ODE

domingo, 7 de julho de 2024

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

O cacete justiceiro

O espinho, de pequeno traz a ponta. Isabel era a única filha de Ambrósia, uma negra reboculosa que servia no hotel de dona Sinhá, localizado na Rua Nova em Princesa. Neta de escravos, a negra pariu essa menina – diziam as más línguas – fruto de um furtivo relacionamento com um juiz de direito bigodudo que se arranchara naquela hospedaria nos idos da década de 1950. Isabel era alegre demais, vivia com os dentes no quarador e morria de medo de homem. Quando os hóspedes ilustres – juízes, promotores, professores, caixeiros-viajantes, etc. - estavam na sala de estar do hotel de dona Sinhá à confabularem sobre política e assuntos outros, Isabel relutava em passar por ali com vergonha dos homens. A mocinha chamava a atenção porque, da mistura do pai branco com a mãe negra resultou uma mulata bonita, alta e de corpo escultural, o que agradava aos olhos masculinos.

Corria o ano de 1966. Criada nesse hotel, que recebia a fina flor dos homens que exerciam cargos importantes na cidade, Isabel aprendeu a ler e escrever com um professor oriundo de Cajazeiras. Além dos afazeres domésticos, em cooperação com a mãe, a mocinha se atinha às brincadeiras com os meninos brancos nos aceiros da Rua do Cemitério. Mimada, ela nunca foi submetida aos serviços pesados. A mãe, cozinheira-chefe da hospedaria, pouco ligava quanto ao que Isabel fazia. Na verdade, a filha de Ambrósia, vivia solta na data. A associação da libido apurada da menina com a licenciosidade a que se permitia, fez-se caldo de cultura para que, Isabel, aos quatorze anos de idade aparecesse buchuda sem que, nem ela, soubesse quem era o pai de seu filho. A única certeza era a de que, o bucho, era de um dos filhos brancos dos potentados do lugar. Mais do que depressa, Ambrósia, providenciou a transferência da menina para a casa de um compadre seu na cidade de Água Branca.

 Durante a gravidez, a mocinha ficou reclusa e, quando pariu a criança, um menino branquinho que mais parecia uma espiga de milho, mandou seu rebento para Ambrósia cuidar, em Princesa, e foi trabalhar numa casa de família como empregada doméstica. Foi quando conheceu Joaquim, um mulato forte de seus 23 anos de idade, que se apaixonou por ela. Logo estavam se deitando e, mais depressa ainda, resolveram morar juntos. Antes de completar um ano de relacionamento, Isabel pariu uma menina, o que se tornou uma série quando, em nove anos de convivência, teve seis filhos com Joaquim. Aparentemente, ia bem o casamento dos dois. Ela trabalhava na casa de uma professora do Grupo Escolar “José Nominando Diniz” e, ele, além de trabalhar de alugado nas roças dos ricos da cidade, fazia bico como cabeceiro do caminhão de Benone Firmino, chefe político de Água Branca.

Pelo visto, tudo parecia correr às mil maravilhas. Mesmo com as dificuldades que enfrentavam pelo parco dinheiro de que dispunham para dar conta da criação da numerosa prole, Joaquim e Isabel faziam o possível para dar o melhor para os filhos. Quando a mulher estava no trabalho – para onde levava os três filhos menores -, uma solteirona sua vizinha ficava de olho nos mais velhos e auxiliava na feitura da comida, o que era arrematado por Isabel quando voltava da lida diária como empregada doméstica. À noite, com sua habilidade em epistolografia, Isabel servia a todos da cidadezinha de Água Branca. Era ela a escrevinhadora das cartas para todos os que tinham parentes em São Paulo e, com isso, ganhava alguns trocados.

Em 1976, seu marido Joaquim foi convidado por um amigo para trabalhar numa obra de construção de um grande açude na cidade de Serra Talhada, em Pernambuco. Nessa atividade, o homem saía de casa na segunda-feira cedinho e, só retornava na sexta-feira à tarde. Valia a pena porque ganhava mais que o dobro do que auferia nas atividades que praticava em Água Branca. Estavam bem de vida! E, Isabel, labutando na casa da professora e escrevendo cartas, completava o orçamento doméstico. Em busca desse importante ofício acorriam quase todos à casa da mulata “sabida” – era como a chamavam por saber ler e escrever, coisa ainda rara no meio das pessoas mais pobres daquele tempo.

Certa feita, Isabel foi procurada por um rapaz para escrever uma carta à sua namorada. Moço bonito, de vinte e poucos anos que trabalhava na única padaria existente na cidade. Chamava-se Elpídio e era oriundo das bandas do Piancó. Era para lá que queria escrever. Deu os dados da namorada, acrescentou os dizeres que tinha na cabeça e deixou o resto por conta da missivista de aluguel. Já perita nesse ofício, Isabel enfeitou mais ainda e, pra completar, encheu o papel de coraçõezinhos sem esquecer de acrescentar, no papel, três pingos do extrato Madeira do Oriente. Agradou demais ao rapaz que se fez freguês de Isabel quando mandava cartas semanalmente para a namorada.

Desse conluio epistolar, estrumado pela ausência do marido e pelo fogo aceso no entrepernas da mulher, abstêmia do amor carnal, nasceu uma paixão incontrolável. Quando escrevia, Isabel era assistida por Elpídio que ficava ao seu lado a ditar palavras de amor que foram se configurando mais para a escrevente do que para a namorada distante. Daí para o roçar de pernas por debaixo da mesa e o bafo do hálito quente do rapaz quando lhes ditava as palavras, tudo evoluiu para beijos e afagos que culminaram com os dois deitados na cama de Joaquim. As cartas, que eram escritas semanalmente, passaram a ser feitas quase que diariamente. Com a ausência do marido, Isabel estava à vontade para trepar com o rapaz quando e o quanto quisesse. Mas, a festa, estava acabando.

Finda a construção do açude em Serra Talhada, o marido voltou para casa e Isabel viu-se restrita em seus contatos com o amante. Arranjaram um jeito. Na orla de um açude que ficava nos arredores da cidade, funcionava, amparado por uma touceira de aveloz, o que chamavam de “banheiro dos homens” – local usado pelos homens daquele lugar, que não tinham banheiro em casa, para tomarem seus banhos semanais. Era ali onde à boquinha da noite, Isabel e Elpídio se encontravam para fornicar. Inicialmente, sem desconfiar de nada, Joaquim estranhou a indiferença da mulher quando da recusa em trepar com ele. Tinha sempre uma desculpa: quando não era uma dor de cabeça alegava uma enxaqueca e, quando não tinha jeito, se submetia aos desejos do marido sem a costumeira retribuição de carinhos, tampouco manifestação de gozo. “Tinha roupa no varal”, pensou o homem.

Joaquim, já com a mosca atrás da orelha, pôs-se a vigiar os movimentos da mulher. Desconfiado, numa sexta-feira, Joaquim inventou uma pescaria. Fez-se que partiu, à tardinha, dizendo à mulher que só retornaria no domingo à noite. Era o que Isabel queria, pois, agora, com o marido em casa, eram poucas as oportunidades em estar com seu rapaz. Na mesma sexta-feira, logo que escureceu, a mulher mandou um recado para o amante dizendo que “a carta estava pronta”. Era a senha. Elpídio nem passou pela casa da amante, foi direto para o banheiro dos homens. Lá chegando a mulher já o esperava. Logo se despiram e se deram à volúpia do amor proibido. Mal começaram o jogo do amor, viram uma sombra que se aproximava devagar. Isabel, que estava debaixo do homem, gritou: “É ele, é meu marido!”

Mal tiveram tempo de se levantar. A primeira cacetada foi na cabeça de Elpídio de onde espirrou um jato de sangue que atingiu a cara da mulher cegando-a instantaneamente. Tentando se levantar, Isabel, reconhecendo o marido, implorou pela sua misericórdia: “Pelo amor de Deus, Joaquim, não me mate!” Em vão. Joaquim desferiu um golpe certeiro no pescoço da mulher que caiu prostrada. Com os dois no chão, o corno, concluiu o serviço com mais algumas cacetadas que os acabou de matar. Soltou ali mesmo o cacete e cuidou em fugir. Atordoado que ficou, Joaquim, ao invés de sair da cidade, voltou para casa, jantou com os filhos e foi dormir como se nada houvera acontecido. Achados os corpos, o marido de Isabel foi procurado e, desesperado, confessou o crime. Preso, foi recambiado para Princesa no aguardo de seu julgamento pelo Tribunal do Júri.

O advogado princesense Nominando Diniz Neto, mais conhecido por “Manito” era muito inteligente, detentor de excelente memória e muita presença de espírito. Advogava para os mais pobres sem cobrar honorários e preferia atuar no Tribunal do Júri, o que fazia com muita competência, graça, e de graça. Nomeado pelo Juiz como defensor público, tomou para si o caso de Joaquim para defendê-lo, do duplo assassinato, no Conselho de Sentença. No dia do Júri de seu constituído, Manito, durante emocionante e contundente discurso em defesa do assassino, que era pai de seis filhos menores, perorou da tribuna do Fórum de Princesa:

“Vejam, senhores jurados, quão humilhante é a situação desse ‘corno’. Aqui, cabisbaixo na sua vergonha de haver sido traído pela mãe de seus filhos menores. Traído covardemente, repito, enquanto trabalhava para adquirir o sustento da família. Se não mereceu o respeito da esposa a quem amava e respeitava, deve merecer a compaixão dos senhores jurados e ser livre da cadeia para continuar sua faina diária como agricultor, em busca do pão-de-cada-dia para sustentar sua numerosa prole. Coloquem-se, os senhores, neste momento, no lugar desse pobre ‘corno’ e entenderão sua atitude que foi tão-somente um ato em defesa de sua própria honra, que foi maculada por uma mulher a quem amava, confiava e respeitava!”.

Após a fala de Manito, doutor Lourival, Promotor de Justiça, pediu a palavra ao Juiz e, virando-se para os jurados - ostentando em uma das mãos um pedaço de madeira rústica (um cacete), medindo aproximadamente um metro, e que estava ainda sujo de sangue -, falou, quase aos gritos, apontando para Joaquim que, cabisbaixo, se encontrava sentado num banco, algemado e ladeado por dois policias:

“Eis o ‘Pau’, senhores jurados, que esse assassino usou para matar a mãe de seus filhos!”

     Ao que Manito, mesmo sem pedir permissão ao Juiz, interveio, enfático, com uma resposta contundente e, ao mesmo tempo, engraçada:

“Senhores Jurados, eu garanto-lhes que o ‘pau’ que provocou a desonra deste ‘corno’, era muito maior do que esse que o doutor  Lourival nos apresenta agora!”.

A quase obscena defesa de Manito surtiu efeito. Após votação, os jurados decidiram: Joaquim foi absolvido por sete votos a zero. O cacete que puniu o adultério fez-se justiceiro também como instrumento de defesa do pobre corno.



 

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