Cena dantesca, essa que fora postada pelo colega Carlos Neves. De onde estou, numa casa imensa, arrodeado de livros, de telas de pintores que admiro, com um pomar à minha inteira disposição, com o conforto da tecnologia e com a certeza de que teclarei em meu telefone e pedirei o que for necessário, de que tenho um filho, uma nora e vários amigos médicos que me darão suporte numa hora de necessidade, dois carros na garagem para me levarem onde eu quiser ir, jamais poderia propor aos personagens da fotografia que cumpram a mesma e severa quarentena que me impus cumprir. Eles são os sobreviventes do cotidiano, com ou sem quarenta, existam ou não surtos virais, eles terão que sobreviver a cada dia. Comem as sobras das nossas fartas refeições, vivem o instante presente e sequer ousarão pensar no amanhã, simplesmente porque a idéia de um amanhã sequer lhes passa pela cabeça. E agora mesmo começo a ter repulsa das normas comportamentais genéricas que, nascidas no alto clero da vida social brasileira, pretendem igualar esses pobres desvalidos aos que se encontram em condições econômicas e sociais diametralmente distantes das minhas e daqueles (muitos) que se encontram acima de mim. A vida, para eles, é uma quarentena obrigatória que se inicia no nascimento de cada um, caminha pela existência e só os abandona na hora da morte. "Todos são iguais perante a lei." Assim está dito em nossa Constituição. Isso de fato é verdade perante os fatos e debaixo do céu? Somos iguais a eles no percurso da vida, diante das oportunidades e do mínimo de dignidade que se espera da existência humana? "Igualdade formal diante do ordenamento jurídico interno." Qual será a forma jurídica apta a alcançar alguém que luta para ganhar na madrugada aquilo que o alimentará, e a seus filhos, na única e miserável alimentação do dia? Sejamos francos: o direito e suas belas construções dogmáticas, ou qualquer outra coisa parecida, jamais alcançarão os seres "socialmente invisíveis" que sobrevivem (como?) nos grotões inabitáveis de nossas periferias urbanas. Como exigir deles que cumpram uma quarentena ou qualquer outra coisa que vá além da própria sobrevivência física? Eles lutam pela comida do dia. Amanhã será outra batalha diante da certeza de uma morte tangível por falta de pão. A foto de um pai paupérrimo, arrodeado de um filho e várias filhas que dependem de seu suor, sangue, lágrimas e da humilhação cotidianos relativisa tudo em minha vida. Principalmente o direito e seus dogmas, que restam decompostos diante da brutalidade provinda do mundo real que não permite arrodeios retóricos nem palavras amenas. O Coronavírus, como o próprio nome afirma, não passa de um vírus. Em breve passará. Os atores da foto são seres como nós, eles ficarão, nós ficaremos. E o que faremos por eles? E o que faremos com o sistema, que transforma homens em expectadores da vida e desprovidos de qualquer esperança? O Corona passará, eles ficarão.
Wellington Marques Lima
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