Por Domingos Sávio
Maximiano Roberto
O cacete justiceiro
O espinho, de pequeno traz a ponta. Isabel era a única filha
de Ambrósia, uma negra reboculosa que servia no hotel de dona Sinhá, localizado
na Rua Nova em Princesa. Neta de escravos, a negra pariu essa menina – diziam
as más línguas – fruto de um furtivo relacionamento com um juiz de direito
bigodudo que se arranchara naquela hospedaria nos idos da década de 1950.
Isabel era alegre demais, vivia com os dentes no quarador e morria de medo de
homem. Quando os hóspedes ilustres – juízes, promotores, professores,
caixeiros-viajantes, etc. - estavam na sala de estar do hotel de dona Sinhá à
confabularem sobre política e assuntos outros, Isabel relutava em passar por
ali com vergonha dos homens. A mocinha chamava a atenção porque, da mistura do
pai branco com a mãe negra resultou uma mulata bonita, alta e de corpo
escultural, o que agradava aos olhos masculinos.
Corria o ano de 1966. Criada nesse hotel, que recebia a fina
flor dos homens que exerciam cargos importantes na cidade, Isabel aprendeu a
ler e escrever com um professor oriundo de Cajazeiras. Além dos afazeres
domésticos, em cooperação com a mãe, a mocinha se atinha às brincadeiras com os
meninos brancos nos aceiros da Rua do Cemitério. Mimada, ela nunca foi
submetida aos serviços pesados. A mãe, cozinheira-chefe da hospedaria, pouco
ligava quanto ao que Isabel fazia. Na verdade, a filha de Ambrósia, vivia solta
na data. A associação da libido apurada da menina com a licenciosidade a que se
permitia, fez-se caldo de cultura para que, Isabel, aos quatorze anos de idade
aparecesse buchuda sem que, nem ela, soubesse quem era o pai de seu filho. A
única certeza era a de que, o bucho, era de um dos filhos brancos dos
potentados do lugar. Mais do que depressa, Ambrósia, providenciou a
transferência da menina para a casa de um compadre seu na cidade de Água
Branca.
Durante a gravidez, a
mocinha ficou reclusa e, quando pariu a criança, um menino branquinho que mais
parecia uma espiga de milho, mandou seu rebento para Ambrósia cuidar, em
Princesa, e foi trabalhar numa casa de família como empregada doméstica. Foi
quando conheceu Joaquim, um mulato forte de seus 23 anos de idade, que se
apaixonou por ela. Logo estavam se deitando e, mais depressa ainda, resolveram
morar juntos. Antes de completar um ano de relacionamento, Isabel pariu uma
menina, o que se tornou uma série quando, em nove anos de convivência, teve seis
filhos com Joaquim. Aparentemente, ia bem o casamento dos dois. Ela trabalhava
na casa de uma professora do Grupo Escolar “José Nominando Diniz” e, ele, além
de trabalhar de alugado nas roças dos ricos da cidade, fazia bico como cabeceiro
do caminhão de Benone Firmino, chefe político de Água Branca.
Pelo visto, tudo parecia correr às mil maravilhas. Mesmo com
as dificuldades que enfrentavam pelo parco dinheiro de que dispunham para dar
conta da criação da numerosa prole, Joaquim e Isabel faziam o possível para dar
o melhor para os filhos. Quando a mulher estava no trabalho – para onde levava
os três filhos menores -, uma solteirona sua vizinha ficava de olho nos mais
velhos e auxiliava na feitura da comida, o que era arrematado por Isabel quando
voltava da lida diária como empregada doméstica. À noite, com sua habilidade em
epistolografia, Isabel servia a todos da cidadezinha de Água Branca. Era ela a
escrevinhadora das cartas para todos os que tinham parentes em São Paulo e, com
isso, ganhava alguns trocados.
Em 1976, seu marido Joaquim foi convidado por um amigo para
trabalhar numa obra de construção de um grande açude na cidade de Serra Talhada,
em Pernambuco. Nessa atividade, o homem saía de casa na segunda-feira cedinho
e, só retornava na sexta-feira à tarde. Valia a pena porque ganhava mais que o
dobro do que auferia nas atividades que praticava em Água Branca. Estavam bem
de vida! E, Isabel, labutando na casa da professora e escrevendo cartas,
completava o orçamento doméstico. Em busca desse importante ofício acorriam
quase todos à casa da mulata “sabida” – era como a chamavam por saber ler e
escrever, coisa ainda rara no meio das pessoas mais pobres daquele tempo.
Certa feita, Isabel foi procurada por um rapaz para escrever
uma carta à sua namorada. Moço bonito, de vinte e poucos anos que trabalhava na
única padaria existente na cidade. Chamava-se Elpídio e era oriundo das bandas
do Piancó. Era para lá que queria escrever. Deu os dados da namorada,
acrescentou os dizeres que tinha na cabeça e deixou o resto por conta da
missivista de aluguel. Já perita nesse ofício, Isabel enfeitou mais ainda e,
pra completar, encheu o papel de coraçõezinhos sem esquecer de acrescentar, no
papel, três pingos do extrato Madeira do Oriente. Agradou demais ao rapaz que
se fez freguês de Isabel quando mandava cartas semanalmente para a namorada.
Desse conluio epistolar, estrumado pela ausência do marido e
pelo fogo aceso no entrepernas da mulher, abstêmia do amor carnal, nasceu uma
paixão incontrolável. Quando escrevia, Isabel era assistida por Elpídio que
ficava ao seu lado a ditar palavras de amor que foram se configurando mais para
a escrevente do que para a namorada distante. Daí para o roçar de pernas por
debaixo da mesa e o bafo do hálito quente do rapaz quando lhes ditava as
palavras, tudo evoluiu para beijos e afagos que culminaram com os dois deitados
na cama de Joaquim. As cartas, que eram escritas semanalmente, passaram a ser
feitas quase que diariamente. Com a ausência do marido, Isabel estava à vontade
para trepar com o rapaz quando e o quanto quisesse. Mas, a festa, estava
acabando.
Finda a construção do açude em Serra Talhada, o marido voltou
para casa e Isabel viu-se restrita em seus contatos com o amante. Arranjaram um
jeito. Na orla de um açude que ficava nos arredores da cidade, funcionava,
amparado por uma touceira de aveloz, o que chamavam de “banheiro dos homens” –
local usado pelos homens daquele lugar, que não tinham banheiro em casa, para
tomarem seus banhos semanais. Era ali onde à boquinha da noite, Isabel e
Elpídio se encontravam para fornicar. Inicialmente, sem desconfiar de nada,
Joaquim estranhou a indiferença da mulher quando da recusa em trepar com ele.
Tinha sempre uma desculpa: quando não era uma dor de cabeça alegava uma
enxaqueca e, quando não tinha jeito, se submetia aos desejos do marido sem a
costumeira retribuição de carinhos, tampouco manifestação de gozo. “Tinha roupa no varal”, pensou o homem.
Joaquim, já com a mosca atrás da orelha, pôs-se a vigiar os
movimentos da mulher. Desconfiado, numa sexta-feira, Joaquim inventou uma
pescaria. Fez-se que partiu, à tardinha, dizendo à mulher que só retornaria no
domingo à noite. Era o que Isabel queria, pois, agora, com o marido em casa,
eram poucas as oportunidades em estar com seu rapaz. Na mesma sexta-feira, logo
que escureceu, a mulher mandou um recado para o amante dizendo que “a carta estava pronta”. Era a senha.
Elpídio nem passou pela casa da amante, foi direto para o banheiro dos homens.
Lá chegando a mulher já o esperava. Logo se despiram e se deram à volúpia do
amor proibido. Mal começaram o jogo do amor, viram uma sombra que se aproximava
devagar. Isabel, que estava debaixo do homem, gritou: “É ele, é meu marido!”
Mal tiveram tempo de se levantar. A
primeira cacetada foi na cabeça de Elpídio de onde espirrou um jato de sangue
que atingiu a cara da mulher cegando-a instantaneamente. Tentando se levantar,
Isabel, reconhecendo o marido, implorou pela sua misericórdia: “Pelo amor de Deus, Joaquim, não me mate!”
Em vão. Joaquim desferiu um golpe certeiro no pescoço da mulher que caiu
prostrada. Com os dois no chão, o corno, concluiu o serviço com mais algumas
cacetadas que os acabou de matar. Soltou ali mesmo o cacete e cuidou em fugir. Atordoado
que ficou, Joaquim, ao invés de sair da cidade, voltou para casa, jantou com os
filhos e foi dormir como se nada houvera acontecido. Achados os corpos, o
marido de Isabel foi procurado e, desesperado, confessou o crime. Preso, foi
recambiado para Princesa no aguardo de seu julgamento pelo Tribunal do Júri.
O advogado princesense Nominando Diniz Neto, mais conhecido
por “Manito” era muito inteligente, detentor de excelente memória e muita
presença de espírito. Advogava para os mais pobres sem cobrar honorários e
preferia atuar no Tribunal do Júri, o que fazia com muita competência, graça, e
de graça. Nomeado pelo Juiz como defensor público, tomou para si o caso de
Joaquim para defendê-lo, do duplo assassinato, no Conselho de Sentença. No dia
do Júri de seu constituído, Manito, durante emocionante e contundente discurso
em defesa do assassino, que era pai de seis filhos menores, perorou da tribuna
do Fórum de Princesa:
“Vejam, senhores jurados, quão
humilhante é a situação desse ‘corno’. Aqui, cabisbaixo na sua vergonha de
haver sido traído pela mãe de seus filhos menores. Traído covardemente, repito,
enquanto trabalhava para adquirir o sustento da família. Se não mereceu o
respeito da esposa a quem amava e respeitava, deve merecer a compaixão dos
senhores jurados e ser livre da cadeia para continuar sua faina diária como
agricultor, em busca do pão-de-cada-dia para sustentar sua numerosa prole.
Coloquem-se, os senhores, neste momento, no lugar desse pobre ‘corno’ e entenderão
sua atitude que foi tão-somente um ato em defesa de sua própria honra, que foi
maculada por uma mulher a quem amava, confiava e respeitava!”.
Após a fala de Manito, doutor Lourival, Promotor de Justiça,
pediu a palavra ao Juiz e, virando-se para os jurados - ostentando em uma das
mãos um pedaço de madeira rústica (um cacete), medindo aproximadamente um
metro, e que estava ainda sujo de sangue -, falou, quase aos gritos, apontando
para Joaquim que, cabisbaixo, se encontrava sentado num banco, algemado e
ladeado por dois policias:
“Eis o ‘Pau’, senhores jurados, que
esse assassino usou para matar a mãe de seus filhos!”
Ao que Manito,
mesmo sem pedir permissão ao Juiz, interveio, enfático, com uma resposta
contundente e, ao mesmo tempo, engraçada:
“Senhores Jurados, eu garanto-lhes
que o ‘pau’ que provocou a desonra deste ‘corno’, era muito maior do que esse
que o doutor Lourival nos apresenta
agora!”.
A quase obscena defesa de Manito surtiu efeito. Após votação,
os jurados decidiram: Joaquim foi absolvido por sete votos a zero. O cacete que
puniu o adultério fez-se justiceiro também como instrumento de defesa do pobre
corno.
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