Por Domingos Sávio Maximiano Roberto
A chegada de Paulo Mariano ao “Reino
da Gulora”
Na manhã da
terça-feira, 21 de novembro de 2018, depois de abandonar, de forma definitiva,
o corpo que o abrigava há 84 anos, Paulo Mariano, se dirigiu para o Inferno -
local para onde achava que seria designado. Lá chegando, sob um calor intenso, após
uma espera de quase setes horas, foi autorizado à adentrar à sala principal de
um lugar que mais parecia um prédio em escombros. Em seu interior, observou que
estava aberta uma janelinha da porta de recepção. Aproximou-se e viu lá dentro,
sentada a uma cadeira, uma figura chifruda, certamente um Cão. Era um indivíduo
ainda novo e estava de cabeça baixa, a examinar alguns papeis. “Bom dia!” Disse
Paulo. “Bom dia”, respondeu o que deveria ser o Demônio que ainda de cabeça
baixa, reticente, acrescentou: “Pode dizer...” Com isso, levantou-se da cadeira
e, sem olhar para o visitante, abriu uma gaveta e começou a manusear algumas fichas.
Paulo observou que o espírito do mal – um assecla de Lúcifer, de estatura
baixa, bunda grande, daqueles torados no grosso e que, pelo que estava escrito
no crachá, já com quase dez anos de Inferno - demonstrava muita intimidade com
o ofício de recepcionista daquele ambiente de tormenta. “Sou Paulo Mariano de
Princesa e vim me apresentar...” Disse o visitante. Ao ouvir de onde procedia
essa nova alma penada, o diabo-encarregado virou-se e, surpreso, disse: “Ôxe,
Paulo, que diabo tu tás fazendo aqui?”
O espírito de Paulo,
admirado pela ignorância do pequeno satã sobre um fato de que deveria ter
conhecimento, respondeu: “Oxente, eu morri ontem e vim me apresentar. E tu me
conheces?” O Cão exprimiu um risinho com o canto da boca e disse: “Menino, aqui
a gente conhece todo mundo”. Ainda consultando uns papéis, o satanás-auxiliar fez
a seguinte observação: “Olha, Paulo, teu lugar num é aqui não! Tu num tás em
nenhuma lista. Quem te mandou pra cá?” “Ninguém”, respondeu Mariano, e
completou: “Eu mesmo achei que depois de morto, só me restaria o Inferno. Passei
a vida inteira escutando de todos que: ‘comunista não entra no Céu’ e, desde
criança, ouvia isso também nos catecismos de dona Maria Basílio, nos sermões de
frei Damião e nas preleções que João Mandú fazia antes de encomendar os
defuntos, principalmente, quando eu estava presente”. E acrescentou: “Além
disso, passei a vida tomando cachaça, fumando e, pra completar, escrevi e fiz
editar vários livros sem aprovação eclesiástica. Por isso, vim prá cá”.
“Sendo assim, peraí”,
disse o cão-recepcionista, e continuou: “Vou consultar meu Chefe”. Dito isto, adentrou
por uma portinhola que tinha ao fundo da salinha de recepção, deixando-a entreaberta.
Ficou Paulo a esperar. Nesse ínterim, começou este a ouvir, de longe, vozes
gritando seu nome: “Paulo Mariano!”, “Paulo Mariano!” Quando o Cão retornou,
Paulo perguntou: “Porque lá dentro estão chamando pelo meu nome?” Ao que o demônio
bundão respondeu: “São todos de Princesa”. Aí, Paulo disse: “Mas, eu não tô
reconhecendo ninguém”. O Cão riu e disse: “Ah, meu filho, lá na Terra pode-se
ter a cara de pau, porém, aqui, as caras são todas iguais. Até eu sou de
Princesa...!” E continuou: “Olha, teu canto num é aqui não. Aliás, vou te
confessar um segredo que tu não revelarás a ninguém: ontem, por volta das nove
e meia da noite, quando tu já estavas mais pra cá do que pra lá, houve uma
reunião de emergência do Alto Conselho do Inferno e ficou decidido, por
unanimidade, que não te receberiam aqui por hipótese alguma. O motivo da recusa
- levantado por Brilhante Ustra, Fleury, Lampião, Newton Cruz, dentre outros –,
o que foi acatado por Lúcifer, produziu uma sentença, lida no final da reunião
pela alma de um alto figurão de Princesa que, de pé, proferiu o seguinte
veredicto: “Manda Paulo Mariano acanalhar noutra freguesia, aqui, NÃO!” Ouvindo
isso, Paulo disse: “Oxente, e eu vou pra onde?” Ao que o Satã respondeu:
“Daqui, não se desce mais para canto nenhum. Vai subindo por aí que tu encontrarás
onde pousar prá sempre”. E com essa última resposta, foi fechando a janelinha.
Paulo, mesmo
desorientado, seguiu o conselho do Diabo e partiu ladeira acima. Após sair do
calor infernal que circundava a “Geena” lotada de princesenses, avistou algumas
parcas nuvens e, dentre elas, identificou um grande portão e pensou: “É ali”.
Ao aproximar-se, viu o nome: PURGATÓRIO. Porém, no meio do portão, estava
afixada uma tabuleta com a inscrição: FECHADO DESDE JANEIRO DE 2001. Aí Mariano
se lembrou que o papa João Paulo II, em dezembro do ano 2000, por ocasião das
comemorações do “Jubileu do Milênio”, quando a Igreja arrependeu-se de seus
pecados. Após anistiar Galileu, Copérnico, Padre Cícero, Giordano Bruno, Joana
D’Arc, dentre outros considerados hereges pela Santa Madre Igreja, o Sumo Pontífice
havia também determinado o fechamento do Purgatório. “E agora? Para onde eu
vou?”, pensou Paulo. Se não tinha reserva no Inferno e o Purgatório tava
fechado, restava-lhe somente o Céu.
Mesmo achando esquisito,
Paulo continuou subindo. Nesse momento, notou que, em suas “apás”, cresciam
duas asinhas. Aí pensou: “Eu, Anjo? Não! Tão zonando da minha cara ou, por
outra, deve ser prá eu não cair”. Seguiu em frente e logo avistou um grande
portal todo iluminado. Aproximou-se em seu voo silencioso e pousou na frente da
entrada principal daquele prédio monumental. Adentrou e foi logo vendo um
grande Anjo, todo de branco a acenar-lhe com a mão chamando-o a aproximar-se
mais. “Vôte!” Pensou Paulo. “Que diabo é isso homi? Um anjo me chamando pra
entrar no Céu?”. Mesmo desconfiado, continuou sua caminhada. Chegado ao umbral
do suntuoso edifício, viu uma ampla mesa em que estava sentado, a uma cadeira
em sua cabeceira, um velho barbudo que tinha à sua frente, em cima da referida
mesa, um molho de grandes chaves e uma folha de papel. Convidado a sentar-se,
Paulo o fez de forma comedida e respeitosa (acho que pela primeira vez na vida,
digo, na morte) e aguardou o desenrolar das coisas.
Depois de um instante
calado e pensativo, o velho fez-lhe uma solene saudação e Paulo perguntou: “Mas...,
o que é isso? Aqui não é o Céu?” Ao que o barbudo respondeu: “Sim meu filho,
aqui é o Céu sim e seja bem-vindo”. Essas palavras deram um nó no juízo de
Paulo, pois, não acreditava no que ouvia: ele no Céu? Mesmo assim, perguntou: “E
o que é que eu estou fazendo aqui? Esse é o lugar reservado para a minha
eternidade? Por quê?” Diante de tantas perguntas, o velho apressou-se em
responder recitando, solenemente, o que estava contido na folha de papel: “Na
tua longa existência lá na Terra, defendeste os oprimidos; pregaste a igualdade
de direitos para todos; quebraste a porta da prefeitura de Princesa com um
murro; distribuíste terrenos de graça para que os pobres construíssem casas no
Jardim Karlota; foste adversário dos Pereira e dos Diniz; casaste com Terezinha
de Zezinho Ourives; não frequentaste igreja alguma e, por fim nunca cultivaste
a hipocrisia que é própria dos que creem e, por isso, nunca conseguiste ser
sequer vereador. “Tudo isso depôs em teu favor”.
O ancião fez uma
pequena pausa e continuou: “Em face dessas ações, sob a minha coordenação, São
Pedro, o Conselho Divino aprovou e Deus sancionou (com ressalvas) a tua
salvação. Ademais, como não existe mais o Purgatório é o jeito nós te
recebermos aqui no Céu. Na dúvida, pró réu”. Levantando-se da cadeira em que
estava sentado, São Pedro continuou: “malgrado tuas safadezas terrenas – o que
poderia ter-te condenado -, tua renúncia à hipocrisia e tuas atitudes altruísticas
na Terra te fizeram escapar do fogo eterno. A partir de agora, este é teu lugar
sim, meu filho. Aqui, poderás, como sempre disseste, observar o teu mundinho lá
embaixo [Princesa], sentado numa nuvem, zonando com a cara de todos por toda
uma eternidade”, sentenciou e disse mais: “Na verdade, Paulo, vou te fazer uma
confidência – murmurou o Chaveiro do Céu - o que muito contribuiu para seres
recebido aqui, foram duas coisas. Primeiro, o fato de que não praticaste
pecados muito cabeludos, nada fizeste por maldade ou dolo. Segundo, foi a
recusa de Lúcifer em te receber lá embaixo, temeroso de que tu, com tua
irreverência, acanalhasses o Inferno. Portanto, fica aí em Paz. Estás agora no
‘Reino da Gulora!’”.
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