ODE

sábado, 18 de novembro de 2023

Domingo eu Conto


Por Domingos Sávio Maximiano Roberto 

A chegada de Paulo Mariano ao “Reino da Gulora” 

Na manhã da terça-feira, 21 de novembro de 2018, depois de abandonar, de forma definitiva, o corpo que o abrigava há 84 anos, Paulo Mariano, se dirigiu para o Inferno - local para onde achava que seria designado. Lá chegando, sob um calor intenso, após uma espera de quase setes horas, foi autorizado à adentrar à sala principal de um lugar que mais parecia um prédio em escombros. Em seu interior, observou que estava aberta uma janelinha da porta de recepção. Aproximou-se e viu lá dentro, sentada a uma cadeira, uma figura chifruda, certamente um Cão. Era um indivíduo ainda novo e estava de cabeça baixa, a examinar alguns papeis. “Bom dia!” Disse Paulo. “Bom dia”, respondeu o que deveria ser o Demônio que ainda de cabeça baixa, reticente, acrescentou: “Pode dizer...” Com isso, levantou-se da cadeira e, sem olhar para o visitante, abriu uma gaveta e começou a manusear algumas fichas. Paulo observou que o espírito do mal – um assecla de Lúcifer, de estatura baixa, bunda grande, daqueles torados no grosso e que, pelo que estava escrito no crachá, já com quase dez anos de Inferno - demonstrava muita intimidade com o ofício de recepcionista daquele ambiente de tormenta. “Sou Paulo Mariano de Princesa e vim me apresentar...” Disse o visitante. Ao ouvir de onde procedia essa nova alma penada, o diabo-encarregado virou-se e, surpreso, disse: “Ôxe, Paulo, que diabo tu tás fazendo aqui?”

 

O espírito de Paulo, admirado pela ignorância do pequeno satã sobre um fato de que deveria ter conhecimento, respondeu: “Oxente, eu morri ontem e vim me apresentar. E tu me conheces?” O Cão exprimiu um risinho com o canto da boca e disse: “Menino, aqui a gente conhece todo mundo”. Ainda consultando uns papéis, o satanás-auxiliar fez a seguinte observação: “Olha, Paulo, teu lugar num é aqui não! Tu num tás em nenhuma lista. Quem te mandou pra cá?” “Ninguém”, respondeu Mariano, e completou: “Eu mesmo achei que depois de morto, só me restaria o Inferno. Passei a vida inteira escutando de todos que: ‘comunista não entra no Céu’ e, desde criança, ouvia isso também nos catecismos de dona Maria Basílio, nos sermões de frei Damião e nas preleções que João Mandú fazia antes de encomendar os defuntos, principalmente, quando eu estava presente”. E acrescentou: “Além disso, passei a vida tomando cachaça, fumando e, pra completar, escrevi e fiz editar vários livros sem aprovação eclesiástica. Por isso, vim prá cá”.

 

“Sendo assim, peraí”, disse o cão-recepcionista, e continuou: “Vou consultar meu Chefe”. Dito isto, adentrou por uma portinhola que tinha ao fundo da salinha de recepção, deixando-a entreaberta. Ficou Paulo a esperar. Nesse ínterim, começou este a ouvir, de longe, vozes gritando seu nome: “Paulo Mariano!”, “Paulo Mariano!” Quando o Cão retornou, Paulo perguntou: “Porque lá dentro estão chamando pelo meu nome?” Ao que o demônio bundão respondeu: “São todos de Princesa”. Aí, Paulo disse: “Mas, eu não tô reconhecendo ninguém”. O Cão riu e disse: “Ah, meu filho, lá na Terra pode-se ter a cara de pau, porém, aqui, as caras são todas iguais. Até eu sou de Princesa...!” E continuou: “Olha, teu canto num é aqui não. Aliás, vou te confessar um segredo que tu não revelarás a ninguém: ontem, por volta das nove e meia da noite, quando tu já estavas mais pra cá do que pra lá, houve uma reunião de emergência do Alto Conselho do Inferno e ficou decidido, por unanimidade, que não te receberiam aqui por hipótese alguma. O motivo da recusa - levantado por Brilhante Ustra, Fleury, Lampião, Newton Cruz, dentre outros –, o que foi acatado por Lúcifer, produziu uma sentença, lida no final da reunião pela alma de um alto figurão de Princesa que, de pé, proferiu o seguinte veredicto: “Manda Paulo Mariano acanalhar noutra freguesia, aqui, NÃO!” Ouvindo isso, Paulo disse: “Oxente, e eu vou pra onde?” Ao que o Satã respondeu: “Daqui, não se desce mais para canto nenhum. Vai subindo por aí que tu encontrarás onde pousar prá sempre”. E com essa última resposta, foi fechando a janelinha.

 

Paulo, mesmo desorientado, seguiu o conselho do Diabo e partiu ladeira acima. Após sair do calor infernal que circundava a “Geena” lotada de princesenses, avistou algumas parcas nuvens e, dentre elas, identificou um grande portão e pensou: “É ali”. Ao aproximar-se, viu o nome: PURGATÓRIO. Porém, no meio do portão, estava afixada uma tabuleta com a inscrição: FECHADO DESDE JANEIRO DE 2001. Aí Mariano se lembrou que o papa João Paulo II, em dezembro do ano 2000, por ocasião das comemorações do “Jubileu do Milênio”, quando a Igreja arrependeu-se de seus pecados. Após anistiar Galileu, Copérnico, Padre Cícero, Giordano Bruno, Joana D’Arc, dentre outros considerados hereges pela Santa Madre Igreja, o Sumo Pontífice havia também determinado o fechamento do Purgatório. “E agora? Para onde eu vou?”, pensou Paulo. Se não tinha reserva no Inferno e o Purgatório tava fechado, restava-lhe somente o Céu.

 

Mesmo achando esquisito, Paulo continuou subindo. Nesse momento, notou que, em suas “apás”, cresciam duas asinhas. Aí pensou: “Eu, Anjo? Não! Tão zonando da minha cara ou, por outra, deve ser prá eu não cair”. Seguiu em frente e logo avistou um grande portal todo iluminado. Aproximou-se em seu voo silencioso e pousou na frente da entrada principal daquele prédio monumental. Adentrou e foi logo vendo um grande Anjo, todo de branco a acenar-lhe com a mão chamando-o a aproximar-se mais. “Vôte!” Pensou Paulo. “Que diabo é isso homi? Um anjo me chamando pra entrar no Céu?”. Mesmo desconfiado, continuou sua caminhada. Chegado ao umbral do suntuoso edifício, viu uma ampla mesa em que estava sentado, a uma cadeira em sua cabeceira, um velho barbudo que tinha à sua frente, em cima da referida mesa, um molho de grandes chaves e uma folha de papel. Convidado a sentar-se, Paulo o fez de forma comedida e respeitosa (acho que pela primeira vez na vida, digo, na morte) e aguardou o desenrolar das coisas.

 

Depois de um instante calado e pensativo, o velho fez-lhe uma solene saudação e Paulo perguntou: “Mas..., o que é isso? Aqui não é o Céu?” Ao que o barbudo respondeu: “Sim meu filho, aqui é o Céu sim e seja bem-vindo”. Essas palavras deram um nó no juízo de Paulo, pois, não acreditava no que ouvia: ele no Céu? Mesmo assim, perguntou: “E o que é que eu estou fazendo aqui? Esse é o lugar reservado para a minha eternidade? Por quê?” Diante de tantas perguntas, o velho apressou-se em responder recitando, solenemente, o que estava contido na folha de papel: “Na tua longa existência lá na Terra, defendeste os oprimidos; pregaste a igualdade de direitos para todos; quebraste a porta da prefeitura de Princesa com um murro; distribuíste terrenos de graça para que os pobres construíssem casas no Jardim Karlota; foste adversário dos Pereira e dos Diniz; casaste com Terezinha de Zezinho Ourives; não frequentaste igreja alguma e, por fim nunca cultivaste a hipocrisia que é própria dos que creem e, por isso, nunca conseguiste ser sequer vereador. “Tudo isso depôs em teu favor”.

 

O ancião fez uma pequena pausa e continuou: “Em face dessas ações, sob a minha coordenação, São Pedro, o Conselho Divino aprovou e Deus sancionou (com ressalvas) a tua salvação. Ademais, como não existe mais o Purgatório é o jeito nós te recebermos aqui no Céu. Na dúvida, pró réu”. Levantando-se da cadeira em que estava sentado, São Pedro continuou: “malgrado tuas safadezas terrenas – o que poderia ter-te condenado -, tua renúncia à hipocrisia e tuas atitudes altruísticas na Terra te fizeram escapar do fogo eterno. A partir de agora, este é teu lugar sim, meu filho. Aqui, poderás, como sempre disseste, observar o teu mundinho lá embaixo [Princesa], sentado numa nuvem, zonando com a cara de todos por toda uma eternidade”, sentenciou e disse mais: “Na verdade, Paulo, vou te fazer uma confidência – murmurou o Chaveiro do Céu - o que muito contribuiu para seres recebido aqui, foram duas coisas. Primeiro, o fato de que não praticaste pecados muito cabeludos, nada fizeste por maldade ou dolo. Segundo, foi a recusa de Lúcifer em te receber lá embaixo, temeroso de que tu, com tua irreverência, acanalhasses o Inferno. Portanto, fica aí em Paz. Estás agora no ‘Reino da Gulora!’”.

 


    

 

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