Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
A Carta Rasgada
Xanduzinha era bela igual um botão de flor a desabrochar. Sem
gongorismos, podemos dizer que, a moça, além de ser a flor mais bela e mais
tenra do lugar chamado Patos, era também o melhor partido para os jovens
casadoiros daquele tempo. Terminava o ano de 1917 e, Alexandrina, a quem
chamavam carinhosamente de Xanduzinha, acabara de completar 15 anos de idade. O
début da moça causou o maior frisson nos meios sociais das cidades de
Princesa, na Paraíba e, Triunfo em Pernambuco. Seu pai, o major Floro – em que
pese morar na fazenda que tinha em Patos – tinha também uma espaçosa casa
mobiliada em Triunfo, onde passava as festas de fim de ano com a esposa,
Leonor, e a filha, Xanduzinha. Foi lá que se deu a festa de apresentação da
única filha à sociedade, como debutante.
Era um domingo, 4 de novembro de 1917. No dia seguinte,
Xanduzinha completava 15 anos de idade. A festa ocorreu na casa do major, para
onde acorreram os sobrenomes mais ilustres das cidades de Princesa e de
Triunfo. Floro era um rico proprietário de terras, criador de gado, comerciante
e industrial. Em Patos, o major mantinha, além de uma usina para beneficiar
algodão, engenhos de cana de açúcar e, como a joia da cora de suas atividades
econômicas, uma fábrica de vinhos finos onde produzia o famoso “Vinho Velho de
Fructas”, bebida nobre que era comercializada nas praças do Recife e do Rio de
Janeiro e que extrapolava os limites nacionais quando era exportada até para
alguns países da Europa. Toda a parafernália que movia esses empreendimentos
era alimentada por uma pequena usina geradora de energia elétrica.
Na festa, Xanduzinha se apresentou envergando um rico vestido
branco comprado na França, calçada em sapatos de saltos altos vindos da Itália
e maquilada e penteada por um profissional do ramo, trazido do Rio de Janeiro.
Depois do lauto jantar, a valsa. A dança foi aberta pela “Valsa do Imperador”
de Johann Strauss, executada por músicos profissionais vindos do Recife, quando
a debutante dançou com o pai. Depois, os casais da alta sociedade tomaram
posição e dançaram a noite toda na sala principal da casa do major. A
exuberância e o frescor de Xanduzinha chamavam a atenção de todos os rapazes
fidalgos que lá se encontravam. Porém, um deles se fez mais atento aos
movimentos da moça, era Severiano, um jovem estudante que acabara de ser classificado
para ingressar no curso de Medicina em Salvador, na Bahia.
Severiano, um rapaz bonito e de família também ilustre,
acabara de completar 21 anos de idade e, ao ver Xanduzinha, imediatamente
apaixonou-se pela moça. A troca de olhares encorajou o rapaz a convidá-la para
seu par numa contradança, oportunidade em que conversaram amenidades, porém,
Severiano, sempre insinuando estar interessado na jovem. Ao final da dança, o
moço informou que estava de viagem pronta para Salvador na Bahia, aonde iria
cursar Medicina, e perguntou se poderia enviar-lhe uma carta declarando seus
sentimentos. Inocente que era, e lisonjeada com a corte do mancebo, Xanduzinha,
com ar de timidez, assentiu quanto à proposta do rapaz. No resto da noite não
dançaram mais, no entanto, era constante a troca de olhares.
Finda a festa, a família retornou a Patos. Em casa, dona
Leonor perguntou à filha: “Quem era aquele rapaz com quem dançaste a
contradança, e que não parava de conversar contigo? O que tanto ele te dizia?”
“Nada, mamãe, coisas banais...” Respondeu a moça. “Nada mesmo? Vi-te tão
interessada...” Insistiu a mãe. “Olha, mamãe, eu não estou interessada em rapaz
algum. Eu gostaria mesmo era de estudar no Recife, mas sei que papai não permite.
Mas também, não quero me casar”. Encerrou Xanduzinha. “Ora, minha filha, tu
sabes que um dia terás de casar-se. És nossa única filha e tens a obrigação de
dar um herdeiro para cuidar dos bens de teu pai”, insistiu Leonor. “Por favor,
mamãe, eu não quero falar sobre isso”, atermou a moça.
Mas, a história não estava encerrada. Por debaixo dos panos,
dona Leonor articulava para viabilizar o casamento da filha com o sobrinho de
seu marido, um jovem rapaz, de 22 anos de idade, filho do coronel Marçal, que
era irmão do major Floro. O nome dele era Marcolino. Não era tão bonito quanto
Severiano, mas guardava, além de alguns traços de beleza, uma capacidade de
relacionar-se com as pessoas porque, falastrão e muito encartado, enfim, um
conquistador de atenções. O major não queria nem ouvir falar num relacionamento
de sua filha com o sobrinho. Tinha-o na conta de pessoa a que chamavam de “sem
futuro”. Na verdade, mesmo na pouca idade, Marcolino já apresentava pendores
para o hedonismo: não era muito chegado às obrigações do trabalho nem dos
estudos, e adorava uma farra. Mesmo assim, o pai, Marçal, o mandou para estudar
no Recife. O jovem ingressou na Faculdade de Odontologia, mas logo desistiu de
ser doutor e voltou para casa, de onde sempre saía para as orgias em Princesa e
também em Triunfo e Vila Bela em Pernambuco.
Mesmo ante a ojeriza do major, dona Leonor plantou na cabeça
da filha que, o melhor partido para um futuro casamento, era o primo Marcolino.
E este, começou a investir na prima. Mesmo sem a oficialização de um namoro de
verdade, estavam sempre juntos a conversar e, Xanduzinha, meiga e inexperiente,
tudo indicava que começava a cair na lábia do rapaz. A moça, prendada que era,
passava os dias a bordar e estudar. Para tanto, tinha uma professora particular,
vinda de Princesa, para ensinar-lhe em casa. O pai não permitia que a filha
frequentasse escolas formais nem em Princesa nem em Triunfo. Mensalmente, vinha
do Recife, uma professora para ministrar-lhe o idioma francês – Xanduzinha era
descendente de franceses pelo ramo dos Douetts e era sobrinha do padre Laurindo
Douetts (irmão de sua mãe Leonor), que foi vigário e prefeito de Triunfo - e,
em alguns finais de semana, acompanhada pela mãe, Xanduzinha ia receber aulas
de postura, de boas maneiras e de canto orfeônico com as freiras alemãs no
Colégio Stella Maris na cidade de Triunfo.
Em janeiro de 1918, num dia de sábado, uma semana antes de
sua partida para a Bahia, Severiano se encontrou com Marcolino, na feira livre
de Princesa, e incumbiu o amigo e primo, de entregar uma carta endereçada à
jovem Xanduzinha. Solícito como sempre, Marcolino dispôs-se a cumprir a tarefa:
“Pode deixar, Severiano, esta missiva já está nas mãos dela. Mas, do que se
trata?” Perguntou o rapaz. “Ora, Marcolino, deixe de ser curioso, rapaz. Isso é
assunto meu e dela”, encerrou o desavisado Severiano. Não sabia, o futuro
médico, que o portador da carta já arrastava a asa para sua preferida.
Marcolino despediu-se de Severiano e partiu para casa, em Patos. No caminho,
tomado por intensa curiosidade e movido pela fraqueza de caráter, o rapaz,
abriu o envelope e leu a carta. No papel, além de juras de amor, estava contido
um pedido de casamento de Severiano a Xanduzinha: “Estou indo para Salvador,
estudar medicina, mas, prometo, quando voltar, me casar com você”.
Enxergando nesse documento uma ameaça de perder a
oportunidade de namorar e casar com a prima, Marcolino rasgou a carta e jogou
fora na mesma estrada que o levava de volta para casa. Chegando a Patos,
comunicou ao pai que iria pedir a mão de Xanduzinha em casamento. O coronel
Marçal, irmão do major Floro, não via com muita simpatia essa decisão, mas,
concordando com o filho, partiram, os dois, para o casarão do major. Lá
chegando, foram bem recebidos. “Senta Marçal”, disse Floro ao irmão, apontando
para um grande sofá existente na sala de estar. “A que devo essa inesperada
visita?” Perguntou o major. “Floro”, começou Marçal e, após pigarrear,
continuou: “Estou aqui com meu filho Marcolino para te pedir a mão de
Xanduzinha em casamento para ele. O que me dizes?” “Ora, Marçal, você me pega
de surpresa! E esses meninos já estão namorando?” Ao dizer isso, o major
chamou, à sala, sua esposa e sua filha, e inquiriu a mulher: “Leonor, você já
sabia disso?” “Não homem, não.” “E você, Xandu, o que me diz? Seu tio veio
pedir sua mão em casamento para Marcolino”, perguntou o pai.
Para surpresa de todos, sem titubear, a moça respondeu: “Se
meu pai permitir, eu aceito”. O major
Floro já sabia do interesse do jovem acadêmico de medicina, Severiano, por
Xanduzinha e fazia gosto num possível enlace matrimonial dela com aquele jovem
promissor. Em face disso, tentou demovê-la desse novel compromisso: “Mas, minha
filha, você não é muito jovem para casar-se?” Arguiu o velho, ao que Leonor
interveio antes que a filha respondesse: “Ora, Floro, eu não me casei contigo
com 16 anos?” estava claro que, tudo isso, tinha o dedo da mulher. “Bem, se é o
seu desejo, eu consinto”, disse o pai, visivelmente contrariado. A partir daí, sob os auspícios de dona
Leonor, tudo foi encaminhado para a realização das núpcias, o mais breve
possível, o que aconteceu em julho daquele ano de 1918.
Lá longe, na Bahia, qual não foi a surpresa de Severiano
quando, ainda à espera de uma resposta à sua carta de amor, recebeu a notícia
de que sua prenda havia-se casado com outro. Desgostoso, depois disso, o quase
médico, veio poucas vezes a Princesa e, quando vinha, se internava na fazenda
de seu pai em Alagoa Nova (atual Manaíra). Logo que formou-se médico, Severiano
casou-se com a jovem professora soteropolitana, Joselita Lopes, uma moça da
alta sociedade baiana. Casado, veio residir em Princesa, onde clinicou - como o
único médico da região - por mais de 50 anos. Severiano só veio saber da “carta
rasgada” quando, por ocasião de suas estadas em Patos de Irerê, em 1926, para
tratar de um ferimento à bala no pé direito do cangaceiro Lampião, que se
“acoitava” na casa de Marcolino.
Xanduzinha e Marcolino viveram felizes. Ele, um boêmio, mais
tarde teve vida atribulada por envolvimento com as coisas da política, da
Guerra de Princesa e também por haver sido um dos principais coiteiros do bando
de Lampião. Perdulário, morreu pobre em 1980. Ela, partiu mais cedo, aos 72
anos, em fevereiro de 1975. O casal teve três filhos: Wilson, Maria Augusta e
Antônio. Severiano faleceu em João Pessoa, aos 84 anos, em 1980. Na verdade, em
que pese as circunstâncias em que o relacionamento dos dois prosperou, era,
Marcolino, o verdadeiro amor de Xanduzinha, amor esse, que foi imortalizado
pela canção de autoria de Humberto Teixeira e cantada por Luiz Gonzaga:
“Xanduzinha”, que reproduzimos a seguir:
O caboclo
Marcolino
Tinha oito
boi zebu
Uma casa com
varanda
Dando pro
Norte e pro Sul
Seu paiol
tava cheinho
De feijão e
de andu
Sem contar
com mais uns cobres
Lá no fundo
do baú
Marcolino
dava tudo
Por um
cheiro de Xandu
Ai,
Xanduzinha
Xanduzinha
minha flô
Como foi que
você deixou
Tanta
riqueza pelo meu amô?
Ai,
Xanduzinha
Xanduzinha
meu xodó
Eu sou pobre
mas você sabe
Que meu amô
vale mais que ouro em pó.
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