ODE

sábado, 27 de abril de 2024

Domingo eu conto

 Por Domingos Sávio Maximiano Roberto 

Os Santos Rejeitados

Inverno de 1967. Naquela época, empolgados todos pela recente construção de Brasília e com aquele sentimento de modernização por que passava o país, depois do “furacão” Juscelino Kubitschek, quase todos queriam o novo. Porém, em Princesa, essa modernidade aconteceu em detrimento do patrimônio histórico, representado pela velha igreja e por alguns outros imóveis históricos que compunham o casario antigo da cidade. O prédio da igreja Matriz Nossa Senhora do Bom Conselho, que havia tido sua construção terminada em 1875, estava quase completando seu primeiro centenário.

Infelizmente, isso ficou impedido, pois, chegou a Princesa um padre, descompromissado com a história da cidade e, sem planejamento ou consulta popular, decidiu derrubar a velha igreja para construir um novo templo. Isso, sob a alegação de que, o prédio, estava prestes a desabar. Desculpa de amarelo; aquela edificação poderia haver sido restaurada, recuperada. Mas não! Derrubou a quase centenária igreja. Para isso, contou, frei Anastácio Palmeira (frade da Ordem Carmelita e vigário da Paróquia, oriundo das terras alagoanas), com o apoio do prefeito, Gonzaga Bento, e com a omissão, se não intencional, mas, deliberada dos do grupo “Diniz”.

É sabido que, naqueles idos da década de 1960, era ainda, a Igreja, quem mandava em tudo. O padre, tinha mais importância e poder do que as autoridades constituídas. A vontade da Santa Madre Igreja, através de seu vigário, tinha de ser respeitada, e era incontestável. Mesmo que esse argumento possa anistiar o prefeito Gonzaga Bento de alguma culpa de conivência com o crime cometido contra o patrimônio histórico municipal, ou isentar os “Nominando”, de omissão, não justifica o fato de que nenhuma das autoridades do município tenha sequer tentado demover o padre desse criminoso intento.

Nominando Diniz, pelo menos, ainda ofereceu um terreno (lá onde funcionava sua indústria de processamento de algodão, o antigo “vapor”, onde hoje está localizado o chamado “Bairro Maia”), para que, o vigário demolidor, construísse ali uma igreja nova e deixasse o antigo templo de pé, para que fosse transformado em museu. Nada convenceu ou demoveu o religioso em sua sanha destruidora. Nem o argumento de que, naquele prédio histórico, vários eventos religiosos de grande significância aconteceram e que foi ali, onde vários homens e mulheres ilustres da nossa história, foram batizados e casados e onde muitas reuniões importantes foram realizadas. Nada disso convenceu o religioso a preservar aquele patrimônio.

Anastácio, sem escrúpulo algum, desrespeitando a história de uma terra que não era dele, mandou passar o trator por cima de tudo; derrubou a igreja sem se importar sequer com o que existia no interior daquele templo. Não fora a população, resgatar os móveis e demais objetos sacros, tudo teria sido destruído como o foram as paredes e alguns altares trabalhados caprichosamente por mestres da terra, como o “princesense” Antônio Belarmino Barbosa (1864-1936), mais conhecido por “Mestre Belinho”. Não ficou pedra sobre pedra e, no local onde existia a antiga igreja, o então prefeito, Gonzaga Bento, mandou construir uma praça para homenagear seu sogro, o coronel José Pereira Lima. Na esteira dessa destruição, o padre, varreu também, do centro da cidade, grande parte do casario antigo e histórico da urbe princesense.

Da forma como não respeitou altares e mobiliário, Anastácio poderia ter também destruído a santaria da Igreja. Mas, não. Talvez por respeito ou, temendo incorrer em pecado grave, o vigário resolveu distribuir, os Santos, pelas casas dos fiéis católicos, daqueles mais abastados ou, dos mais beatos. O principal de todos os Santos da Igreja era o “Senhor Morto” – uma escultura, em madeira, de Jesus Cristo, morto – da lavra de “Mestre Belinho” -, deitado num caixão, também de madeira, que ficava logo à entrada do templo. O padre designou essa imagem para a casa de dona Cecília Pires. Passada somente uma semana, a mulher foi ao convento e disse ao frei Anastácio: “Padre, eu respeito demais Nosso Senhor Jesus Cristo, mas, que Deus me perdoe por caridade – e persignou-se –, eu não vou querer uma assombração daquela na minha casa. Todos os dias, quando acordo, tá lá, um homem morto na minha sala. Me perdoe, mas, pode mandar buscar o Santo”. Frei Anastácio recolheu, o “Senhor Morto”, e o mandou para o Colégio das freiras.

No dia seguinte, foi a vez da solteirona Domitila Andrade. O vigário, havia mandado São Sebastião para sua casa. No dia seguinte, a “Moça Velha”, chegou ao Convento com a imagem debaixo do braço e disse: “Frei Anastácio, eu tive pensando: não é justo eu ficar com esse Santo lá em casa”. “Por quê”, perguntou o padre. Domitila continuou: “Eu passei 17 anos namorando Sebastião Medeiros e, ele, me trocou por outra. Eu não vou aguentar mais um “sebastião” na minha vida. Taí o Santo, mande ele pra outra freguesia..." Surpreso, o sacerdote ponderou: “Então, leve São Benedito”. Domitila aceitou, e levou o Santo para casa.

No outro dia, lá vem a solteirona de novo, acompanhada de um menino, com a imagem de São Benedito numa carroça: “Frei Anastácio, esse Santo também não vai dar certo ficar lá em casa”. “Por quê, dona Domitila?” Inquiriu o vigário. A moça, já demonstrando impaciência, disse: “Ontem, eu passei o dia na luta em casa: lavei, engomei, cozinhei, arrumei a casa e, enquanto eu morria de trabalhar, esse negro, num trono, a me observar, e eu, não estou pariada a isso não. Acho um desaforo! Tome seu Santo”. Rindo, frei Anastácio perguntou: “A senhora tem alguma coisa contra Nossa Senhora das Dores?” A moça respondeu: “Não, tenho não”. “Então leve ela e, pelo amor de Deus, não me cause mais problemas!” Encerrou o padre.

Outra imagem, a de São Manoel da Paciência, foi designada para a casa de dona Maria Liberalquino, outra solteirona. A “moça velha” era uma artesã muito habilidosa no fazimento de flores artificiais. Quando da chegada do Santo em sua casa – uma imagem de um homem de corpo bem delineado, coberto apenas por um pano curto que só lhe cobria as vergonhas –, Maria preparou uma mesinha, bem forrada, pôs São Manoel em cima e, nos pés da imagem, um jarro de flores, das que ela confeccionava. Feliz, foi dormir.

No outro dia, ao acordar, Maria Liberalquino, sentou-se numa cadeira de balanço, na sala de estar de sua casa, e passou a observar, detalhadamente, a imagem recém-chegada. De súbito, pôs-se de pé, pegou o Santo e partiu para a casa dos padres. Lá chegando, não estando frei Anastácio, encontrou frei Cirilo, e foi logo dizendo: “Frei Cirilo, entregue esse Santo a frei Anastácio”. “Mas, por quê, dona Maria?” Perguntou o frade. “Não vai dar certo ele ficar lá em casa”, disse, a florista. “Por quê, dona Maria, qual o problema?” Perguntou o frade. “Padre, o senhor há de compreender: não dá certo, eu, uma moça direita, conviver com um homem quase nu dentro da minha casa. Isso não pega bem. Fique com seu Santo”.

À noite, quando frei Anastácio chegou ao convento, deparou-se com São Manoel em cima de uma mesa, e perguntou porque o Santo estava ali e não na casa para a qual havia sido designado. Frei Cirilo explicou a situação e, o vigário, foi à casa de Maria Liberalquino levando a imagem de São Tarcísio a tiracolo. Lá chegando, o padre perguntou: “Dona Maria, a senhora aceita ficar com São Tarcísio, o padroeiro dos coroinhas?” A mulher exultou: “Ah! São Tarcísio eu quero: o ‘Mártir da Eucaristia...’”. São Manoel da Paciência, foi parar na casa do alfaiate e professor de datilografia, Antônio Eugênio Besêrra, por sua própria escolha.

No bojo dessa distribuição de Santos, o fato mais emblemático foi o que envolveu outra solteirona. Dona Antônia Gastão, era uma “moça velha” da mais alta sociedade e era também, cantora da Igreja e uma das comandantes da “Pia União das Filhas de Maria”. Instada, pelo vigário para abrigar, em sua casa, a imagem de Santo Antônio, de pronto, Antônia Gastão recusou-se em recebê-lo: “Não posso, nem devo, frei Anastácio. Esse Santo foi muito ingrato comigo. Passei minha vida toda implorando, em orações, para que ele arranjasse para mim um bom casamento e, esse ingrato, nem um casamento ruim, ele me providenciou”. Tentando convencê-la, o padre argumentou: “Mas, dona Antônia, é somente uma imagem...” Antes que o sacerdote continuasse, a solteirona completou: “Mas, foi justamente a imagem que me enganou quando amarrei-a de cabeça pra baixo, e nada! Quero ele arranchado na minha casa não! Me dê Nossa Senhora da Conceição, essa sim, nunca fez mal a ninguém!”    

Os problemas se acumulavam com as recusas em aceitar alguns Santos. No entanto, muitos outros foram bem recebidos pelos fiéis católicos, a exemplo do arcanjo São Miguel, que ficou na casa do professor Genésio Lima; de Nossa Senhora do Carmo, que estabeleceu-se na casa da minha mãe, Osana Roberto; de São Jorge, que foi acolhido por dona Ana de Zé de Quincas; de São Cristóvão, que foi parar na casa de Gerson Patriota, e outros Santos e outras casas mais.

Dentre os Santos bem acolhidos, teve São Luiz Gonzaga, que foi solicitado por dona Xandu, viúva do coronel Zé Pereira. Esse, talvez, tenha sido o Santo mais bem cuidado de todos. Afinal, além de ser o Santo da devoção de dona Xandu, tinha o nome de seu genro, Gonzaga Bento. Luiz Gonzaga, o santo de verdade, bento pelo bispo e, Gonzaga, o genro, que estava mais para santo do pau-oco, por várias vezes, abençoado pelas urnas de Princesa, conviveram em perfeita harmonia.

Os demais Santos – tanto os rejeitados como os que sobraram -, foram designados para o Colégio das freiras ou – ironicamente - para o Instituto “Frei Anastácio”. Com a construção do novo templo, essas imagens sacras retornaram, todas, para a Igreja, onde ainda hoje lá estão, inclusive a de São Brás Bispo, o Santo protetor contra os males da garganta, aquele que se apresenta com duas grandes velas cruzadas, a quem, nós, quando jovens e frequentadores da Igreja, o chamávamos de “São X”. Entre mortos, pretos, nus e ingratos – para o bem da história e da arte –, em que pese os problemas havidos, todos os Santos escaparam da demolição.



 

 

 

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