encontraria um lugar apropriado para seus desejos escusos e, melhor ainda, sob a proteção daquele que era o culpado de a haver envelopado de forma errada. Enxoval arrumado e já quase tudo pronto para embarcar para o Recife em busca de abrigo no convento das irmãs Carmelitas, eis que acontece algo que muda todo o rumo de sua vida.
Conheceu uma senhora chamada Rita. Era mãe de uma das colegas com quem ela costumava se reunir para fazer os trabalhos da Escola. Certo dia, Helena pilhou dona Rita a olhar para ela de um jeito diferente. Desconfiou, mas não disse nada. O tempo passou, mas, sempre que ia à casa da colega, sentia algo diferente no olhar daquela mulher. Num sábado de manhã, enquanto sua colega saiu da sala para ir ao banheiro, dona Rita a abordou e foi logo dizendo: “Menina, eu preciso conversar com você”. “Pois não, dona Rita, pode falar...” Respondeu a moça. “Não, minha filha; não é aqui”. “Como assim?” Inquiriu Helena. “Quarta-feira eu passo em sua casa para você me acompanhar para uma reunião. Concorda?”. Titubeou, mas acedeu. Afinal, a mulher era gente conhecida e de boas referências. Dito e feito. Na quarta-feira seguinte – dia dedicado ao desenvolvimento mediúnico -, dona Rita passou na casa de Helena e foram, as duas, para a tal reunião.
No caminho, a mulher começou a preparar a jovem, dizendo que estavam indo para um Centro Espírita, mas que ela [Helena] não deveria dizer nada a ninguém sobre isso. Naquele tempo, espiritismo era coisa do diabo. A Igreja não admitia nem aprovava que católicos participassem desse tipo de atividade e, os que as praticavam, eram tidos como hereges e catimbozeiros. Logo na entrada da casa onde funcionava o centro, uma mulher de cabelos compridos e vestida de branco, foi logo dizendo: “Fora da caridade não há salvação!”. Helena ficou toda arrepiada. E, sem que Helena se manifestasse, a mulher continuou e disse: “O espírito percorre uma série de existências no mesmo sexo e essa marca pode ficar impressa, só se dissipando com um certo grau de adiantamento quando a influência da matéria se apaga”. A moça não entendeu nada, mas ficou muito impressionada com o que escutava e com aquele ambiente. Depois, puseram as mãos sobre sua cabeça e rezaram algo que ela também não entendeu. Mesmo assim, se sentiu mais leve como que aliviada do que não conseguia entender.
Saída daquele ambiente esquisito, Helena desistiu de ser freira e resolveu estudar os preceitos do espiritismo. Esbarrou na questão da reencarnação, algo que lhe despertou profundo interesse. Um anteparo às suas agruras. Estaria aí a sua salvação? Após ler muito sobre o assunto e, aferrada a esse conceito filosófico que preceitua que a essência não física de um ser vivo inicia uma nova vida em uma forma física ou corpo diferente após a morte biológica, a moça convenceu-se de que, o caminho, seria viabilizar uma renovação da vida. Seu espírito não estava alinhado com seu corpo. Sua “doença” não tinha cura, só adaptação.
Helena não tinha a intenção de morrer, mas sim a de viver eternamente. Na carta de despedida, o que deixou escrito era tudo mentira. O que assentou naquele papel foi mais para causar comoção e para depois, já na dimensão etérea, observar quais os que realmente gostavam dela e, também, para se divertir com o choro daqueles que pensam que a vida se acaba com a morte. Foi tudo planejado. Sua ida para a Terra - já pela terceira vez – não estava mais a contento do que ela esperava ser. Logo na adolescência, descobriu que houve um erro no envasamento de seu corpo. Lhe mandaram para lá envelopado num corpo de mulher, mas, ela era homem. Agora, para aquele espírito antes atormentado, a história seria outra. Na hora da triagem divina, ela haveria de ter mais cuidado quanto ao corpo que lhe designassem. Afinal, a natureza é “perfeita!”
Nenhum comentário:
Postar um comentário