ODE

domingo, 24 de dezembro de 2023

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

Um casamento reparador

Não era um latifúndio. Podia-se dizer uma propriedade grande e completa do necessário para se considerar uma fazenda. Ali se cultivava cana de açúcar, algodão, mamona, agave e também a agricultura de subsistência, além da criação de gado, ovinos, caprinos, suínos, alguns cavalos e muitas galinhas. Não tão grande, mas carecida de mão de obra, o que se resolvia com a força de alguns criados e trabalhadores de aluguel. Eram as terras de José Carlos Chambrão, que herdou de seu falecido pai, o capitão Eugênio Chambrão, da Guarda Nacional. Zé de Eugênio, como era mais conhecido, um galegão de 40 anos de idade, alto e forte, carrancudo, de gestos rudes e pouca conversa, era casado com dona Joana Medeiros, uma mulher branca, com seus 35 anos, de baixa estatura, desprovida de beleza, mas dona de um espírito leve, conciliador – talvez até preguiçosa - e também de pouquíssima conversa.

O ano era o de 1967 e o lugar era na ribeira do Pajeú, na trijunção dos municípios de Flores, Triunfo e Princesa. O casal vivia numa grande e imponente casa, de calçadas altas, rodeada de terreiros bem varridos, pontuados por algumas árvores frondosas. O interior da casa em contraste com a imponência do prédio, era simples como qualquer casa de fazenda da época. A residência de Zé de Eugênio era movimentada. O dia-a-dia do casarão era frenético. Além do fazimento de comidas em grande quantidade, para atender às necessidades domésticas e também às dos trabalhadores das roças, produziam queijos de coalho e de manteiga, faziam bolos e doces e fabricavam sabão da terra com a gordura que sobrava da matança dos porcos.

Para esses afazeres, dona Joana contava com a ajuda de várias criadas sob a coordenação de Quitéria – uma mulata de seus 50 anos, atarracada, de pernas arqueadas, cabelo rente e muito autoritária. Na verdade a patroa, Joana, não apitava em nada; passava os dias a bordar, fazer crochê, tricô e, mais raramente, rendar em sua almofada de bilros. Quanto ao comando da casa, isso era tarefa da negra Quitéria, que mandava em tudo. Malgrado essa vida tranquila, o casal sofria com a falta de filhos. Casados há mais de 12 anos, Joana jamais engravidara.

Certo dia, uma comadre de Zé de Eugênio, que morava no Ceará, em Juazeiro do Norte, veio visitá-lo e trouxe consigo um presente para o casal: uma imagem do padre Cícero Romão Batista. A escultura, em gesso, veio envolvida num laço vermelho com a inscrição, em latim: fecunditas. Esse presente, trazido pela comadre, segundo esta, havia sido benzido pelo padre Cícero poucos dias antes de morrer.

Logo que recebeu a prenda, Joana a colocou em lugar de destaque em seu oratório. A visita da amiga do casal foi por demais fecunda. Em janeiro de 1949, seis meses após a chegada da imagem do “santo”, Joana engravidou. Dada a sua idade, foi uma gestação de risco, conturbada e cheia de sustos. A mulher passou toda a gravidez numa cama repousando, regada a pirão, canjas e caldos de galinha. Certo dia, antes de completar sete meses de gestação, começou a sentir dores e a sangrar. Logo chamaram o doutor Severiano Diniz, que veio de Triunfo para atendê-la

Como num milagre, a intervenção do médico foi exitosa e Joana, em fins de agosto de 1950, deu à luz um minúsculo menino medindo pouco mais de 20 centímetros, o que puderam acondicionar numa caixa de sapatos. O garoto sobreviveu, sob os meticulosos cuidados da negra Quitéria que fez-se mãe de Cícero – nome que foi dado ao bebê em homenagem ao patriarca do Juazeiro, o responsável por essa vitória. Para felicidade do casal de fazendeiros, o menino se desenvolvia saudável e muito ativo. Cresceu rápido, nada denunciando sua condição de prematuro.

Logo após o garoto completar 7 anos de idade, Zé de Eugênio providenciou uma professora particular para o filho que, muito mimado jamais subiria no lombo de um burro para estudar na cidade de Flores. Cícero fez todo o curso primário em casa. Para cursar o ginasial, já um rapazinho de 13 anos, foi mandado para o Recife, onde passou a morar na casa de um tio paterno que exercia a profissão de fotógrafo na capital pernambucana. Nesse mister, ele só voltava para a fazenda nas férias do meio do ano e em dezembro.

Maria da Salete, chamada por todos de “Salete”, era a cozinheira da Casa Grande. Uma negra de seus 40 anos, formosa, de dentes bonitos e bem-humorada. Ela tinha uma filha, Maria Auxiliadora a quem chamavam de “Dorinha”, fruto de um breve amancebo que teve com um mulato alagoano que trabalhara no engenho da fazenda. A menina era uma mulatinha bela, de olhos negros, lábios carnudos, corpo bem feito e muito doce. Dorinha, de apenas 15 anos de idade, não estudava nem trabalhava, mas adorava cavalgar nos cavalos de raça de Zé de Eugênio.

Em uma de suas vindas de férias do Recife, Cícero, já com 16 anos, um rapaz loiro, alto e de boa compleição física passaria, na fazenda, cerca de três meses antes de retornar aos seus estudos.   Amante dos cavalos, o rapaz levava o tempo em cuidar dos animais: dava-lhes banhos, ração, arriava-os e cavalgava quase o dia todo. Certo dia, Dorinha perguntou a Cícero se poderia ir com ele para um desses passeios, no que o moço acedeu, preparou dois animais e partiram em alegre galope.

Parando para descanso dos cavalos, os dois sentaram-se embaixo de uma árvore e começaram a conversar. Cícero, desinteressadamente, falando apenas sobre as montarias mas, a mocinha, toda solícita, sentada em posição displicente, a mostrar suas grossas coxas, passou a roçá-las nas pernas do rapaz. O roçar de pernas evoluiu para carícias.

Como que jogando gasolina no fogo, a moça ofereceu seus carnudos lábios para um beijo de Cícero que, mesmo encabulado com aquela surpreendente situação, excitado, não deixou por menos. Beijou a menina e, daí, o fogo da lascívia resolveu o resto. Ali mesmo, debaixo da árvore, num frenesi lúbrico, Cícero desvirginou a filha de Salete. Dorinha não objetou em nada, pelo contrário, fez-se instrumento do desejo do rapaz e gozaram intensamente. Consumado o ato, retornaram para casa e nada comentaram com ninguém.

No dia seguinte, logo cedo, Cícero estava a arriar os animais para mais um passeio com a filha da cozinheira, e isso se repetiu quase que diariamente, até seu retorno à capital pernambucana. Assim, foram vários os encontros dos dois quando, numa explosão de desejo incontrolável, sem cuidado algum, fornicavam incessantemente. O ninho de amor era numa velha Casa de Farinha abandonada no meio do mato.

Findas as férias, Cícero foi embora e, Dorinha, ficou na saudade desse arrebatado amor. Para o moço, chegando ao Recife, tudo voltou ao normal. Para a mocinha, a coisa complicou. Poucos dias após a partida do jovem mancebo, Dorinha começou a apresentar sintomas esquisitos: desmaios, enjoos, sonos intermitentes; o que chamou a atenção de sua mãe. Instada sobre o que sentia, a menina, sem saber dizer, foi levada pela mãe à cidade de Princesa para uma consulta com o doutor Severiano. Diante dos primeiros relatos sobre os sintomas, o médico virou-se para Salete e disse, de supetão: “Sua filha está grávida!”.

Assustada com a notícia do médico, Salete levou Dorinha para casa e, lá, a questionou sobre a situação. Sem ter outra alternativa, Dorinha contou tudo à mãe, sobre suas conjunções carnais com o filho do patrão. Interesseira, Salete, procurou dona Joana e relatou o acontecido. Depois de desmaiar e só tornar sob a intervenção de Quitéria com um capucho de algodão embebido em álcool sob seu nariz, a patroa, sem saída, contou tudo ao marido. De pronto, Zé de Eugênio arrumou uma solução e comunicou a Salete que ajeitasse a menina que ela ia se casar.

Pasma com essa notícia, a cozinheira, ao mesmo tempo, surpresa e alegre, informou a Dorinha que o problema estava resolvido, ela ia se casar com Cícero. No dia seguinte a esse comunicado, Zé de Eugênio chamou Salete e disse, sem rodeios: “Amanhã eu vou na rua de Flores falar com o padre Amâncio para preparar os papéis e os banhos. Tua filha vai se casar com João”. Salete quase caiu dura. Pensava, a pobre mulher, que sua filha, buchuda de Cícero, iria casar-se com o filho do patrão. E agora? Como dizer à menina que seu marido seria outro que não o pai de seu filho?

João era um jovem negro, recém saído da adolescência, filho de Clementino, a quem chamavam de “Quelé”, que tangia e cuidava dos bois que giravam a moenda do engenho de rapadura da fazenda. De sorte que João - em que pese a filha de Salete nunca haver-lhe dado trela - sempre palpitou a moça e, assim, aceitou a determinação do patrão, mesmo porque, naquele tempo, as ordens eram inquestionáveis. O caso tinha urgência e tudo foi resolvido rápido. A influência, através dos cobres de Zé de Eugênio, dobrou as conveniências do padre, satisfez a vontade de João e, mesmo chorosa, Dorinha aceitou a prescrição superior e submeteu-se à vontade do patrão.

Um mês depois do fato vir à lume, antes de a barriga da menina crescer, o casamento se consumou, e os dois foram morar numa casinha de taipa erigida nos fundos da Casa Grande. Para Salete, restou conformar-se com a sorte ditada pelo patrão que, pelo menos, amparava sua filha, aos olhos dos outros, de comentários maldosos. Nesse ano de 1967, Cícero não teve permissão do pai para passar as férias em casa, nem foi comunicado sobre o motivo dessa proibição.

Casado com Dorinha de forma intempestiva, João sequer desconfiou de que ela já estava grávida. Achava que o casamento havia sido uma decisão do patrão e pronto. Naquele tempo era assim, as decisões superiores eram inquestionáveis. Ademais, era o que João mais queria, uma vez ser a oportunidade em consumar seu tesão pela filha de Salete. Quanto à virgindade da moça, a negra Quitéria, ardilosa que era, resolveu com seus truques, e o marido não desconfiou de nada. Em setembro daquele ano, Dorinha pariu um menino. Mesmo sua mãe bradando a todos que a criança era prematura, de sete meses, o rebento nasceu graúdo e forte. Dona Joana e Zé de Eugênio, tomados como padrinhos do menino, logo afeiçoaram-se à criança que, em homenagem ao “padrinho”, recebeu o nome de Eugênio.

Criado praticamente na Casa Grande, o garoto, embora tivesse os cabelos meio crespos, era branquinho igual leite e gozava de todos os privilégios possíveis. Quanto a João, o “pai”, este servia de zombaria nas rodas de conversa dos fins de tarde da fazenda, quando seus companheiros de trabalho diziam em tom de troça: “Eita, João, botaram leite no teu café!” Para evitar constrangimentos maiores, Zé de Eugênio alugou uma casa no Recife e mandou Quitéria de mudança para cuidar de Cícero que ficou proibido de voltar à fazenda até ulterior deliberação do pai, e somente tomou conhecimento da história quatro anos depois, quando passou no vestibular para a Faculdade de Medicina. Quanto a Dorinha e João, viveram felizes nesse casamento reparador.



 

 

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