ODE

domingo, 22 de outubro de 2023

Domingo eu conto

Sob as bênçãos do gongá

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

Desde pequeno, Olavo deu mostras de ser um menino diferente dos da sua idade. Reservado até nas brincadeiras de que participava vivia sempre calado sem expressar aquela alegria inerente à idade, não se impunha em nada. Um mofino. Perdeu os pais muito cedo e foi criado por uma tia chamada Luzia, uma professora primária, solteirona e carola, uma verdadeira barata de igreja. Quando menino, foi coroinha e, feito rapaz agarrou-se ainda mais às coisas da Igreja Católica. Mesmo leigo, funcionava como um quase padre. Coordenava pastorais, orientava retiros, fazia reuniões com associações e logo passou também a ministrar a Eucaristia. Estudioso, aos 24 anos bacharelou-se em Ciências Jurídicas, mas o que gostava mesmo era de lidar com coisas que tivessem dinheiro pelo meio, o que o fez responsável pela contabilidade de sua paróquia, numa mistura de ecônomo com sacristão.

Amigo dos padres - dos quais conquistou completa confiança -, formado, conseguiu uma cadeira para ensinar filosofia na Escola mantida pela Diocese e começou já a ganhar algum dinheiro. Com 26 anos de idade, Olavo era um rapaz alto, branco de cabelos cheios e barba rala, um moço bem apessoado, meio desconfiado, circunspecto, mas de bons modos. Tão bons modos que parecia até meio afeminado. Mesmo assim, enamorou-se de uma jovem que era membro da Pastoral da Juventude de sua paróquia. Esse namoro recebeu as bênçãos do pároco, padre Boaventura e, em pouco tempo, Olavo casou-se com Cecília. Moça bonita de feições afáveis, bem feita de corpo, educada e transparecendo, no rosto, alguma inocência.

Casados, tomaram apartamento, passaram a morar juntos e continuaram participando das coisas da Igreja. Na sala de estar de sua morada, o casal tinha uma pequena mesa forrada com um tecido branco bordado em macramê, um altar onde repousavam várias imagens dos santos de suas devoções: São Jorge, São Manuel da Paciência, São Cristóvão, São Sebastião, Nossa Senhora da Conceição, o Menino Jesus de Praga, dentre outros. Mais parecia um gongá. Olavo não saía de casa sem fazer uma reverência àquelas imagens. Passava as mãos nas cabeças de todos os santos e se persignava em seguida por três vezes. Era um verdadeiro ritual, num misto de religiosidade e superstição, do qual jamais se apartava.

O jovem homem era um perfeito conservador e cheio de preconceitos. Abominava as ideias tidas como progressistas tais quais a descriminalização das drogas, as políticas de gênero e de quotas, a legalização do aborto... Casamento gay? Uma heresia! Tudo o que fosse divergente do convencional antes estabelecido, Olavo era contrário. Na política eleitoral, só votava nos candidatos do campo conservador, de preferência em homens brancos e mais ainda nos da extrema direita. Para completar, tinha o período da ditadura militar (1964-1985) como uma referência de ordem, disciplina e progressismo. Mesmo sendo muito jovem, era um verdadeiro admirador e saudosista desses tempos. No vestir, Olavo era sóbrio e elegante, sempre entonado em calças de tropical vincadas e camisas passadas de mangas compridas e colarinho duro, abotoadas até o pomo de Adão.

Na Igreja, tanto ele quanto Cecília, participavam de tudo. Eram associados da Congregação do Sagrado Coração de Jesus, do Encontro de Casais com Cristo - ECC e, ele, do Terço dos Homens. Somente uma atividade Olavo mantinha escondida: a Maçonaria, da qual era membro ativo e graduado. Ele sabia da Bula papal que determinava a excomunhão automática para os que faziam parte dessa Sociedade Secreta. Mesmo assim, frequentava, regularmente, uma Loja da instituição numa cidade vizinha à sua. Somente Cecília sabia desses encontros semanais, reuniões das quais mulheres não podiam participar. De todas as atividades das quais Olavo participava era ele quem cuidava dos dinheiros. Hábil nesse mister, mantinha tudo sob seu controle, fazendo todos os pagamentos das obrigações paroquiais, inclusive as remessas à Diocese, mas sempre prestando contas ao vigário Boaventura. Da maçonaria, era o tesoureiro.

Além de despeitado com o padre - como se frustrado por não haver-se ordenado sacerdote - o sacristão não confiava muito no cura que cuidava do livro contábil e guardava os dinheiros em seu cofre. Ficava a imaginar o que o vigário fazia com aquela grana toda. Certa feita, Boaventura passou-lhe a informação de que ele próprio faria as transferências mensais e obrigatórias ao bispo diocesano e ao óbolo de São Pedro. Olavo ficou com a pulga atrás da orelha porque desconfiava de que o padre estivesse desviando o dinheiro do dízimo. A governanta da casa paroquial, dona Lourdes, vivia a ostentar sinais de prosperidade e muita intimidade com o sacerdote. Até uma casa nova, o padre havia comprado para a mãe da empregada. Desconfiado, Olavo achava que existia ali algo mais do que uma simples relação de trabalho. Aproveitou a quadra em que o padre precisou fazer uma pequena viagem e mandou instalar câmeras em vários vãos da casa paroquial.

Boaventura era um padre ainda jovem de apenas 42 anos de idade, moreno de cabelos crespos, gordo e meio zambeta – defeito que procurava encobrir por debaixo da batina. Homem alegre e divertido com especial presença de espírito; era daquelas pessoas que enchem ambientes e que jamais deixam uma conversa descambar para o tédio. Um encartado! Era glutão e de olhares estirados para o sexo oposto, nesse particular, um padre que fugia à regra. Mas nele todos confiavam porque cuidava muito bem das coisas da paróquia. Sempre presente na Igreja era também um conservador que valorizava os ritos e primava pelo exercício da liturgia ao pé da letra. Adepto das confissões auriculares e das celebrações solenes, ele mesmo puxava os cânticos com sua potente voz de barítono.

O que tinha Olavo de sonso e o padre de bem-humorado e folgazão, tinha Cecília de reservada e, aparentemente, tímida. Contida, a mulher de Olavo pouco falava e dedicava todo seu tempo aos afazeres da Igreja e de sua vida doméstica. Para quem a observava mais demoradamente, notava uma falta de brilho no semblante como que sem objetivo na vida. Uma mulher apagada, sem luz. Em seu conservadorismo religioso, padre Boaventura recomendava aos fiéis mais chegados que se confessassem pelo menos uma vez por mês. A maioria jogava o lixo para debaixo do tapete quando contava apenas os pecados veniais. Uns poucos, a exemplo de Cecília, na singeleza de sua crença, em busca de conforto espiritual, abriam-se completamente com o padre no confessionário.

Numa manhã de domingo, logo após a missa, Cecília abordou padre Boaventura: “Padre, preciso falar algo com o senhor, mas quero fazer no confessionário”. Disse. “Por que não conversamos de maneira informal?” Sugeriu o cura. “Não. Prefiro no resguardo do segredo confessional”, respondeu a moça. O padre, com o semblante grave dirigiu-se ao confessionário, acomodou-se ao mesmo tempo em que Cecília se ajoelhava contrita para contar a sua misteriosa confissão. A jovem mulher foi direto ao assunto: “Padre, há mais de um ano que Olavo não me procura na cama. Peço aqui a sua orientação. Existe ainda casamento?” Chocado com a revelação, padre Boaventura demorou-se um pouco em responder, pigarreou e disse: “Cecília, talvez não seja eu a pessoa indicada para tratar de assunto dessa natureza. Sou um celibatário. Não seria melhor conversarmos informalmente? Não estás em pecado mulher. Isso é apenas uma crise matrimonial”. 

A dedicação de Olavo aos vários afazeres contábeis somado às atividades religiosas lhes tomava o tempo para dedicar à esposa. Durante o dia estava, o homem, a cuidar das finanças da Igreja, da maçonaria e das várias associações, além da obrigação de lecionar em algumas turmas da Escola Diocesana. À noite, três vezes por semana ficava até tarde na casa paroquial prestando contas ao vigário e, sempre às quintas-feiras – sem nunca esquecer de reverenciar o gongá - ia para sua incumbência secreta na Maçonaria. Para Cecília, restava bem pouco tempo ou nenhum. Já tinham mais de quatro anos de casados e Cecília era cobrada, pelas poucas amigas que tinha, sobre o não aparecimento de “família”. Contrita em sua fé e com ar de conformada, respondia: “Aguardo a vontade de Deus”.

Insistindo, no confessionário, Cecília perguntou: “Então padre, o que devo fazer para reconquistar meu marido?” “Por enquanto nada. Vou analisar o caso para poder te aconselhar melhor. Vai em paz, minha filha”, disse o cura. Inconformada com a pouca importância dispensada pelo padre a esse crucial problema, a moça ficou a matutar se havia feito a coisa certa em se abrir com o vigário Boaventura. Qual não foi sua surpresa quando, no dia seguinte, - uma quinta-feira – o padre a convidou para jantar com ele na casa paroquial. Aceitou o convite e, lá chegando, encontrou a mesa posta e repleta de finas iguarias, e o padre, desnudo do hábito. À paisana.

Jantaram, os dois e, depois da refeição passaram a conversar no escritório do padre. “Você tem de ser mais ousada, exibir melhor seus atributos físicos para atrair a atenção de seu marido”. Disse Boaventura. “Como assim, padre?” Perguntou Cecília. “Ter iniciativa, minha filha, estimular o homem...” “Mas, padre...” Titubeou Cecília interrompida pelo sacerdote: “Por isso que lhe disse que essa conversa não deveria ocorrer no confessionário”. “Como assim?” Perguntou a moça. “Na cama, a mulher tem de ser o objeto de desejo do homem para viabilizar os desígnios de Deus: crescei e multiplicai!” Assustada com o entusiasmo do padre, Cecília preferiu encerrar a conversa, despedir-se e ir-se embora dali. Na despedida, Boaventura segurou-lhe os braços, deu-lhe um beijo na face e recomendou: “Deus te acompanhe, minha filha

A partir daí, demonstrando interesse em ajudar à pobre mulher, Boaventura passou a convidá-la para conversar em sua casa - sempre às quintas-feiras à noite. Enquanto isso, Olavo continuava com sua rotina normal. Depois de cerca de um mês da instalação das câmeras na casa paroquial, o sacristão resolveu olhar o conteúdo das filmagens. De uma cajadada só o homem matou dois coelhos: Além de ver comprovadas suas suspeitas de concubinato do padre com a governanta, Olavo viu também o sacerdote viabilizar os desígnios Divinos com sua mulher. De forma sutil, nada fez, nada disse. Arrumou seus pertences personalíssimos, saiu de casa e foi morar na cidade vizinha onde tinha uma mulher e uma ninhada de filhos pequenos feitos nas quintas-feiras maçônicas. Cecília, continuou pecando e se confessando para pecar de novo e, o padre, apascentando seu rebanho. Tudo isso sob as bênçãos do gongá.



 

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