ODE

sábado, 15 de janeiro de 2022

Lembranças da “Rua Nova”

A Rua Coronel Florentino, antigamente chamada de “Rua Nova”, é uma das artérias mais antigas da cidade, localizada no centro de Princesa. Nasci e me criei ali. Ali vivi minhas brincadeiras de criança junto com amigos que, em sua maioria não estão mais em Princesa. Porém, o mais triste é constatar que a Rua Nova de antigamente já quase não existe mais; tanto em sua antiga arquitetura quanto em relação aos que ali moravam. Os mais velhos morreram todos e, os mais novos, meus contemporâneos, quase todos foram-se embora de Princesa. Quase tudo foi também destruído ou modificado. Mesmo assim, ainda povoam a minha memória várias imagens e recordações que delas não me aparto jamais. Rebuscando em minhas lembranças, vejo nitidamente, o casario, a paisagem com suas altas palmeiras, os frontispícios das casas de residência, e os moradores da “Rua Nova” como se tudo existisse ainda.

                                 Viagem no tempo

Começando pela cabeceira da “Rua Nova”, enveredando pelo lado direito de quem desce a artéria, inicio pela casa de dona Maria da Paz (enteada do major Feliciano) que era também a antiga residência do major. Aquela casa (que não existe mais) serviu de cenário para as apresentações amadoras de peças teatrais (dramas) encenadas pelas sobrinhas-netas de dona Maria da Paz. A velha se divertia muito se divertia com a performance das meninas (Maria de Ada, Mônica, Noca de Bení e suas amigas). Na casa vizinha, morava um outro filho do major, Chico Feliciano, onde também funcionava o Cartório do Registro Civil que tinha este como seu tabelião. Chico Feliciano - casado com dona Gonzaga -, era agnóstico, mas, deixava que sua esquisita mulher exercesse sua religiosa generosidade quando permitia que a mesma, vez por outra doasse caixas de fósforos para o acendimento das velas da vizinha Igreja Velha.  Parede-meia com essa casa moravam as solteironas chamadas, “as Borrêgos”: Maria Adília, Quitéria, Tertuzinha e Tertú Velha. Eram as duas primeiras, professoras e, as últimas, cuidadoras do lar. O divertimento principal dessas chamadas “moças velhas”, era desfilar, rua-acima, rua-abaixo, todas as tardes, de braços dados com a amiga Ada Barros, em passeio ou em busca da casa do irmão desta última, João Barros. Vizinho às “moças velhas” morava a família de “Zé de Quincas”, esposo da paciente dona Ana e pai de Mundinha, Lourdes Medeiros, Zé Novo e Damião. Essa casa, que na verdade era um casarão, mais parecia um abrigo, pois, ali moravam, além da família, algumas agregadas idosas, doentes mentais ou criadas: Úrsula, Alexandrina, Santa, Lourdes Gomes... Em seguida, encontrávamos a casa de Marçal Carlos de Andrade, mais conhecido como “seu” Marçal do Silva, ferrenho correligionário do grupo “Pereira”, que era casado com dona Rosa e pai de Xandú, Aurineide, Socorro, Heloísa e João Bosco. Vivia sentado numa cadeira de balanço, na calçada, a confabular com Jandira Góis, Marçal de Sulina, Juanita Cardoso e demais presentes sobre os assuntos políticos da cidade. Imediatamente anexa à casa de Marçal, outro Marçal (Medeiros), sogro do vereador Chico Virgulino, tinha uma bodega (segundo as más línguas, local para encontros furtivos e extraconjugais). Vizinha à venda, residia Amália Gregório (que às vezes, ajudava lá em casa). Imediatamente depois, estava a residência do comerciante Mirô Arruda (dono de uma mercearia localizada na Rua Grande), que tinha sempre à uma das janelas da casa, sua esposa, dona Antônia, acotovelada numa almofada a espiar a rua sem deixar, porém, de cuidar das filhas Ceição e Lourdes e do filho João. Vizinha estava a minha casa. Aliás, era essa a única residência da “Rua Nova” que abrigava eleitor adversário dos “Pereiras”, uma vez que, a minha mãe, dona Osana Roberto, após ficar viúva, foi agraciada com um emprego no Hospital São Vicente de Paulo, dado pela matriarca nominandista dona Maria Aurora Diniz e, por gratidão, passou a votar nos do grupo “Diniz”, porém, mesmo assim, mantendo a vontade de meu falecido pai (major Nequinho), um empedernido pereirista, minha mãe mantinha, numa das paredes da sala de estar da nossa casa, um retrato emoldurado do coronel José Pereira Lima e outro do tribuno princesense e compadre Alcides Carneiro. Este último, padrinho do meu irmão, Antônio. Em seguida residia dona Belmira Carlos acompanhada de sua filha, a solteirona Anália e da adotiva Odete. A anciã, sempre calçando sandálias baixas com meias, era a velhinha mais limpa e cheirosa que já conheci. Pedíamos-lhe a bênção e ela nos abençoava dizendo: “Deus lhe dê fortuna”. Fazendo o que chamamos de “parede meia”, estava a casa de “seu” Lulu e dona Iraci Florentino que eram pais de Zé Galego, Laurí, Inaldo, Socorro e Fátima. Imediatamente vizinha estava a casa de “seu” Marcolino que estava sempre recostado a uma “preguiçosa”, acompanhado de sua branquíssima esposa, dona Ritinha que vendia ovos de galinhas de capoeira. Encostado, antes do “Beco de Severino Barbosa” estava o hotel de dona Sinhá. Viúva do rico capitão Severino (meu tio paterno), dona Sinhá era uma senhora alta, elegante e vaidosa que, entrevada por doença, caminhava “engomando”, porém, mesmo assim, dirigia a principal e mais “sofisticada” hospedaria da cidade, pois, era ali que os juízes e promotores se acomodavam para dormir e comer. Morava também, naquele hotel, um dos “rapazes velhos” da família Lima: Neco, e outro da família Maximiano: João.  

Depois do Beco

  Atravessando o beco, deparávamo-nos com a padaria de Severino Barbosa de Oliveira que, além de rico comerciante e político, era casado com a “fraca do juízo” Carminha e pai de Marlene, Luizinha e Armênio. Severino morava em uma casa imediatamente vizinha à padaria que, posteriormente, foi ocupada pelo casal José França e Adalzira. Descendo um pouco mais, residia dona Francisquinha de Fófa e sua numerosa prole: Vavá, José, Socorro, Preta; Tontõe; Tereza; Graça e Dandão, desfalcada de um de seus filhos, chamado Rivaldo a quem apelidavam de “Peba” e que foi assassinado ainda jovem por Lula Roberto. Casa fatídica, pois, foi nesse mesmo imóvel que aconteceu o duplo assassinato do casal Octacílio e Xandú, em 1937, por motivos passionais. Ao lado de dona Francisquinha, residiam mais duas solteironas: Domitília e Francisquinha, ambas, irmãs de “seu” Marçal do Silva e primas do coronel Zé Pereira. Estas eram vizinhas do jovem casal João Barros e Ceição Lima que tinham ao lado a solitária viúva, pequenina e frágil, dona Genesina Florentino. Seguindo o mesmo percurso, vamos encontrar, sem interrupção, a casa das solteironas Carminha e Sitônia, fazedoras dos melhores sequilhos e raminhos e que eram irmãs do ex-prefeito Zacharias Sitônio. Em seguida, estava a residência do pacífico, educado e religioso casal formado por “seu” Tote e dona Joaninha, pais de Neuzinha Sitônio e, portanto, sogros do comerciante Edezel Frazão. Foi nessa casa que aconteceu – debaixo da mesa que suportava o oratório com o santuário de “seu” Tote - o trágico assassinato de “Peba”, filho de dona Francisquinha de Fófa. Vizinha a esta, ficava a casa de “seu” Zacharias Sitônio, casado com dona Hermosa Pereira e pai de Marta, Mariângela e Margarete. Para terminar esse lado da “Rua Nova”, existia um terreno baldio que, mais tarde foi ocupado com a construção da residência do tabelião João Barros e do “Princesa Clube”.

Os fundos da “Rua Nova”

Ao final da artéria em tela, existiam três casas que mais pertenciam à Praça “Epitácio Pessoa” do que propriamente à “Rua Nova”. Ali moravam, da esquerda para a direita: dona Calú que misturava a sua residência com uma pequena bodega onde vendia queijos, galinhas e ovos de capoeira; Genuíno Cordeiro que vendia leite e queijos e, vizinha a este, a solteirona Estela Cavalcanti que, às “Noites de Natal”, desfilava pelas ruas da cidade com uma imagem do “Menino Jesus” acondicionada dentro de uma caixa, a pedir esmolas, não sei para que fins, acompanhada da professora Alice de “Padre Maia”, a tocar um pequeno sino. Atravessando a rua que levava ao cemitério, dávamos com as ruínas da antiga Igreja do Rosário dos Pretos que foi destruída pelos frades Carmelitas em 1967 e, mais ao lado, estava a casa do ex-prefeito e poeta Belarmino (Belo) Medeiros onde residia com Rosenda, sua mulher e seu temporão e único filho, Robson que, bem cuidado, todas as tardes, após o necessário banho, sentava-se à calçada todo “lorde” e com seu bem penteado topete.  

O lado mais alegre da “Rua Nova”

Terminado o nosso périplo pelo lado direito da “Rua Nova”, iniciamos o lado esquerdo pelo “Palacete dos Pereiras”. Ali residiu, no início da década de 1920 - após mandar construir aquele palacete -, o sobrinho homônimo do ex-presidente Epitácio Pessoa, quando homiziado em Princesa por um crime passional cometido no Recife. Retornando à capital pernambucana, “Epitacinho” presenteou Luizinha - filha do coronel José Pereira -, com aquele majestoso imóvel. Por muito tempo aquele sobrado serviu de residência à sua proprietária, seu marido, Gonzaga Bento - que foi prefeito de Princesa por três mandatos - e seus filhos Rosane e Humberto. Continuando a subida achamos a casa dos criados do palacete (hoje demolida, no local se situa a casa do ex-deputado Aloysio Pereira), construção similar às erigidas em adobe que fazia lembrar as “ruínas de Caracala”. Ali moravam Ana (governanta dos “Pereiras”) que era casada com Antônio Tenório e mãe de Neném, Véi, Tião e Dedé. Curioso observar que ali residia também, sob o mesmo teto, a negra Vitória (irmã de Ana) que era também governanta, mas de um figadal adversário dos “Pereiras”: o doutor Severiano Diniz. Subindo, se achava a residência do casal Benedito Lima e dona Candinha que, mais tarde, serviria de moradia para seu filho Florentino Lima e sua esposa Vera.  Nessa casa, tinha um pé de seriguela que se constituía na melhor da cidade e nós, crianças, corríamos o risco de sermos flagrados por dona Antônia (a empregada da casa), quando pulávamos o muro para roubar aquelas deliciosas frutas. Encostado a essa residência estava o prédio onde funcionava o “Cine Santa Maria”, administrado pelos frades Carmelitas. Esse Cinema, que foi inaugurado em 1924, funcionava de forma precária quando, seus assistentes eram obrigados a levar seus assentos (cadeiras e tamboretes) para as sessões cinematográficas. Ali funcionou também, na década de 1920, o “Theatro Pereira Lima”. Separando o Cinema da continuação da rua havia um beco (hoje, conhecido como “Beco da Rádio”). Em seguida estava a casa de “seu” Biu que era pai do futuro prefeito Batinho, de Selma e de Gerson. “Seu” Biu passava os dias a consertar seu velho caminha FNM que nós chamávamos de “Fenemê”. Vizinha estava a casa de “seu” Batista Lima e de dona Benedita. “Seu” Batista andava empertigado e primava pelo bem-vestir, se apresentando sempre todo enfatiotado. Mas, o que mais chamava a nossa atenção eram as gêmeas idênticas: Fátima e Antonieta que, vestidas rigorosamente iguais, mais pareciam um par de jarros. Seguindo, estava a residência de Rafael Alves, marchante e vítima de assassinato pelo mesmo algoz que cometeu o crime hediondo que ceifou a vida do filho (Peba) de dona Francisquinha de Fófa. Nesse imóvel, tempos depois, residiu a família de Tião Basílio, casado com dona Expedita e pais de Eudésia, Eudes, Edna, Ceição, Tiquinho e Rosarinho. Depois dessa casa, vinha a residência de “seu” Neco Genuíno e dona Quitéria Antas, (avós de Hélio e Neide) esta, muito gorda, era fazedora dos melhores queijos de manteiga da cidade. Continuando a subida dávamos com a casa das “Marrocos”, solteironas juramentadas (Dorothéa; Lede Claire e Doralice) que, além de educadoras e prendadas eram cantoras da Igreja. Ao lado dessa casa, morava “Chico Pedro”, casado com dona Maria e pai de Dão que, sempre prodigamente abastecido de aguardente, vivia a tanger um imaginário “pôico”. Seguindo na mesma direção estava a casa-oficina de “seu” Elisbão (marido de dona Áurea e pai de “Neném” e “Cum-cum”) que, sempre usando aquela ridícula lupa ocular, vivia a consertar relógios. Encostada à casa do relojoeiro existia uma marcenaria, pertencente a Zé Honório que, muito zoadenta, só funcionava após as aulas, que aconteciam na vizinha escola da professora solteirona, filha de “Padre Maia”, dona Maria Alice Maia, que morava junto a seu pai e sua irmã Quina. Professora particular, dona Alice, vivia em constante conflito com o alto volume do rádio da casa seguinte onde morava o cabo Romeu e esposa dona Nely, que tinham os filhos: Romeu, Ronaldo e Roberto quando transmitindo a novela “O Direito de Nascer”. Nessas ocasiões, enquanto dona Alice ensinava o “Bê-a-bá”, cantado, sua irmã Quina, também “moça velha” e useira da palmatória para punir os alunos da irmã, insistia com dona Nely, esposa do cabo para abaixar o volume do rádio. Encerradas as atividades da marcenaria, da escola e do rádio, começava a sessão de músicas executadas pela radiola de dona Celina, que morava ao lado e era casada com Aparício Duarte com quem tinha as filhas, Sônia e Carminha. Em seu aparelho musical portátil, dona Celina, só fazia executar canções de Núbia Lafayette. Vizinho à casa de Aparício, estava o hotel de “Zabé” onde almoçavam os chamados “viajantes” e os dois soldados de polícia que destacavam em Princesa. Logo em seguida, a barbearia de “seu” Expedito Leandro que fazia parede-meia com a pequena bodega de Napoleão onde se encontravam à venda bananas e mais algumas frutas.  Para completar a animação desse lado da “Rua Nova”, morava, num quartinho apertado, o maluco Antônio Conrado, apelidado de “Lagatão” que, quando surtava, fazia barricadas com vários caixotes de madeira espalhados pelo meio da rua e começava a disparar sua imaginária “metralhadora” disfarçada por uma das traves que serviam de trancas para as portas inteiriças de sua exígua moradia. Ufa! Chegamos ao final dessa nostálgica caminhada pelo tempo, culminando com a bodega de “seu” João Rosas que depois pertenceu a Vavá de Fófa e, hoje, é administrada por “Zé Galego”. De todos os moradores ou comerciantes aqui referidos, somente a bodega de Zé Galego resistiu ao tempo que, transformada em “Mercadinho”, continua no mesmo lugar.

     Foi essa a “Rua Nova” onde nasci e me criei, e que hoje, totalmente desfigurada, não existe mais.



                                           

Um comentário:

  1. Texto primoroso e nostálgico. Este (autor) sim tem propriedade pra falar de Princesa Isabel pois, cidadão nato que é, demonstra em cada detalhe narrado seu verdadeiro conhecimento e amor por esta cidade! Parabéns, Dominguinhos! Continue nos prestigiando com essas maravilhosas aulas sobre nossa história!👏👏👏

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