ODE

domingo, 3 de dezembro de 2023

Domingo eu conto

 

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

A matriarca e o pé-rapado

Corria o ano de 1975 e, em Princesa, já começavam os movimentos em busca das indicações dos candidatos que concorreriam, nas eleições do ano seguinte, para substituir o prefeito Chico Sobreira. Do lado do grupo dos “Pereira” os ânimos estavam arrefecidos desde as eleições de 1968 quando dois de seus principais quadros (Miguel Rodrigues e Joaquim Mariano) haviam sido derrotados nas urnas pelo filho de “seu” Mano, o advogado Antônio Nominando Diniz. Nesse grupo, que estava na oposição, sequer pré-candidatos se apresentavam para o concurso eleitoral que se avizinhava. Aguardavam os movimentos da situação – tal qual cachorros de açougue – para capitalizarem as sobras, as migalhas que restassem.

Já no grupo político comandado pelos “Diniz”, a coisa era completamente outra. Ali, a briga era feroz por uma vaga, tanto na cabeça quanto na rabeira da chapa majoritária que deveria concorrer à prefeitura em 1976. Hegemônicos naquele momento, os Diniz, davam as cartas e todo mundo queria ser o indicado. Na verdade – como sempre acontecia em Princesa - a eleição era como que monocrática: o ungido pelo chefe do grupo que estivesse no auge do poder era já um quase eleito. Dificilmente dava, a chamada: “Bola de Zé de Ana”. Enquanto o grupo comandado por doutor Antônio e por sua irmã Maria Aurora voavam em céu de brigadeiro, o grupo chefiado por Aloysio Pereira e Gonzaga Bento patinava em busca de um nome que pudesse concorrer, mesmo que fosse somente para constar e para não deixar correr frouxo.

Do lado dos nominandistas, eram muitos os pretendentes e, alguns deles, já haviam sido preteridos no pleito de 1972 quando, o escolhido, foi Chico Sobreira para prefeito e João Brandão para vice, ambos, com as bênçãos dos dois grupos políticos do município, formando uma chapa com candidaturas de pacificação. Naquele ano [1972], os preteridos aceitaram a situação porque não tinham para onde ir. Agora, porém, a coisa era diferente. Todo mundo queria ser o indicado do grupo Diniz, e ninguém queria ser candidato sob o amparo do grupo Pereira. Nesse jogo de empurra, nas especulações tecidas na calçada da “Casa Grande” – como era chamada a residência dos Diniz -, vários nomes vieram à tona como aptos à disputar a prefeitura: Osvaldo Marques Lima, bancário, conhecido por “Vavá Lima”; o agropecuarista, Florentino Duarte Lima; o engenheiro João Maia e, o então vice-prefeito, João Brandão, mais conhecido por “João Pacote”, dentre outros nomes de menor relevância. O problema é que, esses pretensos candidatos esqueceram de que, a decisão, vinha da cozinha e não da sala de estar daquela casa. Ademais, não combinaram com quem verdadeiramente mandava na roleta política do grupo Diniz: Dona Maria Aurora Diniz a quem, os íntimos, chamavam de “Tita”. Naquele tempo, era dela a última palavra.

Em março de 1976, logo depois do Carnaval - ano em que ocorreria a eleição para prefeito, em 15 de novembro -, os ânimos se acirraram. Na tentativa de provocarem uma decisão urgente, quanto ao nome que seria escolhido, os próceres do partido nominandista começaram a pressionar o então deputado estadual, doutor Antônio Nominando Diniz, para que escolhesse entre aqueles que faziam parte da cúpula partidária (naquele tempo não havia a prática da pesquisa eleitoral). Doutor Antônio, veio da capital João Pessoa e se fez todo ouvidos àqueles que estavam ansiosos por uma definição. Mesmo dentro de sua costumeira parcimônia e humildade, o filho do velho Mano, desconsiderou que sua irmã, Tita, deveria ser consultada e começou a costurar uma chapa que, acreditava, viesse a contento de todos.

Animados que só pinto na merda, todos os pretensos candidatos viviam no entorno do deputado em busca de sua graça. Quanto a Tita, torciam o nariz como se fora ela uma mera representante da família que deveria reverberar a vontade do irmão. Ledo engano! Quando as coisas começaram a tomar forma, para se transformarem em via de fato, qual não foi a surpresa dos pretensos candidatos, já na abertura do conciliábulo que deveria decidir quem seriam os ungidos. Convocados para a reunião, compareceram todos à Casa Grande. Mesa posta, se refestelaram com um lauto jantar e, depois, passaram à sala de estar para as conversas formais. A disposição das cadeiras, na sala, era em círculo, dando a entender que ninguém começaria em desfrute de alguma preferência. Iniciada, a reunião, esta foi interrompida quando Maria Aurora, carregando sua própria cadeira, procurou uma brecha para encaixá-la no meio daquela roda, daquele “Clube do Bolinha”. Sem dar-lhe muita atenção, o velho Belo Maia afastou um pouco sua cadeira, se encostando mais na de Benedito Lima, em abertura de espaço para Tita.

Era grande a expectativa sobre o que decidiria o doutor Antônio. Quando este começou a falar, após uma preleção usual em que agradeceu as presenças e elogiou a todos os correligionários, disse: “Estamos aqui para, unidos e em nome do que for melhor para o partido, escolher um nome para concorrer nas eleições deste ano para suceder o atual prefeito Chico Sobreira”. Nesse momento, o prefeito Chico, pediu a palavra para dizer que a decisão que fosse tomada pelo deputado seria acatada e apoiada por ele. Esse sinal, dizem, foi combinado com Maria Aurora, pois, quem seria maluco em discordar do prefeito que seria o promotor das ações que viabilizariam a eleição de quem quer que fosse o escolhido? Prosseguindo, doutor Antônio disse: “Temos aqui vários nomes, que estão aptos a concorrer por serem detentores de capacidade administrativa e lealdade ao partido”.

Até aí, Maria Aurora – a única mulher participante dessa roda de conversas – somente ouvia. Após fazer o credenciamento dos pretensos candidatos, o deputado passou a relacionar os nomes dos que poderiam fazer parte dessa desejada chapa e, para não ferir suscetibilidades, citou-os em ordem alfabética: Florentino Lima, João Maia, João Pacote e Vavá Lima. Foi aí que aconteceu a primeira incursão de Tita na conversa. Educadamente, a irmã do deputado, a ele se dirigiu e disse: “Antônio, eu quero fazer uma observação”. Pois não, Tita, pode falar, respondeu doutor Antônio. E Tita continuou: “Nessa lista de nomes que você relaciona agora, falta um que eu considero da maior importância”. “Qual?” Perguntou o irmão. “Batinho!” Respondeu, enfática, a matriarca e repetiu: “Batinho!” Fez-se, na sala, um silêncio sepulcral quebrado, alguns segundos depois, pelo deputado: “Ora, Tita, mas esse nome está fora de cogitação. É certo que Batinho é um aliado fiel, mas...” “Mas, o quê, Antônio, mas, o quê...?” Inquiriu Tita, já demonstrando sinais de irritação. Conciliador que era, doutor Antônio, tentou ponderar: “Tita, quanto a esse assunto nós poderemos conversar depois. Os nomes que se apresentam agora são aqueles que foram escolhidos pela preferência dos líderes do partido, o que não podemos desconsiderar, você concorda?” “Não! Não concordo. Líderes do partido somos eu e você! Você manda na política estadual e eu, na municipal. Quem está aqui, no dia-a-dia, resolvendo tudo sou eu e, a ligação entre nós dois é sempre feita por Batinho, um verdadeiro ‘burro de carga’ desse partido!”

O tempo fechou. Todos calados e voltados, os olhares, para doutor Antônio como que esperando uma reação enérgica à prédica de sua irmã. Claramente titubeando, o deputado, tentou mais uma vez descartar a fala da matriarca. Em vão, pois, ao questionar o fato de Batinho não fazer parte da lista, Tita investiu de forma definitiva ao dizer: “Na verdade, Antônio, Batinho não precisa constar de lista alguma porque ele já foi escolhido como meu candidato a prefeito! Se vocês quiserem, escolham o vice porque o prefeito, será Batinho e pronto!” Atônitos com o rumo que tomou a reunião, todos resmungavam à espera de uma reação do doutor Antônio. Foi aí que levantou-se o ex-prefeito Benedito Lima e disse: “E aí, Antônio, o que é que você resolve? Quem será mesmo o candidato? Afinal, quem manda é você ou é Maria Aurora?” Doutor Antônio, aturdido, ponderou: “Vamos adiar esta reunião, vou conversar com Tita em particular e, em breve, marcaremos outro encontro para decidir o que faremos”.

Decepcionados, os próceres do partido retiraram-se da Casa Grande sem sequer tomar o café que estava programado para o final da reunião. Dos presentes, apenas o ex-prefeito Antônio Maia, o vereador Gominho e João Mandú, permaneceram na residência dos Diniz. Depois dessa noite, começaram as especulações sobre os rompimentos políticos que se sucederiam, caso a vontade de Maria Aurora prevalecesse. No dia seguinte, após o café da manhã, Antônio chamou a irmã para uma conversa particular. Já iniciou tentando demovê-la do intento de emplacar Batinho como candidato a prefeito, no que deu de encontro a uma resistência inamovível da matriarca. Maria Aurora não aceitava outro nome que não o de seu “afilhado”. Vendo-se vencido, o irmão sugeriu que o preferido da mana fosse ungido vice na chapa encabeçada por um dos que participaram da reunião da noite anterior. Foi aí que Tita deu seu ultimato quando, dando um forte murro na mesa, disse: “O candidato a prefeito de Princesa é Batinho e ponto final!”

Impotente diante de tanta determinação e, impossibilitado em demover a irmã de tão grande convicção, Antônio, como Pilatos, lavou as mãos, arrumou as malas e partiu de volta para a capital do Estado, deixando o circo em chamas. Mesmo vitoriosa nessa primeira batalha, Maria Aurora sabia que dali em diante, muita coisa iria acontecer e preparou-se para tanto. Ela sabia que as chamadas lideranças não aceitariam que Batinho, um rapaz pobre e de origem humilde se sobrepusesse a eles, detentores de sobrenomes ilustres e, alguns, também possuidores de muitos bens materiais o que, segundo os próprios, seriam de indispensável serventia para o enfrentamento de uma campanha eleitoral. Sebastião Feliciano dos Santos, mais conhecido por Batinho, era um “faz-tudo” para a família Diniz. Além de vereador já no segundo mandato consecutivo, era porteiro do Ginásio “Nossa Senhora do Bom Conselho”, enfermeiro leigo com função no Hospital “São Vicente de Paulo” e fazia também o elo de ligação entre Princesa e a capital do Estado transportando doentes, encaminhando documentos, enfim, resolvendo tudo o que fosse do interesse da família à qual servia

Em que pese a reunião haver acontecido na Casa Grande, sem a presença de populares, no outro dia bem cedo, tudo já era de domínio público. Aí começaram as especulações, as distorções e as consequentes fofocas nas esquinas da cidade. Diante desse relevante fato, como é praxe, a oposição não se imiscuiu de tentar capitalizar essa crise em seu benefício. Saíram a campo aqueles que tinham capacidade de articulação para instigar os preteridos, insatisfeitos, a romperem com o grupo Diniz. Esse trabalho, por designação expressa de Aloysio Pereira, passou a ser exercido pelo ex-vereador Antônio Carlos Costa e pelo comerciante Doca Ferraz. Amigo de João Pacote, Antônio Carlos passou a envenená-lo contra seu partido. Pacote, que era cria da Casa Grande, ao sentir-se descartado e, emprenhado pelo amigo, foi o primeiro a anunciar seu rompimento com o grupo Diniz. Benedito Lima, vendo seu filho [Florentino Lima] ser rejeitado, não rompeu, mas afastou-se das atividades políticas. Vavá Lima, o mais cotado de todos, transformou-se, portanto, no mais agitado e mais ferrenho adversário de seu antigo Partido. Nas rodas de conversas comandadas pelos que foram descartados da sucessão, o que rolava era o comentário de que, Batinho, um “moleque de recados” da Casa Grande não poderia se sobrepor aos interesses dos representantes da elite partidária.

Tentando ainda contornar a situação, Antônio Nominando, em meados de abril daquele ano de 1976, retornou a Princesa para uma última tentativa em demover a irmã dessa indicação que, no seu pensar, estava a esfacelar a agremiação partidária. Em sua última conversa com a mana sobre o assunto, o deputado insistiu: “Tita, Batinho não tem condições de arcar com as despesas de uma campanha eleitoral que, agora, se afigura ferrenha. Na rua, já estão dizendo que nós estamos apoiando um ‘pé rapado’ para prefeito de Princesa, e isso não recomenda bem numa campanha eleitoral”. E ponderou: “Em prol do Partido, reveja sua posição, ainda há tempo!” Inflexível, Maria Aurora deu outro murro na mesa e disse: “Antônio, eu já lhe disse que o candidato é Batinho”. E continuou: “Outra coisa, quanto a essa história de que ele não tem dinheiro, lhe asseguro: eu vendo o último boi da fazenda que papai deixou, mas elejo Batinho!”. Vendo que a questão estava fechada, que era prego batido e ponta virada, doutor Antônio sucumbiu, definitivamente, à vontade da irmã, entregou-lhe o comando da campanha, partiu para João Pessoa e só veio a Princesa para a realização de dois comícios. O resto, foi Tita quem coordenou.

Passada a tempestade da escolha e, acontecidos os rompimentos, restou ao Partido dos Diniz escolher um candidato a vice-prefeito e organizar a campanha. Sendo um dos poucos que restou daquela fatídica reunião, o vereador Gominho foi o escolhido como companheiro de chapa de Batinho. No dia dessa escolha, em sua fala, numa reunião ocorrida na Câmara Municipal para o lançamento da chapa, Gominho discursou: “O negócio não é ser, é saber ser e nós vamos ser eleitos, porque, a vontade de ganhar, tira o medo de perder!” Do lado dos Pereira, com os rompimentos de João Pacote, Florentino Lima e Vavá Lima, formou-se uma chapa com João Pacote na cabeça e o então vereador e agropecuarista, Epaminondas Bezerra Leite, mais conhecido por “Novo Bezerra”, na vice. Dois candidatos ricos disputando pela oposição contra dois cidadãos de pouca relevância social e, nenhum dinheiro, representando a situação. Foi a campanha do tostão contra o milhão. No decorrer do périplo eleitoral, muita violência verbal ocorreu, porém nada de agressões físicas. Foi, talvez, a campanha mais disputada da história de Princesa, até então. Acontecida a eleição, em 15 de novembro de 1976, quatro dias depois da votação, apurados os votos, ainda em cédulas de papel, foi conhecida a vitória do “afilhado” de Maria Aurora, Batinho, que foi eleito com uma maioria de 179 votos sobre o seu contendor, João Pacote, um rico agropecuarista que reuniu, em torno si, os apoios mais importantes da elite princesense de então. O tostão venceu o milhão e, a matriarca, elegeu o “pé-rapado!”



 

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