ODE

sábado, 24 de junho de 2023

O CORONEL ZÉ PEREEIRA DE PRINCESA X LAMPIÃO

Uma querela histórica que não quer calar. Essa é uma história que pode ser denominada de trilateral, uma vez envolver três nuances de diferentes opiniões. Gerada pela polêmica entrevista concedida por Lampião ao médico do Crato/CE, doutor Octacílio Macêdo, em Juazeiro do Norte, em março de 1926, quando o Rei do Cangaço afirmou o seguinte sobre José Pereira Lima*: “De todos meus protetores, só um traiu-me miseravelmente. Foi o coronel José Pereira Lima, chefe político de Princesa. É um homem perverso, falso e desonesto, a quem durante anos servi, prestando os mais vantajosos favores de nossa profissão”. Essa afirmação de Lampião (já então nomeado capitão da Guarda Nacional), causa, até hoje, muito desconforto à família do ilustre Coronel – segundo vários historiadores, reputado como o maior e mais importante coronel do Nordeste -, quando, muitas vezes é usada por adversários históricos, para macular a imagem daquele vulto sertanejo. A despeito da peremptória afirmação do cangaceiro, a família de Zé Pereira, nega que tenha havido qualquer convivência, tampouco amizade entre o Coronel e Lampião. Por outro lado, alguns historiadores afirmam que Zé Pereira teve sim, encontros com o maior cangaceiro do Nordeste, sendo até por alguns, considerado coiteiro (termo regional que designava aqueles que acolitavam cangaceiros em suas terras ou fazendas).                                                                                                                                                      No entanto, a família do Coronel nega até que os dois se conhecessem. Por outro lado, historiadores afirmam que o coronel Zé Pereira conhecia e amparava - ou permitia que o fizessem -, Lampião em suas terras. Ora, nada se pode afirmar, definitivamente, com relação a isso. Analisemos o caso sob o pano das hipóteses: Lampião pode ter concedido a tal entrevista com o intuito de se promover ou de se vingar do coronel por algo menor que possa ter acontecido. Na verdade, por ocasião da entrevista (1926), Zé Pereira ainda não era famoso nem conhecido no âmbito do Nordeste ou do Brasil. A repercussão das acusações do facínora se amplificou depois de 1930, quando Zé Pereira se tornou conhecido nacionalmente. Será que promovidas para deleite de seus adversários? Mesmo assim - além de a palavra do cangaceiro não ser digna de crédito sob qualquer suspeita -, não se pode descartar completamente a veracidade de suas afirmações.

Acontece que a história não é paraplégica: suas pernas andam e, caminhando ao longo do tempo, muitas opiniões foram formadas além dos fatos. Senão vejamos: Zé Pereira, depois da “Guerra de Princesa”, ficou famoso e conhecido em todo o Brasil, quiçá no mundo. Talvez, por conta disso, a entrevista de Lampião, sacudida da poeira do tempo, adquiriu notoriedade e passou a ter mais importância através da pena dos historiadores. Daí, a polêmica. Os que defendem as assertivas do cangaceiro, dizem que Zé Pereira acolitava o “Rei do Cangaço” e seu bando em uma de suas fazendas no Povoado de “Patos de Irerê”, no município de Princesa. Afirmam até que numa luta contra as volantes da polícia de Pernambuco, ocorrida próximo ao Povoado de Patos de Irerê, ocasião em que Lampião sofreu grave ferimento no pé, foi tratado na casa de um sobrinho do Coronel de nome Marcolino Pereira Diniz, naquele Povoado, pelo médico doutor Severiano dos Santos Diniz.

Ora, nessa época – antes da “Guerra de Princesa” –, o médico Severiano, que viria a ser adversário político do coronel depois de 30, era ainda correligionário de Zé Pereira e, portanto, seguidor de suas orientações políticas. Para os que defendem as afirmações de Lampião - que são ofensivas ao Coronel -, jamais Severiano se prestaria a atender um inimigo de seu chefe político. Mas, espere aí! Como seria Zé Pereira inimigo do cangaceiro mor, se este se arranchava na casa de um seu sobrinho? Familiares do Coronel, afirmam hoje, que se isso ocorreu, foi à revelia do chefe sertanejo, pois, segundo eles, os dois sequer se conheciam pessoalmente e que, numa ocasião, o coronel admoestara o sobrinho para que não permitisse a permanência de Lampião em suas terras.

Começo a sentir o forte cheiro da hipocrisia. Como disse antes, a história tem pernas que andam e hoje, essa história específica, anda através das pernas do “Cariri Cangaço” (entidade que divulga as atividades do cangaço no Nordeste brasileiro e seus desdobramentos, influências, etc.), quando afirma e divulga que Lampião e Zé Pereira se conheciam sim e que conviveram, se não através de estreita amizade, mas se encontraram por várias ocasiões. Os familiares continuam afirmando o contrário. Esqueçamos as opiniões sanguíneas. Passemos às conjecturas plausíveis para ambas as opiniões: Em que estaria o coronel Zé Pereira, desmerecido em haver conhecido e/ou convivido com Lampião? Em nada, pois, o maior cangaceiro do Nordeste foi recebido e nomeado por sua ordem, Capitão da Guarda Nacional, pelo padre Cícero Romão Batista, no Juazeiro, em 1926, para combater os revoltosos da Coluna Prestes e, por conta disso, nada se acrescentou aos defeitos apontados pelos críticos daquele antológico mito eclesiástico cearense.

A plausibilidade da convivência de Zé Pereira com Lampião vem à luz quando se constata que Princesa, mesmo antes de 30, quando Zé Pereira não detinha ainda o seu “exército” composto de mais de 1.000 homens em armas guardando a cidade, Lampião sequer cogitou invadir a cidade. Seria da parte do cangaceiro, medo, ou acordo tácito? Na verdade, nada vem a desmerecer Zé Pereira pelo fato de haver convivido com Lampião, pois, naqueles idos isso era uma praxe que envolvia os poderosos do Sertão: se não amigos, coiteiros. Ademais, não se registra nenhum episódio em que o coronel de Princesa encetou alguma perseguição a Lampião.

O problema foi a entrevista. Se o cangaceiro mentiu, eu pergunto: com que propósito? Se estivera dizendo a verdade, perguntamos todos: qual o interesse de Zé Pereira - homem bem conceituado, de boas relações, além de possuidor de bens consideráveis –em se apropriar, ilicitamente, de bens ou haveres de um cangaceiro que afirma nunca ter visto? Ou será que Lampião, sabedor da proibição de Zé Pereira ao seu sobrinho Marcolino de “acoitá-lo” provocou nele um sentimento de vingança materializado na difamatória entrevista? E lampião? Tão valente e destemido, porque não foi a Princesa reaver o que lhe havia sido “surrupiado” quando o coronel, fragilizado (de forças armadas), retornou a Princesa em 1936? Para essa questão da “desonestidade” do Coronel, há outra versão. Segundo alguns remanescentes de 30, há que diga que a parte do dinheiro, fruto do saque de Sousa, que tocou a Lampião, foi dado ao caboclo Marcolino** para ser guardado em segurança e que, mais tarde, em tentativa de resgate por Lampião, Marcolino informou que o dinheiro estava na mão de Zé Pereira e que este não o devolveria ao cangaceiro. Fica no ar a pergunta: quem roubou quem?

Finalizando, quem pode ou deve ser obrigado a acreditar na palavra de um cangaceiro - que soa de forma isolada -, uma vez ser esse o único depoimento desabonador com relação à pessoa do coronel Zé Pereira de Princesa, uma vez que todas as demais declarações sobre aquele valente sertanejo - contidas em vários livros, revistas, reportagens, etc. -, tratam do coronel como homem íntegro e honesto? A não ser que o assalto à cidade de Sousa/PB em 27 de julho de 1924 somado à assunção de João Suassuna (amigo e compadre de Zé Pereira) ao cargo de presidente do estado da Paraíba, em 22 de outubro de 1924, por ordem deste, o Coronel tenha-se tronado inimigo de Lampião, pois, após a posse de Suassuna, foi criado, pelo Governo do Estado, o 2º Batalhão da Polícia Militar na cidade de Patos das Espinharas, sob a liderança do coronel Zé Pereira com a responsabilidade de efetivar campanha contra o Cangaço liderado por Lampião. Mesmo porque, até o ano de 1924, as volantes da Polícia paraibana eram extremamente tolerantes com relação ao bando de Lampião.

Corroborando a indisfarçada hipocrisia do “Rei do Cangaço” quando, na mesma entrevista afirmara ser “católico” (contrariando o quinto mandamento da tábua de leis da religião Católica que diz: “não matarás”) e “amigo dos juízes”, mesmo tolerando seus irmãos haverem feito de montaria o juiz Archimedes Souto Maior, quando neste montou como se fora um animal, por ocasião da invasão da cidade de Sousa na Paraíba. Merecia aquele facínora, credibilidade? Aliás, Lampião tratava do cangaço, como se fora um negócio. Naquela entrevista, disse o cangaceiro: “Estou me dando bem no cangaço e não pretendo abandoná-lo. Não sei se vou passar a vida toda nele. Preciso trabalhar ainda uns três anos. Tenho de visitar alguns amigos, o que não fiz por falta de oportunidade. Depois, talvez me torne comerciante”.

Ora, o cangaceiro considerava sua lide de bandoleiro criminoso como um negócio lícito e normal e, com relação à pretensa visita a “alguns amigos”, depreende-se que Lampião tinha em mente atacar e saquear alguns potentados do Nordeste – a quem não havia “visitado” ainda -, para engordar os seus alforjes. A hipocrisia do maior cangaceiro do Nordeste se comprova quando constatamos que sua estada no cangaço nada tinha a ver com os crimes ocorridos contra seus familiares, pois, nunca os tinha vingado, usava sua carabina para assaltar, saquear e defender-se das volantes policiais dos vários Estados nordestinos que legalmente o perseguiam, e o mais, era só negócio. Por fim, com relação à querela do Rei do Cangaço com o coronel Zé Pereira, difícil será saber quem está com a razão: Lampião, os familiares de Zé Pereira ou os itinerantes do “Cariri Cangaço”? As interpretações ficam ao sabor dos debates.

*Coronel Zé Pereira de Princesa que, por questões políticas rompeu com o então presidente (governador) da Paraíba, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, em 1930, transformando o município de Princesa/PB, em “Território Livre”, portanto, separado do Estado da Paraíba.

**Marcolino Pereira Diniz é o antológico “Caboclo Marcolino” imortalizado na canção “Xanduzinha”, composição de Humberto Teixeira e cantada por Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião” e por vários outros artistas brasileiros, a exemplo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros.



Nenhum comentário:

Postar um comentário