ODE

domingo, 14 de janeiro de 2024

Domingo eu conto

Por Domingos Sávio Maximiano Roberto

Lembranças da “Rua Nova”

A Rua Coronel Florentino, antigamente chamada de “Rua Nova”, é uma das artérias mais antigas da cidade e faz parte do centro de Princesa. Nasci e me criei ali. Ali vivi minhas brincadeiras de criança junto com amigos. A Rua Nova com a cara de antigamente já não existe mais: tanto em sua antiga arquitetura quanto em relação aos que ali moravam. Os mais velhos morreram todos e, os mais novos, meus contemporâneos, quase todos foram-se embora de Princesa. Quase tudo foi também destruído e modificado. Mesmo assim, ainda povoam a minha memória várias imagens e recordações que delas não me aparto jamais. Rebuscando em minhas lembranças, vejo nitidamente, o casario, a paisagem com suas altas palmeiras, os frontispícios das casas de residência, e os moradores da Rua Nova como se tudo existisse ainda.

Primeiro, existia a Igreja Velha e, virado para os fundos desta, o sobrado de Richomer Barros onde moravam dona Noemi, sua filha Ada e seu marido Inocêncio, com os filhos: Cícero, José, Maria, Richomer, Mônica, Severino, Moema e Rosário. Começando pela cabeceira da Rua Nova, enveredando pelo lado direito de quem desce a artéria, inicio pela casa de dona Maria da Paz (enteada do major Feliciano) que era também a antiga residência do major. Aquela casa (que não existe mais) serviu de cenário para as apresentações amadoras de peças teatrais (dramas) encenadas pelas sobrinhas-netas de dona Maria da Paz. A velha se divertia muito com a performance das meninas: Maria e Mônica de Ada, Noca de Bení e suas amigas.

Na casa vizinha, morava um outro filho do major - Chico Feliciano - que era o tabelião e ali funcionava também o Cartório do Registro Civil. Chico Feliciano - casado com dona Gonzaga -, era agnóstico, mas, deixava que sua esquisita esposa exercesse sua generosa religiosidade quando permitia que ela, vez por outra, doasse caixas de fósforos para o acendimento das velas da vizinha Igreja Velha.  

Parede-meia com o Cartório moravam as solteironas cognominadas: “as Borrêgos”: Maria Adília, Quitéria, Tertuzinha e Tertú Velha. Eram, as duas primeiras, professoras e, as últimas, cuidadoras do lar. O divertimento principal dessas chamadas moças velhas, era desfilar, rua-acima, rua-abaixo todas as tardes de braços dados com a amiga Ada Barros, em passeio ou em busca da casa do irmão desta última, João Barros. Vizinho às “moças velhas” morava a família de Zé de Quincas, esposo da paciente dona Ana e pai de Mundinha, Lourdes, Zé Novo e Damião. Essa casa que ainda existe em sua arquitetura original, mais parecia um abrigo, pois, ali moravam além da família, algumas agregadas idosas, doentes mentais ou criadas: Úrsula, Alexandrina, Santa, Lourdes Gomes...

Em seguida, encontrávamos a casa de Marçal Carlos de Andrade, mais conhecido por “Marçal do Silva” - ferrenho correligionário do grupo “Pereira” - que era casado com uma santa mulher, dona Rosa, e pai de Xandú, Aurineide, Socorro, Heloísa e João Bosco. Vivia sentado numa cadeira de balanço, na calçada, a confabular com Jandira Góis, Marçal de Sulina, Juanita Cardoso e demais correligionários sobre os assuntos políticos da cidade. Imediatamente anexa à casa de Marçal do Silva, outro Marçal (Medeiros), sogro do vereador Chico Virgulino, tinha uma bodega (segundo as más línguas, local para encontros furtivos e extraconjugais). Ao lado dessa à venda, residia Amália Gregório (que às vezes, ajudava lá em casa).

Imediatamente depois, estava a morada do comerciante Mirô Arruda (dono de uma mercearia localizada na Rua Grande), que tinha sempre à uma das janelas da casa, sua esposa, dona Antônia, acotovelada numa almofada a espiar a rua sem deixar, porém, de cuidar das filhas Ceição e Lourdes e do filho João. Vizinha à casa de Mirô estava a minha casa. Aliás, era essa a única residência da Rua Nova que abrigava eleitor adversário dos “Pereira”, uma vez que a minha mãe, dona Osana Roberto, após ficar viúva e ser agraciada com um emprego no Hospital São Vicente de Paulo, dado pela matriarca nominandista dona Maria Aurora Diniz passou, por gratidão, a votar nos do grupo “Diniz”. Mesmo adversária, dona Osana, guardava a vontade de meu falecido pai (major Nequinho), um empedernido pereirista, quando mantinha, dependurados numa das paredes da sala de estar da nossa casa, um retrato emoldurado do coronel José Pereira Lima e outro do tribuno princesense e seu compadre, Alcides Vieira Carneiro que era padrinho do meu irmão, Antônio.

Em seguida, a residência de dona Belmira, mãe dos comerciantes Alfredo e Antônio Carlos onde morava na companhia de suas filhas, a solteirona Anália e a adotiva Odete. Esse imóvel é um dos poucos que se mantém preservado em sua arquitetura original. A anciã, sempre calçando sandálias baixas com meias, era a velhinha mais limpa e mais cheirosa que já conheci. Pedíamos-lhe a bênção e ela nos abençoava dizendo: “Deus lhe dê fortuna”. Fazendo o que chamamos de parede-meia, estava a casa de “seu” Lulu e dona Iraci Florentino que eram os pais de Zé Galego, Laurí, Inaldo, Socorro e Fátima. Imediatamente vizinha estava a casa de “seu” Marcolino, um velhinho que vivia sempre recostado a uma “preguiçosa”, acompanhado de sua branquíssima esposa, dona Ritinha que vendia ovos de galinhas de capoeira.

Encostado à casa de “seu” Marcolino, antes do “Beco de Severino Barbosa”, estava o hotel de dona Sinhá. Viúva do rico capitão Severino (meu tio paterno), dona Sinhá era uma senhora alta, elegante e vaidosa que, entrevada por doença, caminhava arrastando os pés, “engomando”, porém, mesmo assim, dirigia a principal e mais “sofisticada” hospedaria da cidade, pois, era ali que os juízes, promotores e caixeiros viajantes se acomodavam para dormir e fazer refeições. Moravam também naquele hotel dois “rapazes velhos”; um da família Lima: Neco, e outro da família Maximiano: João. O ambiente, muito movimentado rescendia ao odor de comidas sendo preparadas, realçando um intenso cheiro de pimenta.

Atravessando o beco, deparávamo-nos com a padaria de Severino Barbosa que, além de rico comerciante e político, era casado com a “fraca do juízo” Carminha e pai de Marlene, Luizinha e Armênio. Severino morava em uma casa imediatamente vizinha à padaria que, posteriormente, foi ocupada pelo casal José França e Adalzira. Em fins da década de 1960 a padaria passou a pertencer a Tião Basílio.

Descendo um pouco mais, residia dona Francisquinha de Fófa e sua numerosa prole: Vavá, José, Socorro, Preta; Tontõe; Tereza; Graça e Dandão, desfalcada de um de seus filhos, chamado Rivaldo a quem apelidavam de “Peba”, que foi assassinado ainda jovem por Lula Roberto. Casa fatídica, pois, foi nesse mesmo imóvel que aconteceu o duplo assassinato do casal Octacílio e Xandú, em 1937, por motivos passionais. Ao lado de dona Francisquinha, residiam mais duas solteironas: Domitília e Francisquinha, ambas, irmãs de “seu” Marçal do Silva e primas do coronel Zé Pereira.

A casa seguinte era a do jovem casal João Barros e Ceição Lima que tinham como vizinha a solitária viúva, pequenina e frágil, dona Genesina Florentino. Seguindo o mesmo percurso, vamos encontrar, sem interrupção, a casa das solteironas Carminha e Sitônia, fazedoras dos melhores sequilhos e raminhos e que eram irmãs do tabelião Zacharias Sitônio. Em seguida, estava a residência do pacífico, educado e religioso casal formado por “seu” Tote e dona Joaninha, pais de Neuzinha Sitônio e, portanto, sogros do farmacêutico Edezel Frazão. Foi nessa casa que aconteceu – debaixo da mesa que suportava o oratório com o santuário de “seu” Tote - o trágico assassinato de “Peba”, filho de dona Francisquinha de Fófa.

Ao lado da casa de “seu” Tote ficava a residência de seu irmão, o ex-prefeito de Princesa e ex-deputado estadual Zacharias Sitônio, casado com dona Hermosa Pereira e pai de Marta, Mariângela e Margarete. Para terminar esse lado da Rua Nova, existia um terreno baldio que, mais tarde foi ocupado com a construção da residência do tabelião João Barros e da sede do “Princesa Clube”.

Ao final desse lado da artéria, existiam três casas que mais pertenciam à Praça “Epitácio Pessoa” do que propriamente à Rua Nova. Ali moravam, da esquerda para a direita: dona Calú que misturava sua residência com uma pequena bodega onde vendia queijos, galinhas e ovos de capoeira; Genuíno Cordeiro que vendia leite e queijos e, vizinha a este, a solteirona Estela Cavalcanti que, nas Noites de Natal, desfilava pelas ruas da cidade com uma imagem do “Menino Jesus”, acondicionada dentro de uma caixa, a pedir esmolas - não sei para que fins - acompanhada da professora Alice de “Padre Maia”, a tocar um pequeno sino.

Atravessando a rua que levava ao cemitério, dávamos com as ruínas da antiga Igreja do Rosário dos Pretos que foi destruída pelos frades Carmelitas em 1967 e, mais ao lado, estava a casa do ex-vice-prefeito e poeta Belarmino (Belo) Medeiros onde residia com sua mulher Rosenda e seu temporão e único filho, Robson que, bem cuidado, todas as tardes, após o necessário banho, sentava-se à calçada todo “lorde” e com seu bem penteado topete.

Terminado o nosso périplo pelo lado direito da Rua Nova, iniciamos agora pelo lado esquerdo, começando pelo “Palacete dos Pereira”. Ali residiu, no início da década de 1920 - após mandar construir aquele imponente sobrado -, o sobrinho homônimo do ex-presidente Epitácio Pessoa, quando homiziado em Princesa por um crime passional cometido no Recife. Retornando à capital pernambucana em 1928, “Epitacinho” presenteou Luizinha - filha do coronel José Pereira -, com aquele majestoso imóvel. Por muito tempo aquele sobrado serviu de residência à sua proprietária e seu marido, Gonzaga Bento - que foi prefeito de Princesa por três mandatos - e seus filhos Rosane e Humberto.

Continuando a subida achamos a casa dos criados do palacete, uma construção similar às erigidas em adobe que fazia lembrar as “ruínas de Caracala”. Ali moravam Ana Tenório (governanta dos “Pereira”) que era casada com Antônio e mãe de Neném, Véi, Tião e Dedé. Curioso observar que ali residia também, sob o mesmo teto, a negra Vitória (irmã de Ana) que era também governanta, mas de um figadal adversário dos “Pereira”: o doutor Severiano Diniz. Essa casa foi demolida e, em seu lugar, construída a residência do deputado Aloysio Pereira.

Subindo mais, se achava a residência do casal Benedito Lima (ex-prefeito de Princesa) e dona Candinha que, mais tarde, serviria de moradia para seu filho Florentino Lima, sua esposa Vera e os filhos: Paulo, Olavo e Fernando.  Nessa casa, tinha um pé de seriguela que produzia a melhor fruta da cidade e nós, crianças, corríamos o risco de sermos flagrados por dona Antônia (a empregada da casa), quando pulávamos o muro para roubar aquelas deliciosas frutas.

Encostado a essa residência estava o prédio onde funcionava o “Cine Santa Maria”, administrado pelos frades Carmelitas. Esse Cinema, que foi inaugurado em 1924, funcionava de forma precária quando os expectadores eram obrigados a levar seus assentos (cadeiras e tamboretes) para as sessões cinematográficas. Ali funcionou também, na década de 1920, o “Theatro Pereira Lima”. Hoje, o mesmo prédio, reformado, aloja a Rádio Princesa FM. Separando o Cinema da continuação da rua havia um beco (hoje, conhecido como “Beco da Rádio”). Em seguida estava a casa de Biu Cardoso que era pai do futuro prefeito Batinho, de Selma e de Gerson. “Seu” Biu passava os dias a consertar seu velho caminhão, um FNM que nós chamávamos de “Fenemê”.

Em seguida estava a casa do farmacêutico Edezel Frazão casado com a professora Neuzinha Sitônio e pai de José e Rosana. Geminada à casa do boticário, a residência do agropecuarista Batista Lima que era casado com dona Benedita. “Seu” Batista andava lorde, era um velho empertigado que primava pelo bem-vestir, se apresentando sempre todo enfatiotado; mas, o que mais chamava a nossa atenção nessa casa, eram as gêmeas idênticas: Fátima e Antonieta que, vestidas rigorosamente iguais, mais pareciam um par de jarros. Seguindo, estava a residência de Rafael Alves, marchante que foi vítima de assassinato pelo mesmo algoz que cometeu o crime hediondo que ceifou a vida do filho (Peba) de dona Francisquinha de Fófa. Nesse imóvel, tempos depois, residiu a família de Tião Basílio, casado com dona Expedita e pai de Eudésia, Eudes, Edna, Ceição, Tiquinho e Rosarinho.

Depois dessa casa, vinha a residência de “seu” Neco Genuíno e dona Quitéria Antas, (avós de Hélio e Neide) esta, muito gorda, era fazedora dos melhores queijos de manteiga da cidade. Continuando a subida, dávamos com a casa das “Marrocos”, solteironas juramentadas (Dorothéa; Lede Claire e Doralice) que, além de professoras e prendadas eram cantoras da Igreja. Ao lado dessa casa, morava Chico Pedro, casado com dona Maria e pai de Dão. Chico, sempre prodigamente abastecido de aguardente, vivia a tanger um imaginário “pôico”. Seguindo na mesma direção estava a casa-oficina de “seu” Elisbão (marido de dona Áurea e pai de “Neném” e “Cum-cum”) que, sempre usando aquela ridícula lupa ocular, vivia a consertar relógios.

Parede-meia com a casa do relojoeiro funcionava o bar e mercearia de Pedro Caboclo, local onde comprávamos confeitos (balas) e pipocas. O prédio, de frente para o beco de Severino Barbosa quase foi destruído quando, doutor Antônio Nominando, vindo de João Pessoa em seu Jipe, sobrou na curva e entrou com carro e tudo na bodega de Pedro Caboclo. Vizinho ao bar existia uma marcenaria pertencente a Zé Honório que, muito zoadenta, só funcionava após as aulas que aconteciam na vizinha escola da professora solteirona, filha de “Padre Maia”, dona Maria Alice Maia, que morava junto a seu pai e sua irmã Quina. Professora particular, dona Alice, vivia em constante conflito com o alto volume do rádio da casa seguinte onde morava o cabo Romeu e sua esposa dona Nely, que tinham os filhos: Romeu, Ronaldo e Roberto. O volume do rádio aumentava ainda mais quando da transmissão da novela “O Direito de Nascer”. Nessas ocasiões, enquanto dona Alice ensinava o “Bê-a-bá”, cantado, sua irmã Quina, também “moça velha” e useira da palmatória para punir os alunos da irmã, insistia com dona Nely, esposa do cabo para baixar o volume do rádio.

Encerradas as atividades da marcenaria, da escola e do rádio, começava a sessão de músicas executadas pela radiola de dona Celina, que morava ao lado e era casada com Aparício Duarte (vendedor de calçados populares) com quem tinha as filhas, Sônia e Carminha. Em seu aparelho musical portátil dona Celina só fazia executar canções de Núbia Lafayette e Dalva de Oliveira. Vizinho à casa de Aparício, estava o hotel de “Zabé” onde almoçavam os chamados “viajantes” e os dois soldados de polícia que destacavam em Princesa: “Pranvan” e Anacleto. Logo em seguida, a barbearia de Expedito Leandro (meu padrinho) que fazia parede-meia com a pequena bodega de Napoleão onde se encontravam à venda: bananas e mais algumas frutas, local onde, posteriormente se instalou a loja de Zé da Prestação.

Para completar a animação desse lado da “Rua Nova”, morava, num quartinho apertado, o maluco Antônio Conrado, apelidado de “Lagatão” que quando surtava fazia barricadas com vários caixotes de madeira espalhados pelo meio da rua e começava a disparar sua imaginária “metralhadora” disfarçada por uma das traves que serviam de trancas para as portas inteiriças de sua exígua moradia.

Ufa! Chegamos ao final dessa nostálgica caminhada pelo tempo, culminando com a bodega de “seu” João Rosas que depois pertenceu a Vavá de Fófa e, hoje, é administrada por “Zé Galego”. De todos os moradores ou comerciantes aqui referidos, somente a bodega de Zé Galego resistiu ao tempo que, transformada em “Mercadinho”, continua no mesmo lugar. Foi essa a “Rua Nova” onde nasci e me criei, e que hoje, totalmente desfigurada, não existe mais como era. Mesmo assim, não sai da minha memória...

                                            


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