Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
A batina de bronze
Até o início do século XX, os filhos das famílias abastadas
tinham seus destinos decididos pelos pais. Via de regra, os rebentos do sexo
masculino eram designados para três carreiras consideradas essenciais no
cenário da sociedade daquele tempo: eclesiástica, militar e jurídica. Já as
filhas mulheres, no seio das numerosas proles dos potentados da época, educadas
para as prendas do lar, eram oferecidas em casamento para os filhos varões dos
amigos e compadres do mesmo nível social.
Os grandes proprietários de terras, pecuaristas e
agricultores, eram chamados de “coronéis” ou “majores” e tinham total poder de
mando nos limites de seus feudos. Decidiam tudo de forma inquestionável, principalmente
quanto ao destino dos filhos. Com Francisco Joaquim Flor, mais conhecido como
major “Flor”, não era diferente. Casado com dona Emerenciana o prolífico casal
tinha 8 filhos: 5 homens e 3 mulheres.
O major Flor era dono de vasta propriedade no sertão da Paraíba
nos domínios do município de Piancó, uma fazenda banhada, em grande parte, pelo
rio de mesmo nome. Morava numa grande casa de alvenaria que tinha, encostado, um
curral para o gado leiteiro. Além da mulher e dos muitos filhos, o fazendeiro
agregava também criados, alguns deles ex-escravos pertencentes ao seu falecido
pai. O major era um galegão alto e forte de quarenta e poucos anos, portador de
uma calvície acentuada e dono de um penetrante olhar azul. Emerenciana era uma
mulher um pouco mais jovem que o marido, também branca, de estatura mediana,
rechonchuda de corpo, dona de um largo sorriso e de excelente temperamento.
Logo que os filhos mais velhos começaram a ficar taludos, o
major Flor providenciou uma professora particular para ensiná-los a ler e
escrever, inclusive às meninas – o que era raro naquele tempo quando as fêmeas
eram destinadas apenas às coisas do lar. A professora, Iracema, era uma
solteirona que, para o exercício do ofício de lente dos filhos do fazendeiro
passou a morar na Casa Grande como se fora da família. Dona “Cema”, como era
chamada pelas crianças, ministrava aulas, de manhã aos meninos e, à tarde, às
meninas. Era assim, tudo separado.
Alfabetizados, práticos em álgebra e aptos na leitura e na
escrita além de noções elementares sobre ciências, história e geografia, os
filhos do major, prontos para ingressarem no ensino secundário, foram
designados para estudarem no Seminário Diocesano de Olinda/PE e, dali, numa
tiragem feita pelo pai, seguiriam o destino traçado por este. Corria o ano de
1900 quando o fazendeiro resolveu encaminhar os filhos. O mais velho, Francisco,
foi despachado para o Rio de Janeiro para fazer a Escola Militar da Praia
Vermelha. O segundo, Luís, ficou no Recife onde iniciou o curso de Ciências
Jurídicas na Faculdade de Direito, a mesma em que estudou o poeta baiano Castro
Alves. João e Augusto que sempre se mostraram avessos às letras, voltaram para
casa com o encargo de auxiliar e dar continuidade ao ofício do pai.
O mais novo deles - o mais ativo de todos - foi designado
pelo major para ser padre e continuou no Seminário de Olinda. Ainda na
puberdade, Antônio resignou-se à vontade do pai e continuou ali seus estudos.
Dois anos após essa determinação paterna, em 1902, já um rapaz de 16 anos
Antônio voltou para casa em férias escolares e suplicou à mãe para que
convencesse o pai de que não tinha vocação sacerdotal, não queria ser padre.
“Meu filho, você sabe como é seu pai quando toma decisões: não volta atrás!” Disse-lhe
dona Emerenciana. “Mamãe, eu não tenho vocação, eu não quero isso pra mim.
Jamais serei um bom padre!” Implorou o rapaz.
Aflita com a situação do filho caçula, Emerenciana criou
coragem e abordou o marido para tratar desse delicado assunto: “Francisco, o
que você acha de dar uma oportunidade a Antônio de escolher a carreira que ele
deseja seguir?” Instou a mulher. “Como assim Merenciana? Num já está resolvido?
Ele vai ser padre!” Afirmou o major. Titubeando, a mulher tentou argumentar:
“Mas...” “Não tem mais nem menos, mulher! Eu já decidi e pronto!” Encerrou o
marido. Triste, a mãe comunicou ao filho sobre a conversa com seu pai e recomendou
ao rapaz que se conformasse, afinal, iria servir a Deus, acrescentando que não
deveria contestar a vontade do pai.
Mesmo a contragosto o rapaz retornou ao Seminário para
continuar seus estudos. Dedicado e inteligente, Antônio se destacava entre os
alunos daquela escola religiosa, sempre laureado com avaliações de destaque. Com
tendência para o aprendizado de línguas, o seminarista se tornou um notório
latinista; sempre que seus colegas tinham dificuldade em traduzir ou escrever
na língua do Lácio a ele recorriam. Após cursar Filosofia e Teologia o
seminarista, Antônio Joaquim Flor, foi ordenado padre em 1911. Designado pelo
bispo da diocese de Cajazeiras, foi nomeado vigário da paróquia de Santa Maria
Madalena em Teixeira/PB, onde ficou até 1922, quando foi designado para a
paróquia de Nossa Senhora do Bom Conselho na cidade de Princesa. Ali chegou no
auge da efervescência cultural e política daquela próspera cidade serrana.
O novo pároco era um
homem alto, loiro, de cabelos escorridos, voz potente, austero e, às vezes, até
grosseiro no falar e no trato com as pessoas. Em Princesa, passaram a chamá-lo
de padre Flor. O novo vigário apresentou-se ao coronel José Pereira Lima e às
demais autoridades civis e militares da cidade, e logo imprimiu novos modos e
costumes na condução, tanto dos ofícios religiosos, quanto na forma de tratar
com o povo e com os poderosos do lugar. Assumiu a Paróquia e, além de não se
submeter às ordens do coronel, agindo com autonomia, o padre Flor tinha pulso
firme em suas determinações demonstrando comportamento severo e, às vezes,
arrogante até na lide religiosa.
Não bastasse isso, o novo pároco recusou a oferta de morar na
Casa Paroquial, imóvel de propriedade do coronel, preferindo alojar-se em uma
casa afastada da cidade, que mandou reformar para esse fim. Era um imóvel amplo
com muitos quartos e com um jardim do lado esquerdo. Do lado direito da casa, um
grande curral onde abrigava o gado leiteiro que trouxe de sua propriedade em
Teixeira. Para servi-lo, o padre contratou alguns empregados entre eles um
jovem negro chamado Pedro para cuidar do gado. Para governar a casa mandou vir,
de um sítio próximo ao povoado de Curral Velho, uma jovem mulher sua conhecida.
A governanta, chamada Alexandrina, era uma mulata de seus
trinta anos de idade, desprovida de beleza facial o que era compensado por um
corpo bem delineado. Dissonante de seu bom humor era uma mulher muito autoritária.
“Xanda”, como a chamavam, mandava em tudo e em todos, inclusive no padre. Para
os que conviviam na Casa Paroquial, o cenário se apresentava como se, o
sacerdote, fosse refém da governanta, pois, apesar de seu temperamento forte e
arrogante, padre Flor se submetia obediente às determinações de Xanda, sem
questioná-la e sem desfazer o que ela ordenava. A sintonia entre os dois era
perfeita.
Se na Paróquia a vida era conturbada, no solar do padre Flor
tudo corria muito tranquilo. As dificuldades do ministério religioso se atinham
ao estranhamento do cura d’almas com o coronel Zé Pereira. Nessa época, o
coronel, já desafeto do cangaceiro Lampião, o perseguia pelas terras nas
imediações de Princesa. Já o padre Flor, amigo e parente distante de Marcolino
Florentino Diniz, do Povoado de Patos – este coiteiro de cangaceiros e,
portanto, mal visto pelo tio e cunhado Zé Pereira -, quando ia celebrar ali, na
capela de São Sebastião, se refestelava à mesa de Marcolino por quem tinha
muito apreço. Essa amizade punha o padre mais distante ainda do poderoso
coronel.
Eram poucas as pessoas que frequentavam a casa do vigário de
Princesa. Arredio e de poucos amigos – como que para se defender de algo que
não pudesse vir a público -, o padre Flor não gostava de intimidades. Mesmo
mantendo essa privacidade, para espanto da comunidade religiosa de Princesa, descobriu-se
que a governanta, Xanda, estava em adiantado estado de gravidez. Já eram muitos
e corrosivos os comentários desabonadores à conduta do sacerdote quando diziam
que o padre Flor era muito solícito no trato com as mulheres. Sob o estímulo de
seus desafetos, a notícia da gravidez da governanta logo tomou conta da rua.
Era só no que se falava. Sabedor dessa repercussão negativa, o vigário, com o
intuito de estancar esse falatório, mais que depressa celebrou, ali mesmo em
seu casarão, o casamento de Xanda com Pedro, o negro que cuidava de seu gado.
No domingo seguinte ao enlace da governanta, o padre
proferiu, do púlpito da Igreja de Princesa, um violento sermão condenando
aqueles que “caluniam e difamam a vida das pessoas de bem”. Mesmo sem ter a
certeza de que o coronel participara disso, mandou um recado velado, quando
disparou: “Aqueles que se dizem líderes e que apontam seu dedo sujo contra os
outros, quando estimulam seus pariceiros a caluniar e difamar, serão submetidos
ao peso da justiça Divina!” e prosseguiu, agora em latim: “Calumniari est falsa crimina intendere!” (Caluniar é imputar
falsos delitos!) e encerrou: “Abi hinc in
malam crucem!” (Vai-te pro inferno!). A guerra estava declarada. Após essa
fala contundente do padre Flor, o coronel deflagrou uma campanha surda para
desmerecer, ainda mais, o vigário.
Diziam, a boca pequena, que o padre Flor, sempre que era
procurado por uma mulher em busca de orientação ou para se confessar, ele
passava-lhe as mãos em seu colo e perguntava: “Cadê o escapulário?” Falavam
também que, no confessionário, enquanto “sapecava” na escuta das revelações de
culpas dos homens, se demorava nas confissões auriculares das mulheres,
estimulando-as sobre os pecados da carne, e que se comprazia com isso. Eram
tantos os comentários desabonadores contra o vigário, que até uma piada corria
solta pelas ruas da cidade, quando diziam em tom de galhofa: “Se a batina do
padre Flor fosse de bronze, todo mundo escutaria as badaladas de longe!”. Isso
irritava sobremaneira o cura que, a cada dia, ficava mais violento em suas
prédicas durante as missas que celebrava. Do púlpito, falava ferozmente, tal
qual um animal acuado. E, o coronel, se deliciava com tudo isso.
Enquanto corriam esses comentários “maldosos”, Xanda deu à
luz uma menina que, no dizer dos desafetos do padre, era tão branca que se
confundia com os alvos lençóis que cobriam a mãe em seu resguardo. Mesmo assim,
o padre Flor não se resguardava. Em vingança, para irritar Zé Pereira, o
sacerdote celebrou, na capela de São Sebastião no Povoado de Patos, em agosto
de 1924, o casamento do cangaceiro Meia-Noite – inimigo do coronel - com
Zulmira. Essa foi a gota d’água em sua relação com Zé Pereira, que usou de seu
poder junto às autoridades estaduais para intercederem junto ao bispo
metropolitano da Parahyba, dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques para transferir
o padre para outra freguesia.
Sem conseguir a remoção do vigário, o coronel resignou-se e
se manteve afastado do padre e este, cuidando da Igreja e da já numerosa prole
de Xanda – entre 1924 e 1930, a governanta teve mais três filhos e, como diziam
as más línguas: “todos branquinhos que nem leite”. Veio a Guerra de Princesa, deflagrada
em fevereiro de 1930, o que se prolongou até agosto daquele ano, período em
que, tanto os comentários acerca do comportamento sexual do padre e sua briga
com o chefe da cidade, arrefeceram. Durante essa trégua, o padre Flor viveu recolhido
à sua moradia, celebrando pouco e sem envolvimento algum no conflito.
Em outubro de 1930, o coronel Zé Pereira foi defenestrado do
poder pela Revolução vitoriosa daquele ano e teve de evadir-se de Princesa para
não ser preso. Em 1931, o padre Flor,
aos 45 anos de idade, já acometido de uma doença renal que lhe minava as
forças, quando proferia um sermão contundente, ainda em defesa de sua honra,
teve uma crise de apoplexia e caiu morto em pleno púlpito durante a celebração
de uma missa. Foi enterrado na sacristia da Igreja Matriz de Princesa, onde
desempenhou parte de seu conturbado ministério sacerdotal. O cortejo fúnebre,
atendendo a um pedido seu em vida, foi acompanhado pelo som da matraca que
anuncia a morte de Jesus Cristo na Semana Santa.
Sem herdeiros necessários, o padre Flor teve o cuidado em
deixar, guardado no cofre, um documento manifestando sua vontade quanto ao
destino de seus bens, no qual estabelecia, em detalhes, o que deveria ser feito
com o seu patrimônio após sua morte. Aberto seu testamento, escrito de próprio
punho e registrado em Cartório, estava anotado, no cabeçalho, em latim: “Heredis institutio est caput et fundamentum
testamenti” (A instituição dos herdeiros é o princípio e fundamento do
testamento). Em seguida, lavrado em detalhes, o vigário deixava todos os seus
bens consignados em favor dos quatro filhos da governanta, e fechava o
documento declarando que são eles: ”Heres
suus et necessarius” (Herdeiros por si e necessários). Guiada por um
destino previamente traçado, a controversa vida do padre Flor foi tão forte e
movimentada quanto exigia seu temperamento.
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