Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
José
“Cumpade Mané e cumade Quitéra vão cumer o pão do céu”. Era
assim que dizia, Ananias, cunhado do casal, Manoel e Quitéria. Ele se referia
ao amor e à perfeita sintonia dos dois. Quitéria, era minha tia materna e,
Manoel, tio afim. Chamava-os de madrinha Quitéria e tio Mané. Moravam no sítio
Cajá de Flores. A casa, uma vivenda simples, mas muito bem organizada. Em cima
de uma calçada alta, a moradia era composta de uma sala de estar – à qual
chamavam de varanda – ladrilhada à tijoleira; do lado, um quarto seguido da
sala de copa e mais um quarto; depois, uma grande cozinha e uma pequena
despensa onde guardavam alimentos e um grande caixão cheio de frutas das quais
ainda hoje sinto o cheiro. Atrás da casa, um alpendre onde havia um fogão de
lenha, um pilão e um pequeno engenho para moer cana de açúcar. Um pouco mais
afastado da traseira da casa, havia um armazém onde Manoel guardava os silos
cheios de milho e de feijão; as selas e os arreios da alimária que o conduzia à
feira de Flores nas segundas-feiras; alguns alforjes; uma grande balança e
outros apetrechos próprios de quem mora na roça.
Na sala de estar, algumas cadeiras de gerdau, duas
preguiçosas, uma mesinha forrada por uma branquíssima toalha e, em cima, um
rádio de pilhas que vivia sintonizado na Rádio Pajeú de Afogados da Ingazeira,
com especial atenção para o programa “Valdeci Menezes”. Aos domingos, a Rádio transmitia
a Santa Missa celebrada pelo bispo dom Francisco. Na mesinha, duas gavetas
contidas de vários livretos de cordel. Nas paredes da sala, os retratos do
casal e um quadro entronizado do Sagrado Coração de Jesus.
A vida dos dois obedecia a uma rotina por demais organizada.
Casados desde 1933, tiveram nove filhos, dos quais somente o primeiro vigou:
José. Os demais rebentos, pereceram todos ao nascer, vítimas da eritroblastose
provocada pela incompatibilidade sanguínea do casal.
Os dois eram católicos apostólicos romanos. Ela, chegando ao
limite de ser considerada uma carola. Tudo em casa girava em torno da religião.
Quitéria era quem rezava as novenas dos santos protetores; recomendava defuntos
e, até batizados fazia quando as crianças nasciam doentes e não dava tempo de
ir à igreja de Flores. A influência dela era tão grande que todas as crianças
daquele Sítio lhes pediam a bênção. Manoel, passivo de temperamento, obedecia
cegamente às determinações da mulher. Tudo, era ela quem resolvia. Ele se
atinha aos afazeres da roça e da labuta diária com os animais: sete ou oito
cabeças de reses, alguns bodes ovelhas e uma égua para montaria.
José, filho único, foi criado com todo cuidado e coberto de
mimos – principalmente pelo pai -, mas monitorado, severamente, pela
controladora mãe. Na infância, o menino franzino parecia mofino e até meio
abestalhado: gostava de andar na lua da cela da besta em que o pai cavalgava,
tocando, sem parar, um pequeno chocalho e vivia a correr atrás dos cabritos que
o pai criava. Parecia até que o menino não era normal e que se faria, mais,
tarde, efeminado - o que fazia lembrar Zé Maria, o filho de dona Sinhá do
romance-ficção de Gilberto Freyre: “Dona
Sinhá e o filho Padre”. Mas, não. Entrado na puberdade, José logo tomou
corpo, deu um estirão e fez-se um rapaz bonito, de compleição forte e
comportamento viril. Isso, talvez, para tristeza da mãe que tinha planos
definidos para o futuro do filho.
O sonho de Quitéria era que José se tornasse padre. Malgrado
ser impositora de tudo, nesse afã, a mãe não logrou êxito. Feito rapazinho,
José deixou de correr atrás dos cabritos e passou a correr atrás das meninas do
sítio onde morava e adjacências. Não podia ver nem resistia a um rabo-de-saia e
logo, com apenas 16 anos de idade, encetou namoro com uma moça, chamada Maria
do Carmo, mais conhecida por “Carminha”, o que não caiu no agrado da mãe. Na
verdade, tudo que fugisse de seus planos sacerdotais, era reprovado pela
austera mulher. Manoel não apitava em nada, só fazia dizer: “Ô Quitéra, deixa o
menino...” Mas, a mãe, era renitente e passou a reprimir o rapaz, a proibi-lo
de sair e de namorar com Carminha.
Tava criado o problema. A mãe repressora e, o rapaz, no auge
de sua revolução hormonal, em busca da satisfação de desejos naturais que, muitas
vezes, são incontroláveis, se rebelava quanto às determinações maternas. Em
face disso, para Quitéria, acendeu-se a luz vermelha. Embora apegadíssima ao
menino, ela resolveu acabar de vez com aquele namoro, para ela inconveniente.
Chegado do Paraná, o seu irmão mais novo, João, que prosperava no ramo da agricultura
naquele Estado, propôs levar o sobrinho para passar uns tempos com ele. Manoel
foi contrário, mas, quem decidia era a mulher e esta concordou e despachou o
rapaz com o tio para Umuarama no Paraná. Mal José saiu de casa, a mãe começou a
se lastimar, arrependida. Não suportava a ausência do filho e, agora, pagava
pelas consequências de sua intransigência. José prometeu a Carminha que
voltaria para se casar com ela, mas, a moça, não esperou muito tempo: em menos
de um ano arranjou outro namorado e casou-se na cidade de Carnaíba.
Quando crianças, eu e meus irmãos, íamos de Princesa, passar
as férias escolares no sítio de madrinha Quitéria. Ela era irmã da minha mãe,
Osana. Era um tempo de completa felicidade: fartura no comer, divertimentos com
os tabaréus do lugar; caçadas com petecas (estilingues); jogos com bola de
meia; cavalgadas em cavalos-de-pau; cuidado com o gado do tio e, para
completar, um grande balanço instalado num dos galhos do frondoso umbuzeiro que
ficava no terreiro da frente da casa. Uma beleza! Em que pese o temperamento
controlador da nossa tia, tínhamos liberdade para brincar à vontade, mas, com
hora marcada para tudo. Na casa da minha tia, tudo obedecia a uma rígida
disciplina. As refeições, com todos à mesa, tinham hora certa, mesa posta,
oração antes e depois de comer e silêncio durante o repasto. De manhã, o café
com bolo de caco, ovos e queijo assado; às 11h00, almoço; às 04h00 da tarde um
chá, ocasião em que apareciam alguns amigos do casal e, às 07h00 da noite,
depois de rezar o terço da Virgem, o jantar.
Todos os dias, às 06h00 da tarde, madrinha Quitéria rezava o
terço da Virgem Maria. Ela tirava o terço e nós, respondíamos às ave-marias e
os padre-nossos, entremeados da recitação dos mistérios gozosos, gloriosos,
dolorosos e luminosos, rezas de que até hoje, eu lembro décor. Na sala, que
chamavam de varanda, todos de pé, sob a penumbra de uma placa, à querosene,
dependurada na parede e, em frente ao quadro do Sagrado Coração de Jesus, rezávamos
o terço e, sempre no final dessa oração, depois da citação de uma jaculatória, madrinha
Quitéria rogava a Deus pelo retorno de José. Depois do terço, o jantar e, logo
após a última refeição do dia, todos nos recolhíamos para dormir. Eu e meu
irmão, Antônio, dormíamos em duas redes armadas na sala da frente e que eram
sacudidas, ao amanhecer, quando tio Mané passava por debaixo delas batendo com
os baldes que usava para tirar o leite das quatro vacas que criava no curral ao
lado da casa.
No dia-a-dia da casa, tudo obedecia a uma rotina
imutável. Portadora de uma gastrite
crônica, minha tia obedecia a uma dieta especial. Em que pese a mesa farta e de
cozimento delicioso, ela, só comia arroz-de-leite com um pedaço de queijo e uma
banana maçã. Quitéria era incansável na labuta diária. Cuidava do fogão, fazia queijos de coalho -
que Manoel levava, às segundas-feiras para entregar às freguesias, em Flores.
Além dos queijos, minha tia fazia deliciosos bolos de massa puba, tapiocas e fiós.
Para nós, que em Princesa vivíamos na privação da fartura, nas férias,
descontávamos o atrasado, chegando até a engordar alguns quilos.
Mesmo com seu tempo consumido pela labuta diária e, envolvida
com suas orações, Quitéria não esquecia de José. O tempo passava e, nem notícia
do filho. Algo que me intriga até hoje é o fato de José jamais haver escrito
sequer uma linha para dar notícias aos pais. Foi embora com o tio João e,
fechou-se o mundo. Meus tios só sabiam de notícias do filho quando vinha alguém
do Paraná e dava conta de que José estava, trabalhando e que sempre expressava
o desejo de visitar os pais. Isso trazia algum alento à aflição da saudosa mãe.
O pai, em sua passividade, nada dizia. Já Quitéria, esperançosa pelo retorno do
filho, mantinha, num chiqueiro, vários capões para engorda e, todo final de
tarde, quando escutava o apito do trem que passava por uma pequena estação que
distava pouco mais de um quilômetro de sua casa, a mãe saudosa alimentava a
expectativa de que José estava chegando e corria para a calçada da casa a
espiar até a cabeça da estrada se vislumbrava a figura do filho querido.
Mas, José, não vinha, nem mandava notícias. No entanto, já
depois de 10 anos de sua ida para o Paraná, chegou a notícia de que havia-se
casado com uma moça de lá. A partir daí, Quitéria passou a receber cartas da
nora que, além de informar sobre os nascimentos de seus netos, falava também
sobre José, mas sempre com notícias ruins, dizendo que o marido tornara-se
alcoólatra e que não conseguia se fixar em emprego algum, etc., etc. Certo dia,
num fim de tarde, Manoel e Quitéria se surpreenderam com a repentina visita de
Antônio (irmão mais velho de Quitéria) que veio de Flores, à cavalo, para
trazer uma triste notícia: José havia-se suicidado. A partir daí, madrinha
Quitéria entrou em depressão e decadência física, perdeu a vontade de viver e,
mesmo sob o amparo de sua inabalável fé, sucumbiu a uma tristeza sem fim.
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