ODE

domingo, 11 de agosto de 2024

Domingo eu conto

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

A Princesa do meu tempo

A nostalgia é um sentimento que nos remete a tempos idos contidos de lembranças que gostamos de rememorar. Esses momentos, vividos no passado, nos trazem boas recordações quando nos pomos a relembrá-los. Depois dos sessenta vem-nos uma certa pressa em fazer as coisas ligeiro como se estivéssemos nos despedindo de tudo, mas, sem tristeza. A memória das coisas boas é igual a um filme bom que gostamos de reprisar em nossas mentes em busca das gratas sensações do nosso próprio passado.

Aficionado por história, não poderia deixar de rememorar a minha e a dos meus contemporâneos. A Princesa bucólica, romântica e inocente do meu tempo de criança praticamente não existe mais. Aqueles que daqui saíram há mais de 40 anos, se voltarem, não a reconhecerão mais. Tudo mudou, desde o físico até o emocional. O casario e os locais por nós usados para nossas brincadeiras de crianças ou peripécias de adolescentes e jovens, quase todos estão descaracterizados. A cidade de Princesa é hoje igual a tantas outras, não tem mais aquela identidade peculiar que era somente sua e nossa.

Quando crianças nós, meninos, brincávamos do lema, do preso, da peia-quente... Enquanto as meninas, faziam rodas cantando modas inocentes (Ó que bela laranja, maninha...) ou fazendo o “Passarás”. Quando juntos, nos deleitávamos com a brincadeira do anel ou do “Tô no Poço”. Aos domingos, o catecismo na Igreja Matriz e, depois, a matinê no Cine Santa Maria. Quando rapazes e moças, os “assustados”, animados por radiolas de pilhas, aconteciam nas casas dos amigos, ocasiões onde surgiam os primeiros namoros e, numa forma de combater o machismo, havia também o “baile da cebola” quando eram as meninas que tiravam os meninos para dançar. No Carnaval, o que animava era a Escola de Samba comandada por dona Celina de doutor Antônio. No São João, a sensação era a quadrilha de irmã Benigna

Nas calçadas das residências, enquanto nós brincávamos, os mais velhos conversavam sobre os assuntos do dia-a-dia com preferência pela política; contavam estórias de trancoso; falavam da vida alheia, tudo isso ao som da difusora do cinema que, atendendo às preferências musicais de frei Alberto e de Tozinho, executava Vicente Celestino, Gigliola Cinquetti, Edith Piaf, dentre outros clássicos. No cinema preferíamos os filmes de faroeste e de ação. Filmes de amor só para maiores de 18 anos, assim mesmo, sem beijo na boca porque frei Alberto mandava Tozinho cortar a fita. Na frente do cinema, em vez da tradicional pipoca, o cavaco chinês de “seu” Manezim Pereira; o rolete de cana de Nana de Vigó; o cachorro quente e a tapioca com coco de Maria Costa; a castanhola de Passarinho e outras guloseimas mais. 

Sem energia elétrica de Paulo Afonso a luz do motor da Prefeitura se apagava às 09h30 da noite depois de dar dois avisos. Sem televisão, telefone nem internet, matávamos o tempo livre na Biblioteca da Praça “Zé Nominando” lendo livros, sob a indicação de Socorro de “seu” Mano, que não nos deixava ler os livros de adultos. Intercambiávamos nas leituras dos gibis de Walt Disney e, as meninas, filhas de pais mais liberais, liam as revistas: “Capricho”, “Sétimo Céu” e “Grande Hotel”. Quase tudo era censurado, porém, mesmo assim os sarros aconteciam atrás da igreja ou nas danças sob a luz negra do “Le Bartô”. Tudo era controlado pelos pais e olheiros, mas nada impedia de os jovens cometerem transgressões que, comparadas com as de hoje, se apresentam ridículas pela inocência. A droga era o cigarro escondido o que, naquele tempo, era charmoso.

Quando chegava um circo era uma festa. Os espetáculos aconteciam à noite, completos de danças, palhaçadas, números de mágica e, o auge, eram as peripécias dos trapezistas com destaque para Birôco e Dorinha. Porém, o que mais gostávamos era mesmo acompanhar o palhaço desfilando em pernas de pau pelas ruas da cidade quando distribuíam carimbos nos braços dos meninos que respondiam sua cantoria, para ter direito a entrar de graça à noite. Já na década de 70, começaram a aportar em Princesa grandes parques de diversão compostos de rodas gigantes, barracas de tiro ao alvo e outras atrações. O que mais agradava aos jovens era a execução das músicas do momento através de um potente aparelho de som e, o mais divertido, eram os oferecimentos de “páginas musicais” aos enamorados.

Mas nem tudo eram flores. A repressão da Igreja Católica nos punha na mira dos preconceitos religiosos quando nos ensinavam que, quase tudo era pecado. Isso não se atinha apenas à religião, mas também aos costumes e às superstições da época. Crianças eram alertadas para temerem o “Papa-figo”: uma figura lendária que vagava pelas ruas das cidades pequenas em busca de crianças para retirarem-lhes os fígados que serviam de remédio para um mal que lhes fazia crescer as orelhas. Outro bicho-papão era o “comunismo” – inventado pela ditadura militar - quando nos faziam rezar contra o seu estabelecimento no Brasil, o que provocaria o fechamento das igrejas. A virgindade das meninas era essencial e, moça deflorada, às quais chamavam de “perdidas”, eram privadas do convívio social.

Havia também muitas superstições que, vistas de hoje, se fazem por demais divertidas senão ridículas. Comer buchada e tomar banho poderia ser fatal. Quem chupasse manga ou laranja não poderia tomar leite. Tomar cachaça com queijo de coalho era morte certa. Tomar café e sair pro vento, entortava a boca. Comer carne do passarinho “cabeça vermelha” dava fome canina. Afora essas superstições opsofágicas, havia também as de costumes quando não era recomendável que mulheres menstruadas passassem por debaixo de pés de limão. Tomar banho na Quarta-feira Santa entrevava e, tirar leite de vaca na Sexta-feira Santa era pecado mortal.

Vale lembrar outras coisas que hoje não existem mais. As ruas de Princesa eram povoadas por doidos e esmoleres. Os malucos, desamparados, viviam às custas de quem gostava de fazer caridade e, seus comportamentos, quando não violentos, divertiam a todos a exemplo de Chico Raposa que dançava, em rodopios, no adro da Igreja Matriz; ou Arlinda Doida que tirava os meninos do prego. Os mendigos perambulavam de porta em porta a pedir esmolas em nome de Deus e, na Semana Santa, mesmo aqueles que não eram contumazes pedintes, aproveitavam a quadra para comer melhor e saíam pelas casas numa paradoxal prática, pedindo “jejuns”.

Eram tempos rudes, atrasados, obtusos e preconceituosos, mas despidos da maldade e dos vícios que hoje grassam em detrimento do bom funcionamento de uma sociedade sadia. Talvez por falta de informação, o nosso mundo era restrito e, os valores que nos incutiam nas cabeças eram cultuados à risca. Havia respeito, obediência e empenho em prol da firmeza dos caráteres. Sem saudosismo piegas, tampouco fazendo apologia ao que se foi, resta-nos saudade do que vivenciamos porque fazemos parte da última geração pré-internet, mas temos de nos adaptar às novas regras porque, os tempos são outros e a fila anda.



 

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