Hoje, é o Dia Nacional da França. Foi nesse 14 de julho, em 1789 que o povo francês invadiu e tomou a antiga prisão, símbolo da opressão do Antigo Regime Francês. Essa Revolta marcou o fim do Regime Absolutista, derrubou a aristocrata francesa e deu o tom para a eclosão da famosa Revolução Francesa. Comemorando as duas coisas: a efeméride francesa e, o lançamento do meu livro: Princesa - História e Voto, reproduzo, a seguir, o prefácio dessa obra, uma excelência saída da pena do escritor princesense, Aldo Lopes:
Este livro tem um valor documental inestimável. No correr de oitenta anos de batalhas eleitorais, Domingos Sávio Maximiano Roberto monta um impressionante mosaico do comportamento humano em face da briga pelo controle do poder político local. O seu olho tal qual poderosa câmara de monitoramento - vasculhou o cotidiano das campanhas travadas de 1935 até o ano de 2016, tudo isso sob o auxílio luxuoso de uma invejável capacidade investigativa, o saber ouvir e captar o essencial, base para a concretização de sua jornada. Todo esse esforço redundaria numa história banal campanhas insossas, capítulos replicando o mesmo enredo, mudando apenas o quadriênio e os personagens - se o município esquadrinhado não fosse Princesa, este que em 1930 virou república independente, depois de uma guerra com o "vizinho estado da Paraíba", frase cunhada pelos redatores do jornal do novo território e que - segundo o escritor Ariano Suassuna tanto irritava o presidente João Pessoa.
Ao longo de sua narrativa, Dominguinhos descreve com abundância de detalhes e conhecimento de causa os entreveros tidos e havidos entre os caciques rivais, estes que ao longo de 80 anos costuraram a história do município e se revezaram nos cargos de vereador, prefeito e deputado. Nessas disputas travavam-se verdadeiras batalhas campais, de um lado, os "nominandistas" e do outro, os "pereiristas". Era o dia dos cachorros. "Bocas-Pretas" contra "Rabos-de-couro", matilhas antagônicas a disputar o osso mais precioso: o eleitor. É como se houvesse em Princesa uma queda da Bastilha a cada quatro anos. Eram tensos os momentos que antecediam uma eleição, com os partidários de ambos os lados rosnando e mostrando os dentes. Porém, acabada a campanha, vinha a trégua, o cessar-fogo. Nesses anos todos de confronto, anota o autor, nunca aconteceu um episódio de gravidade, não se produziu um único cadáver. Em outras palavras, entre mortos e feridos escaparam todos, embora a população de Princesa até hoje continue dividida, tal qual a Verona de Shakspeare era entre os Montecchios e os Capuletos, como diria W.J. Solha, autor de "Zé Américo foi Princeso no trono da Monarquia"
Aqui o leitor não vai encontrar apenas o registro da crônica político-partidária local. Este livro vai além, dá conta do mundo lá fora, das acontecências além dos limites do Estado, das fronteiras do País, do além-mar, em função dos efeitos reflexos na política da paróquia. Dominguinhos botou a onça para beber água nas fontes de uma extensa e difusa bibliografia. Além do mais, há nessas páginas o recorte fecundo da mitologia sertaneja, onde grande parcela dos acontecimentos se situa a um passo do surreal, do escalafobético. Os personagens daqui não são inventados, foram pinçados do meio do povo: anti-heróis, palhaços, cachaceiros, espertalhões, gananciosos, filósofos, beatos, muquiranas, oradores, energúmenos, valentes, astutos, matutos, malditos, loucos, cada um brigando pelo seu espaço na história, dando o seu fígado por um cargo público, seja vereador, prefeito, deputado. Portanto, se multiplicam os Macunaímas e os Quadernas, todos movidos por um joão-grilismo sem precedentes, haja vista a grande máquina de moer gente que é a política partidária num município pequeno e do polígono das secas, encravado no Brasil setentrional.
Um dado interessante desta obra são as inserções, as notas de rodapé quase sempre trazendo anotações de fatos curiosos, verdadeiras relíquias do anedotário popular, tiradas de poetas, políticos com seus ditos engraçados, pessoas de sabença grandiloquente e iluminada. Dignos de registro os rompantes de Aloysio, as peripécias de Manito, a tranquilidade budista de Gonzaga Bento, as tiradas geniais de Joaquim Mariano e a candidatura de seu filho comunista Paulo, "o Prefeito do povo contra os arrumadinhos". De Alcides Carneiro a Manoel Gomes de Sousa Gominhol, de Antônio Nominando Diniz a Genecí Bem, a linha evolutiva da oratória. Dominguinhos traz a lume panfletos misteriosos enfiados nas portas de madrugada. O Picão também entra nessas brechas da história, jornalzinho anônimo, ácido e por vezes obsceno, fazia uma crítica social virulenta. As fofocas políticas deixam os gabinetes e ganham as ruas na voz dos mais peculiares viventes municipais, como o tabelião João Barros, que quando era criança decorou o discurso de improvisado de José Nominando e "disbuiou" ele todinho quase meio século depois e Dominguinhos correu depressa e o anotou. Fantástica a referência que o autor faz a Natália do Espírito Santo, a primeira fazendeira da região e que voava numa vassoura do alto da serra até o sítio que mais tarde virou vila e deu origem a Princesa. Nessa vertente, encontramos ainda uma boneca adivinhona, a pitonisa de Maria Aurora, velha senhora da ilustre casa de Nominando que tinha o brinquedo como oráculo. A boneca de louça pontuou por várias décadas os acontecimentos marcantes da política princesense. Consultada a respeito do resultado das eleições acertou todos os prognósticos, foi assim até o dia em que desapareceu junto com a memória da sua dona, abatida pelo mal de Alzheimer. Maria Aurora, que em 1976 deu um murro na mesa, contrariando o seu irmão e os próceres do partido", impondo sua vontade na indicação de um candidato, acabou indo ao túmulo sem jamais lembrar o lugar onde escondera sua pitonisa.
Irônico, usando um meio tom entre humor e picardia, o autor desse livro tem uma verve literária que é só sua, escreve em legítima língua de Camões, texto equilibrado, de notável propriedade vocabular, embora palavroso, mas de leitura prazerosa, porque escreve longe da boçalidade acadêmica, do estilo jornalístico panfletário, do artificialismo pedante do discurso do bacharel. A escola literária de Domingos Sávio é a academia da mesa do bar, a barraca da feira, a casa de taipa, a confraria do Cavaco, a cozinha dos "Nominandos", o alpendre dos "Pereiras" 'e vez em quando um romance de Saramago, um poema, uma biografia, um livro de memórias e outras tantas leituras de sua predileção. A tudo isso junte o ingrediente do talento que o homem nasce com ele, esse bafo demiúrgico que vem por obra e graça do DNA. E, portanto, com essa bagagem que o autor de Princesa- História e Voto se credencia e passa a ter o potencial de revelar às gerações futuras a dinâmica dos acontecimentos, o modo como os políticos - dos cabos eleitorais, do xeleléu baba-ovo mais ordinário aos cabeças-de-chapa de elite - se moviam dentro da cena fazendo seus conchavos, costurando seus interesses à luz desse grande teatro a céu aberto, que é o mundo da política, universo captado por Dominguinhos com a propriedade de quem teve a experiência dos bastidores, foi contrarregra, coadjuvante e ator principal, mais isso aí é outra história.
Aldo Lopes de Araújo, autor de
"O dia dos Cachorros"
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