ODE

domingo, 29 de maio de 2022

Crônicas da Princesa de antanho

Somos a geração da transição

Nós, os princesenses sessentões de hoje, somos a geração da transição, de um passado recente para essa nova era da modernidade digital. Os jovens de hoje não conheceram o que nós conhecemos do passado ocorrido a pouco, nem os velhos da nossa época tiveram o privilégio de conhecer o desenvolvimento tecnológico que hoje vivenciamos com espanto - mas já se acostumando - , o que tudo comanda.

Somos do tempo em que quase tudo era proibido ou imoral. Na nossa época de jovens, as mulheres de meia idade tinham como indumentárias, saias ou vestidos com a barra até os joelhos e, as velhas – em sua maioria viúvas -, se cobriam em vestidos longos e pretos sem descobrir sequer os mocotós. As freiras carmelitas só mostravam o redondo do rosto e as mãos. Até o início da década de 1960, as chamadas “moças de família” não usavam saias curtas nem blusas sem mangas e, obrigatoriamente vestiam as pernas com longas meias. Os rapazes e os homens vestiam o convencional: calças compridas, camisas de mangas e, quase sempre um chapéu à cabeça. Nada de afetação.

Com a chegada dos primeiros anos da década de 1970, as coisas começaram a mudar. Com o advento da televisão que trouxe os Beatles, Roberto Carlos, o Chacrinha, o Sílvio Santos, o futebol, etc., a juventude começou a mudar também seus costumes: as meninas cortaram os cabelos, abandonaram os penteados a laquê, retiraram os laços de fitas e os diademas, e passaram a usar minissaias, vestidos decotados e calças compridas; os rapazes, passaram a vestir calças boca-de-sino, camisas volta-ao-mundo e calçar sapatos cavalo-de-aço; largaram de vez a brilhantina e deixaram os cabelos crescer. Para os homens maduros e os já idosos, em termos de vestimentas, quase nada mudou.

Os da nossa geração, alcançamos ainda a prática do café torrado em casa; do milho moído à máquina mimoso nº 3 e do arroz descascado ao pilão. Era chique quem tinha “fogão de Carvão”. Fogão à lenha era usado também na cidade, porém mais disseminado nas casas dos moradores da Zona Rural que, naquele tempo, representavam 70% da população do município, e só vinham para a rua aos sábados, para a feira-livre, e nas quatro festas do ano. Os principais componentes de uma casa eram: o pote, a quartinha e o filtro, todos de barro, em similaridade com as panelas; a marmita, o bule e a chaleira, dentre outros. O banheiro para lavar-se e a latrina para as necessidades fisiológicas, ficavam fora da casa e, para estas “necessidades”, quando feitas à noite, utilizava-se o urinol (penico).

Sem energia elétrica, usava-se o candeeiro à querosene (que chamávamos de gás, não o liquefeito, mas aquele que comprávamos na bodega de “seu” João Rosas, numa garrafa com um barbante amarrado no gargalo). Para passar as roupas, o ferro de engomar, com brasas. Para o fazimento das roupas, a máquina de pé para costurar. Eram esses os móveis, utensílios e costumes usados, incompreensíveis para os jovens de hoje. Mas nós fomos testemunhas também da chegada da televisão; da geladeira; do liquidificador; do fogão a gás, da panela de pressão, do ferro elétrico; da garrafa automática; da energia de Paulo Afonso; da água encanada; do telefone; da popularização do rádio e de outras modernidades que aqui chegaram, primeiro, como privilégio dos mais abonados financeiramente, mas que encantavam a todos.

Automóveis, eram um luxo. Tirante dos caminhões de “seu” Biu (pai de Batinho), de “seu” Eliseu Patriota e de Sebastião Medeiros, dentre outros poucos, existiam os ônibus de Parajara Duarte e o de “seu” Apolônio Campos que fazia a linha Patos Espinharas/Princesa. Carros de passeio eram pouquíssimos: o fusca de “seu” Mano, o aero willys de Toinho de Frade, o fusca de Chico Sobreira, o jipe de 4 portas de doutor Severiano, o fusca de doutor Zezito Sérgio e os dois jipes dos frades carmelitas, para citar alguns. Naquele tempo, viajar de avião, somente os muito ricos e os políticos podiam fazer e, para tal, tinham que vestir-se de paletó e gravata.

Brasília, que foi construída nesse tempo (1956-1960), com arquitetura modernista, acabara de ser inaugurada, o que influenciou também no estilo das novas construções da cidade, quando até um Bairro (ali perto do Cancão), recebeu o nome de “Nova Brasília”. Os costumes e as transformações sociais causaram impacto muito forte na sociedade daquela época, principalmente, quanto às orientações religiosas. Era ainda, a Igreja Católica, hegemônica no ditar de quase tudo. Lembro-me de um sermão de frei Alberto Carneiro Leão, em que esse frade proibia que mulheres adentrassem à igreja vestindo calças compridas e blusas sem mangas; recusava-se, o padre, em distribuir a comunhão para mulheres que estivessem sem um véu (echarpe) a lhes cobrir a cabeça.

Malgrado esse discurso retrógrado, em obediência às determinações do Concílio Vaticano II, os padres e as freiras, a partir de 1965, tiraram seus hábitos e passaram a circular à paisana. A missa, passou a ser celebrada não mais em latim com o padre de costas para o povo, mas sim, em português e em completa interação com os fiéis. Foi abolida a confissão auricular, e frei Damião parou de vir fazer missões em Princesa. Os tempos já eram outros, os sermões mudaram, ninguém mais ia para o inferno e, os pecados, deixaram de ser mortais para se tornarem veniais e passíveis do necessário perdão, para que se pudesse pecar de novo. O progresso religioso veio junto com a hipocrisia.

Mesmo diante da resistência dos pais que, em sua maioria, seguiam a orientação da Igreja no tocante aos divertimentos, transformações significativas também aconteceram nesse campo. Abriu-se a primeira boate com Luz Negra (Le Bartô); o beijo na boca já não “engravidava” mais; os chamados “assustados” (bailes domésticos ao som de radiolas de pilhas) se disseminaram e, democratizando o namoro, até uma cebola era dependurada no meio da sala, permitindo que as meninas “tirassem” os meninos para dançar. O cigarro, que já ocupava as bocas dos rapazes, substituiu o chiclete nas bocas das meninas. As mulheres, já podiam beber cachaça que não fora somente para ajudar na contração uterina pós-parto.

No tempo da nossa juventude - os sessentões de hoje – uma moça que se entregasse aos prazeres da carne (era assim que se dizia transar), nos braços de um rapaz, estava “perdida”; não casava mais e nem poderia conviver com as outras jovens que fossem donzelas. Hoje, um fato dessa natureza é ridicularizado, pois, uma jovem, com mais de 15 anos, que se disser virgem, mangam dela. Se fôssemos aqui discorrer sobre todas as situações de antanho, que são hoje completamente estranhas ao entendimento de quem tem menos de 30 anos, gastaríamos tempo, tinta e papel aos montes. Realçamos apenas algumas para ilustrar e situar no tempo.

No cinema, frei Alberto não mandava mais Tozinho cortar as fitas que mostravam cenas de amor. O glamour era espelhado no casal número 1 da cidade: doutor Zezito Sérgio e Lucina Maia. Ele médico e, ela, oriunda de famílias das mais tradicionais da cidade (Maia e Diniz). Na casa deles - uma construção moderna e luxuosa para a época - foi aonde ouvimos o primeiro ronco de um aparelho de ar condicionado. Viajavam de férias para Bariloche, na Argentina, e eram assinantes da revista Manchete. Nascida a primeira filha desse glamoroso casal, foi anunciado que se chamaria Stéphanie, o mesmo nome da filha de Rainier e Grace Kelly, os príncipes de Mônaco.

Fomos assim uma geração-elo, uma vez que testemunhamos tudo, desde o jumento de Zé Vermelho carregado de latas d’água, vindas do açude do Maia, que eram vendidas de porta-em-porta; à vida sem energia elétrica de Paulo Afonso, quando líamos à noite à luz do candeeiro que empestavam nossas narinas de fuligem, diferente de hoje, quando somos alertados para usar pouco o aparelho celular, para que sua intensa luz não ofenda aos nossos olhos. Escrevíamos à uma máquina de datilografia, diferente de hoje, na era digital, quando o computador e o aparelho celular são indispensáveis, o que nos permite viver de forma virtual, em comunicação simultânea e constante com o mundo todo.

Como bem disse Raul Seixas, somos o antes, o durante e o depois; o velho, o novo e o recente. Por conta disso, muito temos o que ensinar sobre o passado e muito mais a aprender com os jovens de hoje, nesse tempo em que tudo acontece rapidamente e ao mesmo tempo. Somos o tempo. Que venha a tecnologia do 5G, mas que o nosso passado não seja relegado ao esquecimento. Vale a pena ver de novo, nem que seja em saudosas recordações.






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