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domingo, 14 de abril de 2024

Domingo eu conto

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

A Carta Rasgada

Xanduzinha era bela igual um botão de flor a desabrochar. Sem gongorismos, podemos dizer que, a moça, além de ser a flor mais bela e mais tenra do lugar chamado Patos, era também o melhor partido para os jovens casadoiros daquele tempo. Terminava o ano de 1917 e, Alexandrina, a quem chamavam carinhosamente de Xanduzinha, acabara de completar 15 anos de idade. O début da moça causou o maior frisson nos meios sociais das cidades de Princesa, na Paraíba e, Triunfo em Pernambuco. Seu pai, o major Floro – em que pese morar na fazenda que tinha em Patos – tinha também uma espaçosa casa mobiliada em Triunfo, onde passava as festas de fim de ano com a esposa, Leonor, e a filha, Xanduzinha. Foi lá que se deu a festa de apresentação da única filha à sociedade, como debutante.

Era um domingo, 4 de novembro de 1917. No dia seguinte, Xanduzinha completava 15 anos de idade. A festa ocorreu na casa do major, para onde acorreram os sobrenomes mais ilustres das cidades de Princesa e de Triunfo. Floro era um rico proprietário de terras, criador de gado, comerciante e industrial. Em Patos, o major mantinha, além de uma usina para beneficiar algodão, engenhos de cana de açúcar e, como a joia da cora de suas atividades econômicas, uma fábrica de vinhos finos onde produzia o famoso “Vinho Velho de Fructas”, bebida nobre que era comercializada nas praças do Recife e do Rio de Janeiro e que extrapolava os limites nacionais quando era exportada até para alguns países da Europa. Toda a parafernália que movia esses empreendimentos era alimentada por uma pequena usina geradora de energia elétrica.

Na festa, Xanduzinha se apresentou envergando um rico vestido branco comprado na França, calçada em sapatos de saltos altos vindos da Itália e maquilada e penteada por um profissional do ramo, trazido do Rio de Janeiro. Depois do lauto jantar, a valsa. A dança foi aberta pela “Valsa do Imperador” de Johann Strauss, executada por músicos profissionais vindos do Recife, quando a debutante dançou com o pai. Depois, os casais da alta sociedade tomaram posição e dançaram a noite toda na sala principal da casa do major. A exuberância e o frescor de Xanduzinha chamavam a atenção de todos os rapazes fidalgos que lá se encontravam. Porém, um deles se fez mais atento aos movimentos da moça, era Severiano, um jovem estudante que acabara de ser classificado para ingressar no curso de Medicina em Salvador, na Bahia.

Severiano, um rapaz bonito e de família também ilustre, acabara de completar 21 anos de idade e, ao ver Xanduzinha, imediatamente apaixonou-se pela moça. A troca de olhares encorajou o rapaz a convidá-la para seu par numa contradança, oportunidade em que conversaram amenidades, porém, Severiano, sempre insinuando estar interessado na jovem. Ao final da dança, o moço informou que estava de viagem pronta para Salvador na Bahia, aonde iria cursar Medicina, e perguntou se poderia enviar-lhe uma carta declarando seus sentimentos. Inocente que era, e lisonjeada com a corte do mancebo, Xanduzinha, com ar de timidez, assentiu quanto à proposta do rapaz. No resto da noite não dançaram mais, no entanto, era constante a troca de olhares.

Finda a festa, a família retornou a Patos. Em casa, dona Leonor perguntou à filha: “Quem era aquele rapaz com quem dançaste a contradança, e que não parava de conversar contigo? O que tanto ele te dizia?” “Nada, mamãe, coisas banais...” Respondeu a moça. “Nada mesmo? Vi-te tão interessada...” Insistiu a mãe. “Olha, mamãe, eu não estou interessada em rapaz algum. Eu gostaria mesmo era de estudar no Recife, mas sei que papai não permite. Mas também, não quero me casar”. Encerrou Xanduzinha. “Ora, minha filha, tu sabes que um dia terás de casar-se. És nossa única filha e tens a obrigação de dar um herdeiro para cuidar dos bens de teu pai”, insistiu Leonor. “Por favor, mamãe, eu não quero falar sobre isso”, atermou a moça.

Mas, a história não estava encerrada. Por debaixo dos panos, dona Leonor articulava para viabilizar o casamento da filha com o sobrinho de seu marido, um jovem rapaz, de 22 anos de idade, filho do coronel Marçal, que era irmão do major Floro. O nome dele era Marcolino. Não era tão bonito quanto Severiano, mas guardava, além de alguns traços de beleza, uma capacidade de relacionar-se com as pessoas porque, falastrão e muito encartado, enfim, um conquistador de atenções. O major não queria nem ouvir falar num relacionamento de sua filha com o sobrinho. Tinha-o na conta de pessoa a que chamavam de “sem futuro”. Na verdade, mesmo na pouca idade, Marcolino já apresentava pendores para o hedonismo: não era muito chegado às obrigações do trabalho nem dos estudos, e adorava uma farra. Mesmo assim, o pai, Marçal, o mandou para estudar no Recife. O jovem ingressou na Faculdade de Odontologia, mas logo desistiu de ser doutor e voltou para casa, de onde sempre saía para as orgias em Princesa e também em Triunfo e Vila Bela em Pernambuco.

Mesmo ante a ojeriza do major, dona Leonor plantou na cabeça da filha que, o melhor partido para um futuro casamento, era o primo Marcolino. E este, começou a investir na prima. Mesmo sem a oficialização de um namoro de verdade, estavam sempre juntos a conversar e, Xanduzinha, meiga e inexperiente, tudo indicava que começava a cair na lábia do rapaz. A moça, prendada que era, passava os dias a bordar e estudar. Para tanto, tinha uma professora particular, vinda de Princesa, para ensinar-lhe em casa. O pai não permitia que a filha frequentasse escolas formais nem em Princesa nem em Triunfo. Mensalmente, vinha do Recife, uma professora para ministrar-lhe o idioma francês – Xanduzinha era descendente de franceses pelo ramo dos Douetts e era sobrinha do padre Laurindo Douetts (irmão de sua mãe Leonor), que foi vigário e prefeito de Triunfo - e, em alguns finais de semana, acompanhada pela mãe, Xanduzinha ia receber aulas de postura, de boas maneiras e de canto orfeônico com as freiras alemãs no Colégio Stella Maris na cidade de Triunfo.

Em janeiro de 1918, num dia de sábado, uma semana antes de sua partida para a Bahia, Severiano se encontrou com Marcolino, na feira livre de Princesa, e incumbiu o amigo e primo, de entregar uma carta endereçada à jovem Xanduzinha. Solícito como sempre, Marcolino dispôs-se a cumprir a tarefa: “Pode deixar, Severiano, esta missiva já está nas mãos dela. Mas, do que se trata?” Perguntou o rapaz. “Ora, Marcolino, deixe de ser curioso, rapaz. Isso é assunto meu e dela”, encerrou o desavisado Severiano. Não sabia, o futuro médico, que o portador da carta já arrastava a asa para sua preferida. Marcolino despediu-se de Severiano e partiu para casa, em Patos. No caminho, tomado por intensa curiosidade e movido pela fraqueza de caráter, o rapaz, abriu o envelope e leu a carta. No papel, além de juras de amor, estava contido um pedido de casamento de Severiano a Xanduzinha: “Estou indo para Salvador, estudar medicina, mas, prometo, quando voltar, me casar com você”.

Enxergando nesse documento uma ameaça de perder a oportunidade de namorar e casar com a prima, Marcolino rasgou a carta e jogou fora na mesma estrada que o levava de volta para casa. Chegando a Patos, comunicou ao pai que iria pedir a mão de Xanduzinha em casamento. O coronel Marçal, irmão do major Floro, não via com muita simpatia essa decisão, mas, concordando com o filho, partiram, os dois, para o casarão do major. Lá chegando, foram bem recebidos. “Senta Marçal”, disse Floro ao irmão, apontando para um grande sofá existente na sala de estar. “A que devo essa inesperada visita?” Perguntou o major. “Floro”, começou Marçal e, após pigarrear, continuou: “Estou aqui com meu filho Marcolino para te pedir a mão de Xanduzinha em casamento para ele. O que me dizes?” “Ora, Marçal, você me pega de surpresa! E esses meninos já estão namorando?” Ao dizer isso, o major chamou, à sala, sua esposa e sua filha, e inquiriu a mulher: “Leonor, você já sabia disso?” “Não homem, não.” “E você, Xandu, o que me diz? Seu tio veio pedir sua mão em casamento para Marcolino”, perguntou o pai. 

Para surpresa de todos, sem titubear, a moça respondeu: “Se meu pai permitir, eu aceito”.  O major Floro já sabia do interesse do jovem acadêmico de medicina, Severiano, por Xanduzinha e fazia gosto num possível enlace matrimonial dela com aquele jovem promissor. Em face disso, tentou demovê-la desse novel compromisso: “Mas, minha filha, você não é muito jovem para casar-se?” Arguiu o velho, ao que Leonor interveio antes que a filha respondesse: “Ora, Floro, eu não me casei contigo com 16 anos?” estava claro que, tudo isso, tinha o dedo da mulher. “Bem, se é o seu desejo, eu consinto”, disse o pai, visivelmente contrariado.  A partir daí, sob os auspícios de dona Leonor, tudo foi encaminhado para a realização das núpcias, o mais breve possível, o que aconteceu em julho daquele ano de 1918.

Lá longe, na Bahia, qual não foi a surpresa de Severiano quando, ainda à espera de uma resposta à sua carta de amor, recebeu a notícia de que sua prenda havia-se casado com outro. Desgostoso, depois disso, o quase médico, veio poucas vezes a Princesa e, quando vinha, se internava na fazenda de seu pai em Alagoa Nova (atual Manaíra). Logo que formou-se médico, Severiano casou-se com a jovem professora soteropolitana, Joselita Lopes, uma moça da alta sociedade baiana. Casado, veio residir em Princesa, onde clinicou - como o único médico da região - por mais de 50 anos. Severiano só veio saber da “carta rasgada” quando, por ocasião de suas estadas em Patos de Irerê, em 1926, para tratar de um ferimento à bala no pé direito do cangaceiro Lampião, que se “acoitava” na casa de Marcolino.

Xanduzinha e Marcolino viveram felizes. Ele, um boêmio, mais tarde teve vida atribulada por envolvimento com as coisas da política, da Guerra de Princesa e também por haver sido um dos principais coiteiros do bando de Lampião. Perdulário, morreu pobre em 1980. Ela, partiu mais cedo, aos 72 anos, em fevereiro de 1975. O casal teve três filhos: Wilson, Maria Augusta e Antônio. Severiano faleceu em João Pessoa, aos 84 anos, em 1980. Na verdade, em que pese as circunstâncias em que o relacionamento dos dois prosperou, era, Marcolino, o verdadeiro amor de Xanduzinha, amor esse, que foi imortalizado pela canção de autoria de Humberto Teixeira e cantada por Luiz Gonzaga: “Xanduzinha”, que reproduzimos a seguir:

 

O caboclo Marcolino

Tinha oito boi zebu

Uma casa com varanda

Dando pro Norte e pro Sul

Seu paiol tava cheinho

De feijão e de andu

Sem contar com mais uns cobres

Lá no fundo do baú

Marcolino dava tudo

Por um cheiro de Xandu

Ai, Xanduzinha

Xanduzinha minha flô

Como foi que você deixou

Tanta riqueza pelo meu amô?

Ai, Xanduzinha

Xanduzinha meu xodó

Eu sou pobre mas você sabe

Que meu amô vale mais que ouro em pó.

 


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