Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
O Bebê que virou
serpente
Sebastião era um alto comerciante da Princesa da década de 40
do século passado. Dono de padaria e também de uma Casa de Estivas que supria
de mercadorias as bodegas da cidade e região. Era um homem de instrução
primária, mas que gostava de ler os jornais que mandava vir do Recife. Tinha
duas filhas: Estela e Luísa e as criou com o mais acurado esmero. Tratadas como
princesas, tinham tudo o que necessitavam e mais algumas coisas. Seus
brinquedos e suas roupas vinham do Recife, até velocípedes as duas possuíam -
um luxo para poucas crianças daquele tempo. Estudaram no Colégio das freiras e
frequentavam a alta roda da sociedade princesense. Em face desse privilegiado status eram tidas como um bom partido
para qualquer rapaz interesseiro. Ambas belas, sendo, Luísa, mais bonita. Eram
bem apessoadas, branquinhas, de corpo escultural, cabelos longos e
encaracolados, de boa estatura e muito educadas.
Se Sebastião dava tudo o que as filhas pediam, esqueceu de
dar-lhes os conselhos e a disciplina necessários para que aprendessem a se
conduzir na vida com suas próprias pernas. As meninas, mimadas ao extremo, eram
dondocas, criadas sem compreender sobre as coisas da vida. Achavam que tudo caía
do céu. Jamais se preocuparam com a vida futura e, em seu alheamento à
realidade, viviam numa redoma onde tudo girava no seu entorno
proporcionando-lhes conforto, bem-estar e, obrigação nenhuma. Feitas moças,
começou o problema. Ainda estudante da Escola Normal “Monte Carmelo”, Luisinha
– como era chamada pelos íntimos, a mais nova, passou a gazear aulas para viver
de namoricos com os rapazinhos bonitos da cidade. Estela, mais contida, ao
tempo em que admoestava Luisinha, se imiscuía de dar ciência ao pai sobre o
comportamento da irmã. Temia uma reação violenta de Sebastião. Compartilhar com
a mãe, Carminha, era perdido, pois esta, depois do parto do último filho, que
nasceu morto, teve depressão pós-parto e ficou alienada.
Já aos 15 anos, Luisinha - que era mais nova do que Estela
dois anos -, soltou a corda e deu asas ao hedonismo em busca do que acreditava
ser a felicidade. Com o corpo latejando de desejo e desorientada quanto às
coisas do sexo, a moça, sedutora de rapazes também inexperientes, perdeu a
virgindade. Não disse a ninguém, nem à irmã. Todavia, em busca do prazer pura e
simplesmente, enamorou-se de um jovem rapaz do baixo clero da sociedade
princesense, filho de um pobre pescador de traíras no Açude Novo e com ele
passou a transar sem controle algum. Trepavam de dia e de noite. Os encontros,
no mais das vezes, aconteciam num quartinho existente nos fundos da padaria do
pai ou, por outra, a moça deixava escorada a janela de seu quarto, que dava
para um beco no centro da cidade e era por onde o rapaz entrava, na calada da
noite, para fazer amor com ela. Noites insones de prazer intenso. Dessa
intensidade hedonista, veio a tragédia. Sem entender o que se passava, Luisinha
começou a sentir alguns sintomas de uma doença esquisita: tontura, enjoos, calafrios
e muito sono, chegando a desmaiar quando estava à mesa na hora do café da manhã
na frente de toda a família.
Preocupado com quadro de saúde apresentado pela filha, Sebastião,
acompanhado de Estela, levou a moça, quase uma menina ainda, para se receitar
com o doutor Severiano Diniz. Após exames superficiais e algumas perguntas,
tudo isso na presença do pai, este perguntou ao amigo Severiano: “Será que foi
comida, doutor?”. O médico, vislumbrando o terremoto que estava por vir,
recomendou que as duas moças saíssem de seu consultório e ficou a sós com
Sebastião. “Então, doutor, o que é que a minha filha tem? É grave”, perguntou o
homem. “Gravíssimo, Sebastião, gravíssimo!”, respondeu o doutor com ar muito
sério. “Mas... do que se trata?” Inquiriu o pai. “Sebastião, sua filha está
grávida!”. Assustado com essa terrível notícia o comerciante ficou paralisado
e, retornando a si, inquiriu ao médico, quase gritando: “Grávida? Como assim?
Luisinha é ainda uma menina! Ademais, recatada e bem criada como é, como pode
ser isso verdade? Não, doutor, eu exijo que sejam feitos exames mais acurados!
Isso não é possível, não é possível!” E assim dizendo, o rico comerciante se
retirou do consultório do médico e, junto com as filhas, sem dizer nada, partiu
para casa. No caminho de casa, em face do mutismo do pai, Estela perguntou: “E
aí, papai, o que é que Luisinha tem?” “Nada, minha filha, nada; apenas uma
indisposição passageira”. Chegado em sua residência, Sebastião determinou que
Luisinha não deveria sair de casa por hipótese alguma salvo com sua expressa
autorização. No dia seguinte, o pai comunicou à filha que arrumasse sua mala
que, dentro de oito dias, viajariam ao Recife em busca de tratamento para sua
saúde.
Amália, que exercia o papel de governanta da casa de Sebastião,
era uma mulher experiente, curiosa e, sem fugir à tradicional regra, dava conta
de tudo o que se passava na casa dos patrões granfinos, era toda ouvidos, mesmo
porque, diante da invalidez mental da patroa, Carminha, era ela [Amália] quem resolvia
tudo na casa. Desconfiada da esquisita doença da filha mais nova do patrão,
Amália, bisbilhoteira que era, chamou Luisinha e fez-lhe algumas perguntas ao
que, a moça, se abriu com a governanta e contou-lhe toda a história do namoro
com o filho do pescador. Mesmo espantada com o relato, Amália disse à menina:
“Você está grávida!” “Grávida, eu? Como assim?” Assustou-se Luisinha. “Grávida,
minha filha e, já, já, sua barriga vai crescer e você não vai ter como esconder
de seu pai. Temos de tomar uma providência urgente; deixa comigo”, disse a
mulher. No mesmo dia, à tardinha, depois de conversar com Estela sobre a
tragédia da irmã, Amália preparou uma poção à base de carqueja, cabacinho e
arruda e deu para Luisinha beber. A moça tomou o chá e, poucas horas depois,
caiu de cama à morrer. Chamaram o pai que, chegado da padaria, viu que o estado
da menina era preocupante, vomitando muito e a se contorcer com dores
abdominais. Levou novamente, a moça, para o doutor Severiano. Lá chegando, o
médico fez uma lavagem estomacal que provocou a expulsão da meizinha abortiva.
Logo a menina se sentiu melhor e voltou para casa.
Nesse ínterim, Estela contou ao pai sobre os movimentos
promovidos por Amália. Surpreso com o conhecimento da situação, pela fofoqueira
Amália e agora também pela outra filha, Sebastião ficou com a pulga atrás da
orelha, pois, tudo o que a governanta sabia, virava notícia na rua. Dito e
feito. Em poucos dias, os cochichos começaram a se fazer pelas esquinas da
cidade: “A filha de ‘seu’ Sebastião tá buchuda!” “Não me diga... E, quem é o
pai?” Em face desse disse-me-disse, o severo comerciante, num misto de
vergonha, indignação e raiva, resolveu tomar a medida extrema: Dizendo-se um
homem íntegro, religioso e que não compactuava com coisas erradas, em nome da
honra da família, com estardalhaço e sem atender aos hipócritas conselhos dos
amigos e nem ao rogo da filha Estela, expulsou Luisinha de casa. Além de
espancar a filha com violência, o pai jogou, o que chamou de seus panos de
bunda, no meio da rua. Foi um dos maiores escândalos já vistos na Princesa da
primeira metade do século passado. Uma cidade conservadora, preconceituosa e
hipócrita, assistia a mais um episódio emblemático daquele tempo. Só que, desta
feita, envolvendo uma das famílias mais chiques do lugar. Mesmo depois do
escândalo, os cochichos continuaram em busca da informação de quem seria o pai
da criança e mais detalhes do babado. Não sossegavam, os bisbilhoteiros,
enquanto não desvendassem a tragédia por completo.
Expulsa de casa e proibida de ser acolhida por parentes ou
amigos, restou a Luisinha o caminho do prostíbulo. Naquele tempo, o Cabaré de
Princesa funcionava numa viela, chamada “Rua da Lapa”, localizada no chamado
Bairro do Cruzeiro e era administrado por uma velha meretriz – de quem nunca se
soube o verdadeiro nome -, mas que era conhecida “Madame Juvita”. Ali chegada,
Luisinha foi bem acolhida pela chefe do bordel. Afinal, malgrado ser uma puta
nova, representava algo de inusitado por ser oriunda da classe alta e assim,
servir de enxuga língua contra aqueles que enxergavam as chamadas “mulheres da
vida” como seres de quinta categoria. Um alento para a classe inferior. Com a
chegada da “novata”, o lupanar de Madame Juvita ganhou novos ares e ávida
freguesia em busca do desfrute da nova quenga. Mas, Luisinha, ali chegando, já
com a barriga protuberante, reservou-se aos serviços domésticos da casa da
cafetina, o que fazia sempre a chorar em sua angústia eterna. Nos meses seguintes,
sem sair da casa da Madame para nada, a jovem restringiu-se a curtir sua
angústia e aguardar o nascimento da criança. Qual não foi sua surpresa quando,
a proxeneta, pressionada pelo poderoso pai comunicou-a que, ao nascer, a
criança deveria ser-lhe entregue para adoção.
No dia 2 de julho de 1948 – coincidentemente no Dia
Internacional da Prostituta –, num dos quartos daquela Casa de Recursos,
Luisinha deu à luz um menino. Logo que pariu, atendendo determinação do pai da desventurada
moça, Juvita retirou a criança sem dar chance à mãe de sequer de ver o bebê. O
menino nasceu laçado pelo cordão umbilical e, por isso, demorou a respirar. Mesmo
ainda se bulindo, a criança foi considerada um natimorto. Cumprindo o
desiderato do rico comerciante, a dona do prostíbulo enrolou o rebento num pano
e jogou-o no meio do Açude Novo - manancial que existia próximo ao arruado que
abrigava o Cabaré. Tava resolvido esse trágico problema? Não. Uma das quengas
que vivia no entorno de Luisinha e que lhe auxiliou durante a gravidez,
confidenciou à desditosa mãe sobre o destino de seu filho. Na verdade, não
havia paz para aquela moça. Lusinha exasperou-se com a macabra notícia;
amaldiçoou a proxeneta e evadiu-se do Cabaré em busca de abrigo longe dali. Foi
exercer o seu “livre arbítrio”. Sabedora disso, Amália a abrigou na casa de uma
de suas filhas que era casada e morava num sítio próximo. Madame Juvita, em que
pese haver auferido vantagem financeira pelo cumprimento da recomendação de
Sebastião, ficou com a consciência pesada e resolveu confessar esse grave
pecado ao vigário da cidade.
Terrivelmente arrependida pelo cometimento do hediondo crime,
a velha meretriz pôs um véu na cabeça e partiu para a Igreja com o fim de
confessar seu pecado ao padre frei Clemente, um alemão que lutara na II Guerra
Mundial ao lado dos nazistas e era conhecido por ter um temperamento que era a
antítese de seu nome. Ajoelhada contritamente ao confessionário, a mulher fez
seu tenebroso relato. O padre, ao invés da imposição de uma rigorosa penitência
à velha rapariga, aos gritos e de forma ininteligível em seu português mal
falado e de sotaque esquisito, disparou sua sentença: “Maldita! Hás de queimar na foga da inferna por essa grande pecada! E
essa menino pagã se transformará num serpente!” Após essa sentença, proferida
num português mais do que atrapalhado, estabeleceu-se a lenda da “Serpente do
Açude Novo”, o que persiste até os dias de hoje, através da oralidade
reproduzida de relatos passados. Poucos anos depois de tudo isso, Sebastião,
falido, adentrou no alcoolismo e morreu pobre vendendo jogo do bicho pelas ruas
de Princesa. Antes disso, quando o alto comerciante ainda tinha posses, o filho
do pescador, desapareceu misteriosamente. Dias depois de sair do Cabaré de
Madame Juvita, Luisinha foi encontrada dependurada numa corda amarrada no pé do
brabo sustentado pela linha da sala da frente da casa da filha de Amália. Madame
Juvita enlouqueceu e, o bebê que virou serpente alimenta até hoje o folclore
princesense quando muitos ainda acreditam nesse “leviatã”: O bebê que virou
serpente.
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