ODE

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

A batina de bronze

Até o início do século XX, os filhos das famílias abastadas tinham seus destinos decididos pelos pais. Via de regra, os rebentos do sexo masculino eram designados para três carreiras consideradas essenciais no cenário da sociedade daquele tempo: eclesiástica, militar e jurídica. Já as filhas mulheres, no seio das numerosas proles dos potentados da época, educadas para as prendas do lar, eram oferecidas em casamento para os filhos varões dos amigos e compadres do mesmo nível social.

Os grandes proprietários de terras, pecuaristas e agricultores, eram chamados de “coronéis” ou “majores” e tinham total poder de mando nos limites de seus feudos. Decidiam tudo de forma inquestionável, principalmente quanto ao destino dos filhos. Com Francisco Joaquim Flor, mais conhecido como major “Flor”, não era diferente. Casado com dona Emerenciana o prolífico casal tinha 8 filhos: 5 homens e 3 mulheres.

O major Flor era dono de vasta propriedade no sertão da Paraíba nos domínios do município de Piancó, uma fazenda banhada, em grande parte, pelo rio de mesmo nome. Morava numa grande casa de alvenaria que tinha, encostado, um curral para o gado leiteiro. Além da mulher e dos muitos filhos, o fazendeiro agregava também criados, alguns deles ex-escravos pertencentes ao seu falecido pai. O major era um galegão alto e forte de quarenta e poucos anos, portador de uma calvície acentuada e dono de um penetrante olhar azul. Emerenciana era uma mulher um pouco mais jovem que o marido, também branca, de estatura mediana, rechonchuda de corpo, dona de um largo sorriso e de excelente temperamento.

Logo que os filhos mais velhos começaram a ficar taludos, o major Flor providenciou uma professora particular para ensiná-los a ler e escrever, inclusive às meninas – o que era raro naquele tempo quando as fêmeas eram destinadas apenas às coisas do lar. A professora, Iracema, era uma solteirona que, para o exercício do ofício de lente dos filhos do fazendeiro passou a morar na Casa Grande como se fora da família. Dona “Cema”, como era chamada pelas crianças, ministrava aulas, de manhã aos meninos e, à tarde, às meninas. Era assim, tudo separado.

Alfabetizados, práticos em álgebra e aptos na leitura e na escrita além de noções elementares sobre ciências, história e geografia, os filhos do major, prontos para ingressarem no ensino secundário, foram designados para estudarem no Seminário Diocesano de Olinda/PE e, dali, numa tiragem feita pelo pai, seguiriam o destino traçado por este. Corria o ano de 1900 quando o fazendeiro resolveu encaminhar os filhos. O mais velho, Francisco, foi despachado para o Rio de Janeiro para fazer a Escola Militar da Praia Vermelha. O segundo, Luís, ficou no Recife onde iniciou o curso de Ciências Jurídicas na Faculdade de Direito, a mesma em que estudou o poeta baiano Castro Alves. João e Augusto que sempre se mostraram avessos às letras, voltaram para casa com o encargo de auxiliar e dar continuidade ao ofício do pai.

O mais novo deles - o mais ativo de todos - foi designado pelo major para ser padre e continuou no Seminário de Olinda. Ainda na puberdade, Antônio resignou-se à vontade do pai e continuou ali seus estudos. Dois anos após essa determinação paterna, em 1902, já um rapaz de 16 anos Antônio voltou para casa em férias escolares e suplicou à mãe para que convencesse o pai de que não tinha vocação sacerdotal, não queria ser padre. “Meu filho, você sabe como é seu pai quando toma decisões: não volta atrás!” Disse-lhe dona Emerenciana. “Mamãe, eu não tenho vocação, eu não quero isso pra mim. Jamais serei um bom padre!” Implorou o rapaz.

Aflita com a situação do filho caçula, Emerenciana criou coragem e abordou o marido para tratar desse delicado assunto: “Francisco, o que você acha de dar uma oportunidade a Antônio de escolher a carreira que ele deseja seguir?” Instou a mulher. “Como assim Merenciana? Num já está resolvido? Ele vai ser padre!” Afirmou o major. Titubeando, a mulher tentou argumentar: “Mas...” “Não tem mais nem menos, mulher! Eu já decidi e pronto!” Encerrou o marido. Triste, a mãe comunicou ao filho sobre a conversa com seu pai e recomendou ao rapaz que se conformasse, afinal, iria servir a Deus, acrescentando que não deveria contestar a vontade do pai.

Mesmo a contragosto o rapaz retornou ao Seminário para continuar seus estudos. Dedicado e inteligente, Antônio se destacava entre os alunos daquela escola religiosa, sempre laureado com avaliações de destaque. Com tendência para o aprendizado de línguas, o seminarista se tornou um notório latinista; sempre que seus colegas tinham dificuldade em traduzir ou escrever na língua do Lácio a ele recorriam. Após cursar Filosofia e Teologia o seminarista, Antônio Joaquim Flor, foi ordenado padre em 1911. Designado pelo bispo da diocese de Cajazeiras, foi nomeado vigário da paróquia de Santa Maria Madalena em Teixeira/PB, onde ficou até 1922, quando foi designado para a paróquia de Nossa Senhora do Bom Conselho na cidade de Princesa. Ali chegou no auge da efervescência cultural e política daquela próspera cidade serrana.

 O novo pároco era um homem alto, loiro, de cabelos escorridos, voz potente, austero e, às vezes, até grosseiro no falar e no trato com as pessoas. Em Princesa, passaram a chamá-lo de padre Flor. O novo vigário apresentou-se ao coronel José Pereira Lima e às demais autoridades civis e militares da cidade, e logo imprimiu novos modos e costumes na condução, tanto dos ofícios religiosos, quanto na forma de tratar com o povo e com os poderosos do lugar. Assumiu a Paróquia e, além de não se submeter às ordens do coronel, agindo com autonomia, o padre Flor tinha pulso firme em suas determinações demonstrando comportamento severo e, às vezes, arrogante até na lide religiosa.

Não bastasse isso, o novo pároco recusou a oferta de morar na Casa Paroquial, imóvel de propriedade do coronel, preferindo alojar-se em uma casa afastada da cidade, que mandou reformar para esse fim. Era um imóvel amplo com muitos quartos e com um jardim do lado esquerdo. Do lado direito da casa, um grande curral onde abrigava o gado leiteiro que trouxe de sua propriedade em Teixeira. Para servi-lo, o padre contratou alguns empregados entre eles um jovem negro chamado Pedro para cuidar do gado. Para governar a casa mandou vir, de um sítio próximo ao povoado de Curral Velho, uma jovem mulher sua conhecida.

A governanta, chamada Alexandrina, era uma mulata de seus trinta anos de idade, desprovida de beleza facial o que era compensado por um corpo bem delineado. Dissonante de seu bom humor era uma mulher muito autoritária. “Xanda”, como a chamavam, mandava em tudo e em todos, inclusive no padre. Para os que conviviam na Casa Paroquial, o cenário se apresentava como se, o sacerdote, fosse refém da governanta, pois, apesar de seu temperamento forte e arrogante, padre Flor se submetia obediente às determinações de Xanda, sem questioná-la e sem desfazer o que ela ordenava. A sintonia entre os dois era perfeita.

Se na Paróquia a vida era conturbada, no solar do padre Flor tudo corria muito tranquilo. As dificuldades do ministério religioso se atinham ao estranhamento do cura d’almas com o coronel Zé Pereira. Nessa época, o coronel, já desafeto do cangaceiro Lampião, o perseguia pelas terras nas imediações de Princesa. Já o padre Flor, amigo e parente distante de Marcolino Florentino Diniz, do Povoado de Patos – este coiteiro de cangaceiros e, portanto, mal visto pelo tio e cunhado Zé Pereira -, quando ia celebrar ali, na capela de São Sebastião, se refestelava à mesa de Marcolino por quem tinha muito apreço. Essa amizade punha o padre mais distante ainda do poderoso coronel.

Eram poucas as pessoas que frequentavam a casa do vigário de Princesa. Arredio e de poucos amigos – como que para se defender de algo que não pudesse vir a público -, o padre Flor não gostava de intimidades. Mesmo mantendo essa privacidade, para espanto da comunidade religiosa de Princesa, descobriu-se que a governanta, Xanda, estava em adiantado estado de gravidez. Já eram muitos e corrosivos os comentários desabonadores à conduta do sacerdote quando diziam que o padre Flor era muito solícito no trato com as mulheres. Sob o estímulo de seus desafetos, a notícia da gravidez da governanta logo tomou conta da rua. Era só no que se falava. Sabedor dessa repercussão negativa, o vigário, com o intuito de estancar esse falatório, mais que depressa celebrou, ali mesmo em seu casarão, o casamento de Xanda com Pedro, o negro que cuidava de seu gado.

No domingo seguinte ao enlace da governanta, o padre proferiu, do púlpito da Igreja de Princesa, um violento sermão condenando aqueles que “caluniam e difamam a vida das pessoas de bem”. Mesmo sem ter a certeza de que o coronel participara disso, mandou um recado velado, quando disparou: “Aqueles que se dizem líderes e que apontam seu dedo sujo contra os outros, quando estimulam seus pariceiros a caluniar e difamar, serão submetidos ao peso da justiça Divina!” e prosseguiu, agora em latim: “Calumniari est falsa crimina intendere!” (Caluniar é imputar falsos delitos!) e encerrou: “Abi hinc in malam crucem!” (Vai-te pro inferno!). A guerra estava declarada. Após essa fala contundente do padre Flor, o coronel deflagrou uma campanha surda para desmerecer, ainda mais, o vigário.

Diziam, a boca pequena, que o padre Flor, sempre que era procurado por uma mulher em busca de orientação ou para se confessar, ele passava-lhe as mãos em seu colo e perguntava: “Cadê o escapulário?” Falavam também que, no confessionário, enquanto “sapecava” na escuta das revelações de culpas dos homens, se demorava nas confissões auriculares das mulheres, estimulando-as sobre os pecados da carne, e que se comprazia com isso. Eram tantos os comentários desabonadores contra o vigário, que até uma piada corria solta pelas ruas da cidade, quando diziam em tom de galhofa: “Se a batina do padre Flor fosse de bronze, todo mundo escutaria as badaladas de longe!”. Isso irritava sobremaneira o cura que, a cada dia, ficava mais violento em suas prédicas durante as missas que celebrava. Do púlpito, falava ferozmente, tal qual um animal acuado. E, o coronel, se deliciava com tudo isso.

Enquanto corriam esses comentários “maldosos”, Xanda deu à luz uma menina que, no dizer dos desafetos do padre, era tão branca que se confundia com os alvos lençóis que cobriam a mãe em seu resguardo. Mesmo assim, o padre Flor não se resguardava. Em vingança, para irritar Zé Pereira, o sacerdote celebrou, na capela de São Sebastião no Povoado de Patos, em agosto de 1924, o casamento do cangaceiro Meia-Noite – inimigo do coronel - com Zulmira. Essa foi a gota d’água em sua relação com Zé Pereira, que usou de seu poder junto às autoridades estaduais para intercederem junto ao bispo metropolitano da Parahyba, dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques para transferir o padre para outra freguesia.

Sem conseguir a remoção do vigário, o coronel resignou-se e se manteve afastado do padre e este, cuidando da Igreja e da já numerosa prole de Xanda – entre 1924 e 1930, a governanta teve mais três filhos e, como diziam as más línguas: “todos branquinhos que nem leite”. Veio a Guerra de Princesa, deflagrada em fevereiro de 1930, o que se prolongou até agosto daquele ano, período em que, tanto os comentários acerca do comportamento sexual do padre e sua briga com o chefe da cidade, arrefeceram. Durante essa trégua, o padre Flor viveu recolhido à sua moradia, celebrando pouco e sem envolvimento algum no conflito.

Em outubro de 1930, o coronel Zé Pereira foi defenestrado do poder pela Revolução vitoriosa daquele ano e teve de evadir-se de Princesa para não ser preso.  Em 1931, o padre Flor, aos 45 anos de idade, já acometido de uma doença renal que lhe minava as forças, quando proferia um sermão contundente, ainda em defesa de sua honra, teve uma crise de apoplexia e caiu morto em pleno púlpito durante a celebração de uma missa. Foi enterrado na sacristia da Igreja Matriz de Princesa, onde desempenhou parte de seu conturbado ministério sacerdotal. O cortejo fúnebre, atendendo a um pedido seu em vida, foi acompanhado pelo som da matraca que anuncia a morte de Jesus Cristo na Semana Santa.

Sem herdeiros necessários, o padre Flor teve o cuidado em deixar, guardado no cofre, um documento manifestando sua vontade quanto ao destino de seus bens, no qual estabelecia, em detalhes, o que deveria ser feito com o seu patrimônio após sua morte. Aberto seu testamento, escrito de próprio punho e registrado em Cartório, estava anotado, no cabeçalho, em latim: “Heredis institutio est caput et fundamentum testamenti” (A instituição dos herdeiros é o princípio e fundamento do testamento). Em seguida, lavrado em detalhes, o vigário deixava todos os seus bens consignados em favor dos quatro filhos da governanta, e fechava o documento declarando que são eles: ”Heres suus et necessarius” (Herdeiros por si e necessários). Guiada por um destino previamente traçado, a controversa vida do padre Flor foi tão forte e movimentada quanto exigia seu temperamento.



 

 

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