Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
A feiticeira, o defunto
e o bêbado
Ela andava com um terço na mão direita em contínuo balbuciar
sem que emitisse som algum e só interrompia esse pseudo movimento de
ventriloquia quando precisava falar de algo ou de alguém. Sidônia era uma
figura esquisita. Morena clara, estatura mediana, magérrima, longos e parcos
cabelos negros a lhes caírem pelas costas, face escavada, olhos grandes
arregalados, nenhum sinal de seios e tudo isso realçado pela esquisita
indumentária composta por um estojo de saia blusa, esta lisa e, a saia, com
estampas extravagantes pela profusão do colorido. Era um misto de índia e
cigana. Figura por demais esquisita, principalmente pela irritação que causava
quando abria a boca, a falar pelos cotovelos, num tom estridente e raivoso.
Sidônia dava conta de tudo o que acontecia no povoado do
Caroço, um arruado com pouco mais de trinta casas esparsas, na beira do rio do
Ouro na extrema do Piauí com a Bahia, pertencente ao município de Corrente. Solteirona,
abominava o sexo e se vangloriava da façanha de nunca haver tido um homem em
sua cama. Para ela, a conjunção carnal - não fora com o intuito de procriar -
era uma pouca vergonha. Sempre que alguma das mocinhas do lugar se preparava
para se casar, Sidônia perguntava logo: “Já
providenciou o lençol?” Ao que as noivas, surpresas, inquiriam: “Que lençol?” “O lençol com o buraco no
meio, minha filha! Não vá me dizer que você vai se apresentar nua despida na
frente de seu marido...!” Essa pergunta, nunca respondida, servia de
chacota.
Em tudo Sidônia se metia, dava conta da vida de todo mundo e
se comprazia com as desgraças alheias. De garra de um galho de pinhão roxo, a
mulher fazia as vezes de rezadeira e se dizia curandeira de quase tudo: mordida
de cobra, espinhela caída, manicunia, mau olhado, achados e perdidos, até
corpo, ela fechava. Além dessas atribuições, a mulher fazia as vezes de
parteira, rezava novenas, encomendava corpos ao além; uma verdadeira panaceia
espiritual. Sua figura dava medo porque, além de diferente, quando falava parecia
ser dona de verdades incontestáveis. Diziam, aos cochichos, que Sidônia era,
além de adivinhona, feiticeira e que trabalhava com apetrechos vindos da Bahia.
Seu prazer mórbido pela tragédia era notório. Quando
acontecia um acidente ou algum caso envolvendo atos de violência e que não
resultava em morte, era patente sua decepção. Mesmo auto investida das
atribuições de curandeira e rezadeira, a mulher, era mesmo igual ave de mau
augúrio, se deleitava com as misérias alheias e rogava pragas aos montes contra
os que ousassem desafiá-la nas suas convicções.
Certo dia, chegou-lhe a notícia de que o chefe político do
arruado, José Maria Belo, estava acamado vítima de um mal que ninguém sabia do
que se tratava. Levado para Xique-Xique na Bahia, foi desenganado pelos médicos
e voltou para morrer em casa. Sidônia resolveu visitar o doente. Aprontou-se
toda, vestiu a saia mais colorida que tinha no seu baú e partiu para a casa de
“seu” Zé Belo. Já levou consigo seus apetrechos de cura e, lá chegando, foi
logo pedindo para ficar a sós com o enfermo.
Desenganado que estava, a única filha do velho não ofereceu
resistência, pois, tudo que dali viesse, seria lucro. A mulher trancou-se no
quarto do homem, um ancião com mais de 80 anos e, no exercício de sua cabala,
balançou seu galho de pinhão roxo em consonância com o balbuciar de orações
ininteligíveis. O velho, ofegante e nem aí para nada, tava só arquejando no
leito de morte. Mesmo assim, numa peleja por uma reação do doente, Sidônia
gastou mais de uma hora e, quando saiu do quarto do doente, demonstrava cansaço
e suava de bica.
“Como está o velho?” Perguntou uma neta que cuidava dele.
“Quase nas mãos de Deus, minha filha,
quase nas mãos de Deus...” Respondeu a rezadeira. “Mas... E as rezas da senhora não servem para lhes dar uma melhora?”
insistiu a moça. “São muitos os pecados
de ‘seu’ Zé Belo! Olhe, minha filha, se ele não matou, mandou; quase todos os
filhos de suas moradeiras, são dele; as terras de sua propriedade foram, quase
todas, usurpadas dos pobres agricultores...” “Então...”, interrompeu a neta: “Vovô
tá no inferno?” “Não, minha filha, a
força da oração é muito grande e, com minhas rezas, ‘seu’ Zé Belo, certamente,
vai para o Purgatório espiar suas culpas e, no tempo certo alcançará o reino da
glória”. Dito isso, da sala onde estavam as duas e mais alguns curiosos,
escutaram um forte barulho, um ronco estrepitoso vindo do quarto onde estava o
enfermo e acorreram, todos, para ali.
Chegados ao aposento do homem, este, imóvel, parecia já morto.
Mais que depressa, Sidônia, antes de rezar, tirou da bolsa um pequeno espelho e
botou junto à boca do moribundo. Depois disso, com ar de desolação, virou-se
para a neta de Zé Belo e disse: “Me dê
uma vela, acesa...” Pôs a vela na mão do velho e começou a rezar e dizer: “Lembre do nome de Jesus! Lembre do nome de
Jesus!” De seus apetrechos, tirou um frasquinho com um líquido amarelado e untou
a testa e o peito do homem que já não se bulia mais. Em pouco mais de uma hora,
chegou o vigário de Corrente que havia sido chamado para dar a extrema-unção.
Padre César, um velho sacerdote ranzinza e da velha guarda da
Igreja, abominava rezadeiras a quem chamava de bruxas, mandou logo a mulher se
afastar de perto do quase defunto, ao que Sidônia, mesmo de cara feia, obedeceu.
O padre sacou do bolso de sua batina um pequeno recipiente de vidro contido de
água benta, aspergiu o corpo e começou a rezar: “Iesus suos infirmorum curandorum gratia discipulos non tantum mist,
sed pro iis peculiare instituit sacramentum: Unctionem scilicet infirmorum”.
Após esse latinório incompreensível para todos, o cura entregou aquela alma a
Deus e autorizou a preparação do corpo para o velório.
Enquanto os familiares pranteavam o finado, com a saída do
padre, Sidônia cuidou de aprontar o defunto para o velório que seguiria ao
longo daquela noite até o sepultamento no dia seguinte. Junto com a net de Zé
Belo, trancou-se na câmara de morte e, depois de assear o cadáver, vestiu-o com
a melhor roupa e mandou deitá-lo numa cama, exposto na sala da casa para as “incelências”
e o indispensável retrato. Depois disso, a mulher foi para casa prometendo
retornar, o que fez cerca de duas horas depois.
Chegada de volta, Sidônia deparou-se com o féretro exibindo
imagem horrível: a boca escancarada, a dentadura protuberante e coalhada de
dentes de ouro. Um rico monstro. A mulher pediu uma rodilha e, antes de amarrar
a cabeça do finado, envolvendo com o pano, desde o maxilar até o cocuruto do
crânio, fechando, num estalo, a boca do defunto, recolheu a chapa do homem e,
ligeira, jogou-a dentro de sua bolsa. Feito isso, deram-se às orações e às
cantorias típicas dos velórios daquele tempo. Reunida com outras mulheres do
lugar, Sidônia tirou a primeira “incelência”:
Desse que está aí já chegou a hora
É de levar, é de levar
Essa alma pro reino da Gulora
Livrai-o de seus pecados
E leva esse presente pra Nossa Senhora
Não tem medo nem tem pavor
Leva pena e deixa saudade
Segurado no terço da Mãe de Deus
Vai pra casa do senhor
Chegou a hora do adeus.
O velório durou a noite toda. Dada a importância do morto, acorreram todos para prestar as últimas homenagens àquele que havia sido o condutor de seus destinos por muito tempo. Já que não havia viúva (o velho era solteirão e só tinha uma filha reconhecida como tal), muitas mulheres choravam desconsoladas e, muita similaridade havia entre os rostos que circulavam no velório, com o retrato do homem dependurado na parede principal daquela sala.
De repente, em meio às
rezas e cantorias, um barulho conhecido, saído de debaixo da cama do defunto –
como se estivera vivo - espantou a todos. Pararam as rezas e todos botaram as
mãos tapando os narizes se protegendo de um fedor horrível. Um bêbado, que
estava sentado num tamborete, gritou: “Eita!
Balançaram o galho de merda e caíram até as verdes!”
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